180 anos da proclamação da República Sul-Riograndense
Em 11 de setembro de 1896 o General Antonio de Souza Netto proclamou: "Camaradas! Gritemos pela primeira vez: viva a República Rio-grandense! Viva a independência! Viva o exército republicano rio-grandense!". Em homenagem a este fato histórico, o portal Vermelho publica, com exclusividade artigo do historiador e pesquisador Raul Carrion que faz uma análise da luta travada no extremo sul do Brasil e que marcou nossa história.
Publicado 11/09/2016 11:42
Às vezes, equivocadamente – por compreendermos que o desenvolvimento das sociedades humanas é regido por leis objetivas –, consideramos que os processos históricos seguem um curso inexorável e pré-determinado. Nada mais estranho ao marxismo, que acentua o papel ativo dos homens na história e a existência do próprio acaso no devir social.
Assim, a prevalência do Estado Monárquico – centralizador e escravocrata – no Brasil da primeira metade do século XIX, longe de ser algo inevitável, deu-se em meio a uma acirrada disputa com projetos sociais alternativos, mais abertos e democráticos – que defendiam a República, a Federação e o fim do escravismo – e com ele disputavam o futuro do país recém independizado.
Exemplos desses embates são a Conjuração baiana de 1798; a Revolução republicana de 1817, em Pernambuco; a Confederação do Equador, em diversos Estados do Nordeste, em 1824; a Balaiada, em 1830; a Cabanagem, no Pará, em 1935; a Sabinada, na Bahia, em 1837; todas elas rapidamente derrotadas. Porém, será somente a “Revolução Farroupilha”, na então Província do Rio Grande do Sul, que conseguirá enfrentar militarmente, por quase dez anos – de 1835 a 1845 – o todo-poderoso Império brasileiro, inclusive constituindo-se como um Estado independente.
O Brasil vivia a época da ascensão do café como seu principal produto de exportação. Os grandes proprietários escravistas do Vale do Paraíba do Sul constituíam a classe dominante do país. Nessa condição, haviam imposto uma monarquia unitária e centralizada para subjugar as massas escravizadas – preocupados em evitar outro Haiti – e submeter as demais províncias aos seus interesses econômicos.
No Rio Grande do Sul, desenvolvia-se uma economia periférica, subsidiária da economia central, tendo por base uma pecuária extensiva, voltada essencialmente à produção de charque para alimentar a escravaria do país. Ali, o peso do centralismo monárquico se fazia sentir de diversas maneiras. O presidente da província era nomeado pelo Rio de Janeiro e governava em função dos interesses da aristocracia cafeeira, o que marginalizava econômica e politicamente a oligarquia gaúcha. Ao mesmo tempo, os interesses expansionistas do Império transformavam a Província – a fronteira “viva” do país – em um permanente campo de batalha contra os vizinhos platinos, com graves prejuízos para a sua economia.
A derrota dos exércitos imperiais na Guerra Cisplatina (1825-1828) agravou ainda mais essa insatisfação, seja pela devastação causada pela guerra, seja pela perda definitiva do Uruguai, o que significou o fim do acesso dos gaúchos aos campos e rebanhos uruguaios. A isso, somou-se o imposto de 25% sobre o charque produzido na Província – enquanto o charque platino pagava apenas 4% – e os tributos sobre pastagens, esporas, estribos e rum, impostos pelo Império aos rio-grandenses.
Dessa forma, avolumaram-se as contradições entre os rio-grandenses e o Império, o que se expressou em um difuso sentimento de “opressão da Província de São Pedro pela Corte do Rio de Janeiro”. Criou-se assim, um terreno fértil para que as idéias republicanas – que predominavam em toda a região do Prata – se difundissem, combinadas com as aspirações federalistas. É o conjunto desses fatores que levará ao levante armado de 1835.
Em 20 de setembro de 1835, sob a direção de Bento Gonçalves, eclode a “Revolução Farroupilha”, com a tomada de Porto Alegre pelos revoltosos e a fuga do então Presidente Fernandes Braga para a cidade de Rio Grande. Inicialmente, os farroupilhas se restringiram a reivindicar a substituição do Presidente da Província e um maior respeito em relação à província. Mas, em 25 de setembro, Bento Gonçalves já ameaçava com uma eventual separação:
“O Rio Grande é a sentinela do Brasil, que olha vigilante para o Rio da Prata. (…) Exigimos que o governo imperial nos dê um governador de nossa confiança, que olhe pelos nossos interesses (…) ou nos separaremos do centro e, com a espada na mão, saberemos morrer com honra ou viver com liberdade. (…) é obra difícil, senão impossível, escravizar o Rio Grande, impondo-lhe governadores despóticos e tirânicos.” (FAGUNDES, Morivalde Calvet. História da Revolução Farroupilha. Caxias do Sul: EDUCS, 1989, p. 82)
A proclamação da República Rio-Grandense em 11 de setembro de 1836
Paulatinamente, o movimento – que contou desde o início com forte participação de negros, mulatos, mestiços e brancos pobres – se radicalizou e evoluiu, culminando com a proclamação da República Rio-Grandense, em 11 de setembro de 1836, no campo de Menezes, próximo a Seival. Ali, no dia anterior, as tropas farroupilhas haviam obtido uma grande vitória contra as tropas imperiais, com uma participação destacada do 1º Corpo de Lanceiros Negros, formado por ex-escravos libertos pela rebelião.
