André Luiz Machado: O Golpe de 2016 e o mundo do trabalho
Se, no início, os incautos ainda acreditavam na legalidade/legitimidade do processo de impeachment, que afastou a presidenta Dilma Rousseff, agora não podem mais duvidar de que o Brasil sofreu um golpe de Estado. A manutenção dos direitos políticos da presidente e a flexibilização dos mecanismos de abertura de crédito suplementar, um dia depois do encerramento da farsa promovida em dois atos pelo Congresso, confirmam a ruptura do Estado democrático e social de direito.
Por André Luiz Machado*
Publicado 06/09/2016 15:47
O golpe de 2016 pode ser considerado de novo tipo. Não há demonstração da força bruta dos fuzis e dos tanques, mesmo porque, no atual contexto das relações internacionais, não cairia bem uma demonstração de força desta natureza.
Em outras palavras, o Congresso Nacional, com o apoio indisfarçável do Poder Judiciário, leva a cabo a suspensão do ordenamento jurídico vigente (estado de exceção) mediante interpretações enviesadas de normas constitucionais e infraconstitucionais, com o intuito de enfiar, goela abaixo, um programa de governo sem respaldo nas urnas.
A experiência brasileira não é a única. Como se sabe, Honduras (2009) e Paraguai (2012) passaram pelo mesmo processo. Em síntese, o golpe é urdido no parlamento pelas forças políticas derrotadas nas urnas, apoiado pela mídia partidarizada e assegurado pelo Poder Judiciário.
No Brasil, para dar nomes aos bois, as forças políticas derrotadas nas urnas são capitaneadas pelo PSDB e o DEM, partidos cujos programas de governo vêm sendo rejeitados pelo voto popular desde as eleições presidenciais de 2002.
Dissemos, acima, que o golpe de 2016 se assemelha àqueles ocorridos em Honduras e no Paraguai. As coincidências vão além de meras semelhanças. É que o golpe no Brasil não pode ser analisado fora do contexto latino-americano e mundial.
Para muitos estudiosos do fenômeno da globalização, as políticas neoliberais vinham dando sinais de esgotamento a ponto de se poder pensar no advento de uma era pós-neoliberal.
Os sinais deste esgotamento poderiam ser percebidos pelos diversos movimentos de protestos ao redor do mundo como foram os casos da Primavera Árabe, nos países do norte da África, do Occuppy Wall Street, nos Estados Unidos, do Democracia Real Ya, na Espanha e, de certa forma, das mobilizações de junho de 2013 no Brasil.
Do ponto de vista do sistema eleitoral partidário, diferentemente das experiências americanas, européias e africanas, que não produziram alternância significativa no poder, na América Latina, o descontentamento com as políticas neoliberais, aplicadas, desde 1973, no Chile de Pinochet, produziu significativos reflexos nas urnas.
Desde final dos anos noventa, foram eleitos diversos presidentes com plataformas anti-neoliberais, como foram os casos de Hugo Chaves na Venezuela (1998) de Lula no Brasil (2003), Nestor e Cristina Kirchner na Argentina (2003 e 2007), Evo Morales, na Bolívia (2006), Tabaré Vasquez (2005 e 2015) e José Mujica (2010), ambos no Uruguai, Rafael Correa, no Equador (2006), Michele Bachelet no Chile (2006), Fernando Lugo no Paraguai (2008) e Ollanta Humala no Peru (2011).
Portanto, era de se esperar que as forças da reação emergissem contra os avanços consolidados por políticas públicas de transferência de renda. As forças da reação, em verdade, levantam-se em todo o mundo. O ódio racial, a xenofobia e misoginia e a homofobia voltam a se manifestar com intensidade em todos os quadrantes do mundo ocidental.
O mundo do trabalho também se encontra sob gravíssima ameaça. Antes mesmo de se consolidar o afastamento da presidenta Dilma, o PMBD, além de articular o golpe pelos bastidores, construiu uma plataforma política condensada num documento intitulado “Uma Ponte para o Futuro”.
No referido documento, quatro itens chamam a atenção: o regime de concessão ampla na exploração do petróleo (privatização total), ameaça às parcerias comerciais ajustadas com os países que integram o Mercosul e, no campo das relações de trabalho, a terceirização indiscriminada e a prevalência do negociado sobre o legislado.
Os dois últimos pontos, que dizem respeito ao mundo do trabalho, não representam propostas inovadoras. Há que se dizer que o avanço da terceirização no Brasil contou com diversas mutações jurisprudenciais no seio da Justiça do Trabalho, mesmo porque, do ponto de vista do ordenamento jurídico brasileiro, esse modelo de gestão empresarial só é permitido em dois casos: contratação de trabalhadores temporários (Lei 6.019/74) e de serviço de vigilância (Lei 7.102/83). Contudo, como se sabe, primeiro pela Súmula 256 e depois pela Súmula 331, o Tribunal Superior do Trabalho ampliou as hipóteses de terceirização para admitir a delegação de tarefas da atividade-meio empresarial.
O governo golpista de Temer, contudo, quer dar rapidez à tramitação do PLC 30/2015 cuja proposta é de terceirização irrestrita, tanto da atividade-meio, como da atividade-fim empresariais.
A terceirização indiscriminada tende a aprofundar as mazelas decorrentes deste tipo de gestão empresarial, quais sejam: redução de salário, fragilização do movimento sindical, elevação dos casos de acidente de trabalho e submissão de trabalhadores à condição análoga de escravo.
A outra proposta do programa “Uma Ponte para o Futuro” é promover a prevalência do negociado sobre o legislado. Não se sabe ainda quais os instrumentos normativos o governo golpista se utilizará para concretizar este projeto.
No passado, mais precisamente em seu segundo mandato (1999 a 2002), o ex-presidente Fernando Henrique Cardoso (um dos articuladores do golpe de 2016) tentou emplacar a prevalência do negociado sobre o legislado pela via da reforma constitucional, não tendo logrado êxito em razão da falta de legitimação no parlamento.
A prevalência do negociado sobre o legislado já é uma prática consolidada nas relações trabalhistas. O mecanismo é utilizado para elevar as condições de trabalho para além dos patamares legais vigentes e sempre na perspectiva de se aplicar a norma mais favorável ao empregado. Ora, a insistência em alterar esse mecanismo só tem uma explicação: anular a legislação mínima de proteção e permitir que sindicatos de empregadores e empregados possam celebrar pactos que consagrem desvantagens para esses últimos.
Não é sem importância ressaltar que a legislação mínima no Brasil não consiste em qualquer ameaça aos níveis de produtividade empresarial, como querem fazer crer os defensores da reforma trabalhista. Aliás, não há sequer um estudo científico sério que possa validar essa opinião, que, na realidade, não passa de uma expressão ideológica a favor do capitalismo sem restrições. Ademais, necessário é acrescentar que falar em prevalência do negociado sobre o legislado no bojo de um ordenamento jurídico trabalhista que sequer exige do empregador uma justificativa para a demissão do empregado é uma cruel e perversa ironia.
O perigo a que estamos expostos é que esse governo espúrio, por não ter sido eleito, tentará executar seus projetos de retrocesso social no menor tempo possível e, para tanto, continuará a contar com o apoio irrestrito da mídia golpista, do parlamento, do Poder Judiciário e do capital internacional.
*André Luiz Machado é juiz do Trabalho do TRT da 6ª Região.