Ainda que não houvesse unanimidade entre os farroupilhas quanto à República e quanto à separação em relação ao Império, coube ao General Antônio de Souza Neto – na ausência de Bento Gonçalves, envolvido na desastrosa batalha de Fanfa – proclamar a República e a independência do Rio Grande do Sul, em 11 de setembro de 1836:
“Em todos os ângulos da Província não soa outro eco que o de INDEPENDENCIA, REPÚBLICA, LIBERDADE OU MORTE. (…) Nós que compomos a 1ª Brigada do Exército Liberal devemos ser os primeiros a proclamar, como proclamamos, a independência desta Província, a qual fica desligada das demais do Império e forma um Estado Livre e Independente, como o título de República Rio-Grandense.” (Idem, p. 154)
Para que isso acontecesse, jogaram papel decisivo o então Comandante das Armas Revolucionárias, João Manuel de Lima e Silva – tio do futuro Duque de Caxias e ativista republicano desde 1831 –, Joaquim Pedro Soares – braço direito do General Neto – e Manuel Lucas de Oliveira – que chegaria a ser Ministro da Guerra da República. Esses proeminentes chefes farroupilhas convenceram o General Neto que a única alternativa para enfrentar o Império era proclamar a República e separar-se do Império
Em 20 de setembro de1836 – comemorando um ano do início da revolta – reuniu-se a Câmara Municipal da Vila de Jaguarão, que aderiu à proclamação do Gal. Neto e nomeou Bento Gonçalves Presidente da República Rio-Grandense, com a tarefa de convocar com a maior presteza possível uma assembleia constituinte. Em 5 de novembro, reuniu-se a Câmara Municipal de Piratini, que também aprovou a independência da Província, sob a forma republicana, com a cláusula de que o novo Estado poderia “ligar-se pelos laços da federação àquelas províncias do Brasil que adotassem o mesmo sistema de governo” (DE ABREU, Florêncio. A Constituinte e o Projeto de Constituição da República Rio-Grandense.” Porto Alegre: Instituto Histórico e Geográfico do Rio Grande do Sul, 1930, p. 6)
Em seguida, os vereadores realizaram a eleição do governo da República, elegendo Bento Gonçalves seu Presidente. Estando este prisioneiro do Império desde 5 de outubro, em conseqüência da batalha de Fanfa, assumiu a presidência de forma interina José Gomes de Vasconcelos Jardim. Este estruturou de imediato o governo, criando seis secretarias: Interior, Exterior, Fazenda, Justiça, Marinha e Guerra.
Em setembro de 1837, Bento Gonçalves conseguiu escapar de sua prisão no Forte do Mar, na Bahia – com o apoio da maçonaria e dos conspiradores Sabinos – retornando ao Rio Grande do Sul e assumindo a Presidência da República Rio-Grandense.
Em 29 de agosto de 1838, em extenso Manifesto – após apresentar as razões que levaram à rebelião – Bento Gonçalves reiterou que a independência da República não significava um rompimento com as demais províncias brasileiras, mas sim com o Império. E que, tão logo outras “províncias irmãs” adotassem o regime republicano, poderia ser criada uma Federação republicana que as unisse novamente. Ou seja, que o objetivo central era a República e não a separação:
“Um só recurso nos restava, um único meio se oferecia à nossa salvação, e esse recurso e este único meio era a nossa independência política e o sistema republicano (…) os rio-grandenses reunidos às suas municipalidades solenemente proclamaram e juraram a sua independência política debaixo dos auspícios do sistema republicano, dispostos, todavia, a federarem-se, quando nisso se acorde, às províncias irmãs que venham a adotar o mesmo sistema.” (DA SILVA, Bento Gonçalves, DE ALMEIDA, Domingos José. Manifesto do Presidente da República Rio-Grandense em nome de seus Constituintes – 29.08.1838. In: Coletânea de Documentos de Bento Gonçalves da Silva 1835/1845. Porto Alegre: Comissão Executiva do Sesquicentenário da Revolução Farroupilha, 1985, pp. 289-290)
Separatismo ou republicanismo?
Aqui reside uma das principais polêmicas que envolvem a formação da “República Rio-Grandense”, vista por alguns –equivocadamente – como um movimento essencialmente separatista.
É importante observar que no decorrer da luta, os farroupilhas fizeram reiterados chamamentos aos “brasileiros” para que se levantassem contra o Governo Imperial. Da mesma forma, podemos constatar a sua permanente busca de articulação com as demais revoltas liberais da época, deixando claro que sua luta tinha um caráter essencialmente anti-monárquico e republicano (sob uma forma federalista), muito mais que separatista (algo contingencial):
“Brasileiros que iludidos defendeis a causa do Império! (…) mostrai ao mundo que ainda pulsa em vossos peitos o fogo elétrico do patriotismo, que ainda sois os mesmos que derramastes há pouco vosso sangue em defesa da malfadada Bahia e do Pará [clara referência à Sabinada e à Cabanagem] (…) Não hesiteis; a sorte dos baianos e dos paraenses acha-se identificada com a nossa própria sorte.” (DA SILVA, Bento Gonçalves. Proclamação 24.04.1840. Idem, p. 292)
“Rio-Grandenses! Raiou a aurora de vossa felicidade (…) os briosos paulistas, em defesa de sua Pátria, começaram a guerra contra o tirano do Brasil! Já as falanges paulistanas marcham sobre o inimigo comum (…) O Brasil em massa se levanta como um só homem para sacudir o férreo jugo do segundo Pedro. É este o momento de mostrardes ao mundo que sois rio-grandenses (…) e não só salvareis a Pátria como sereis os libertadores do Brasil inteiro. (DA SILVA, Bento Gonçalves. Proclamação: 13.07.42. Idem, p. 294)
Em outros documentos dos farroupilhas fica ainda mais claro o chamamento às demais províncias para uma união em torno de uma República de caráter Federativo:
“A causa que defendemos não é só nossa, ela é igualmente a causa de todo o Brasil (…) Uma república federal, baseada em sólidos princípios de justiça e recíproca conveniência uniria hoje todas as províncias irmãs, tornando mais forte e respeitável a nação brasileira. (…) quebrai, ainda é tempo, os grilhões desonrosos que roxeiam vossos pulsos, e vinde conosco sustentar nos campos do sul (…) a paz, a felicidade e o esplendor da nação brasileira.” (DA SILVA, Bento Gonçalves. Proclamação: 11.03.1843. Idem, p. 295)
E o jornal Farroupilha O POVO – ao tratar da recém constituída “República Catarinense” –, não deixa dúvidas quanto à intenção dos líderes farroupilhas em lutar por uma Federação Republicana que reunisse, no futuro, em uma mesma nação, o conjunto das províncias brasileiras:
“A federação (…) põe no mesmo nível todas as unidades. Disto estavam bem conscientes os líderes revolucionários e a sua imprensa, como se conclui da notícia do dia 23 de agosto de 1839 sobre a visita do enviado extraordinário da recém constituída República Catarinense para a celebração de um tratado com a República Rio-Grandense: – ‘Das bases desta aliança pendem os destinos do Brasil visto que, como pensamos, ela de tal forma deve enlaçar os interesses das diversas províncias do agonizante Império que, ao separarem-se daquela associação ominosa, encontrem não só vigoroso apoio, como ainda um religioso respeito às garantias e aos direitos a cada um peculiares.’ – Pretendiam mais que uma confederação no sentido restrito, o pensamento se inclinava a uma União de Repúblicas.” (JORNAL O POVO, nº 121 – 23.11.1839. In: DE MACEDO, Francisco Riopardense. Lições da Revolução Farroupilha. Porto Alegre: ALERGS, 1995, p. 47)
Deve-se ressaltar, ainda, a participação na luta farroupilha, em posições de destaque, de inúmeras lideranças civis, militares e religiosa originários de outras províncias, como o referido João Manuel de Lima e Silva; o mineiro Domingos José de Almeida (Ministro do Tesouro), o carioca José Mariano de Mattos (duas vezes Ministro da Guerra e Presidente da República Rio-grandense durante mais de dois anos); o Padre José Antônio Caldas (participante ativo na Revolução Pernambucana de 1817 e na Confederação do Equador). Sem falar dos republicanos italianos que se engajaram na luta farroupilha, como Giuseppe Garibaldi – chefe militar da unificação da Itália – Luiz Rossetti – redator do jornal farroupilha O POVO – e Tito Lívio Zambeccari – secretário particular de Bento Gonçalves.
A divisão dos farroupilhas frente à abolição da escravidão
Outra questão controversa em relação à luta farroupilha diz respeito à sua posição frente à abolição da escravidão. Em relação a esse tema, não há uma resposta unívoca – “sim” ou “não”. De um lado estavam os setores progressistas, que defendiam o fim do trabalho servil. De outro, os que aceitavam a libertação dos escravos que aderissem à luta, mas opunham-se com veemência à libertação geral dos escravos.
Esse embate deu-se com grande força nas discussões da Assembleia Constituinte farroupilha, que – devido aos duros combates e ao constante deslocamento do governo e da capital republicana – só conseguiu instalar-se em 1º de dezembro de 1842, no município de Alegrete. Nessa ocasião, Bento Gonçalves dirigiu a palavra aos constituintes – na condição de Presidente da República –, reafirmando que “aproxima-se o dia em que, banida a realeza da terra de Santa Cruz, nos havemos de reunir para estreitar laços federais à magnânima nação brasileira, a cujo grêmio nos chama a natureza e os nossos mais caros interesses.” (DE ABREU, Florêncio, idem, p.12)
Ali, coube ao carioca José Mariano de Mattos, abolicionista convicto, apresentar em nome da “maioria” – que incluía Bento Gonçalves, Domingos José de Almeida, Antônio Souza Neto, José Gomes Portinho, Ulhoa Cintra e tantos outros – projeto que abolia o cativeiro. A reação da “minoria”, – capitaneada por Antônio Vicente da Fontoura, Davi Canabarro e Onofre Pires – foi tão violenta, ameaçando uma irremediável cisão dos farroupilhas, que inviabilizou sua aprovação. Alfredo Varela historia os fatos:
“(…) José Mariano (…) apresentou à assembléia um projeto que abolia o cativeiro, semelhante ao que se fizera no vizinho Uruguai. Pois bem, assistiu a extremado e nefando espetáculo. A minoria, acaudilhada por Antônio Vicente, opôs-se, irredutível e fera, deixando-nos patente (…) as frágeis razões em que se apoiava para obstar a ‘liberdade geral dos escravos’. (…) No Diário que estava escrevendo, (…) Antônio Vicente alude a este episódio parlamentar: depois de referir-se ‘à alma vil e fraca do mulato José Mariano’ e ao ‘mofino Bento’, ‘dois demônios’, desprezados por todo homem decente’, assevera que o plano emancipador apresentado por ‘esse mulato’, ‘em plena assembleia’, tinha ‘o fim sinistro de tudo confundir para, no início da geral consternação, roubar-nos mais amplamente e evadir-se para o país vizinho.” (VARELA, Alfredo. História da Grande Revolução – o ciclo farroupilha no Brasil. Porto Alegre: Livraria do Globo, 1933, Vol. 6, p. 16)
Ficava patente a divisão dos farroupilhas frente à questão servil. Ainda que boa parte deles fosse favorável à abolição, as premências da guerra impediam a sua aprovação. Anos mais tarde o General Portinho lastimaria: “A República nunca proclamou a liberdade da escravatura (o que foi um erro); se a tivesse proclamado, poderia formar um exército de libertos de mais de 6.000 homens, porque na Província os havia.” ( PORTINHO, José Gomes. (organização e notas de Mário Pacheco Dornelles). Achegas à Araripe (Guerra Civil no RGS). Porto Alegre: Edição do Organizador, 1990, p. 37)
Fruto dessas circunstâncias, o Projeto de Constituição da República Rio-Grandense – que nunca chegou a ser votado – silenciou sobre a abolição da escravidão.
Essa divisão dos farroupilhas quanto à questão servil levará à “Traição de Porongos”, em 14 de novembro de 1944, quando Davi Canabarro – um dos líderes da “minoria”, em conluio com o Duque de Caxias – ofereceu um combate em que os “Lanceiros Negros” (desarmados na noite anterior) foram massacrados pelos imperiais. Com isso, foi eliminado o problema do que fazer com os ex-escravos que lutavam nas hostes farroupilhas. Pois conceder-lhes a liberdade seria um mau exemplo para a escravaria de todo o Brasil e enviá-los de volta às senzalas criaria um enorme risco de futuras rebeliões. Assim, foi aplainado o caminho para a paz. Mas esse é assunto para outro artigo…
Sem pretender idealizar a “Revolução Farroupilha”, nem esquecer os seus limites históricos e suas profundas contradições, não podemos deixar de perceber o seu caráter objetivamente progressista, em sua luta pela República, pela Federação e, inclusive, pela eventual abolição da escravidão – não concretizada pelas razões expostas –, no contexto de um Brasil monárquico, escravista, comandado pelos monocultores exportadores.
Da mesma forma, não compartimos a visão daqueles que consideram a opção monárquica e imperial – vitoriosa em meados do século XIX – como sendo a única capaz de manter a unidade nacional e por isso plenamente justificada. A luta dos farroupilhas e as demais rebeliões coetâneas expressam alternativas mais avançadas e democráticas que poderiam haver sido vitoriosas.
Mas, como nos ensina Karl Marx, ainda que a História seja feita em condições e circunstâncias que os homens não determinam, ela é feita pelos próprios homens!