Ricardo Carneiro sobre gestão Temer: A economia não salvará a política

O próprio governo postula que a gestão da economia exigirá medidas impopulares como reforma da previdência e trabalhista, limitação de gastos públicos, retiradas de subsídios. Está, portanto, diante de uma tarefa dificílima: tornar-se popular por meio de políticas impopulares.

Por Ricardo Carneiro*

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A consumação da ruptura constitucional, com o afastamento definitivo da presidente Dilma Rousseff põe em destaque uma questão crucial, da qual depende o futuro imediato do Brasil: pode o Governo Temer dar certo? Poderá ele equacionar as graves distorções e ineficácia do sistema político-eleitoral e, ainda, promover a retomada do crescimento econômico em patamar razoável e sustentado, compatível com a redução do desemprego e aumento da renda da população brasileira?

Para tentar responder essas perguntas este texto trabalha com dois conjuntos de questões; aquelas relativas à política e as relacionadas à economia. Sua hipótese principal é a de que só a economia salvará a política, vale dizer, esta última, a despeito de sua centralidade atingiu tal estado de entropia que, para cumprir seu papel de legitimar um governo, dependerá de um impulso externo, nesse caso, oriundo da economia. Desta hipótese derivam-se várias perguntas, como, por exemplo: qual o grau de sucesso necessário na economia para salvar a política? Por sua vez, a relação contrária também é relevante: poderão os descaminhos da política influenciar negativamente a economia?

No âmbito da política, uma questão basilar é a da popularidade. Poucas vezes no Brasil um governo iniciou com tão baixos índices de aprovação, em simultâneo com uma rejeição tão elevada. Há, é certo, uma parcela expressiva da população, cerca de 40%, que concede ao Governo Temer o benefício da dúvida, mas que certamente lhe cobrará resultados imediatos. Afinal, esta classe média verde-amarela foi às ruas pelo impeachment menos preocupada com a corrupção e mais com a potencial e real deterioração da sua situação econômica e social.

Contudo, o próprio Governo Temer postula que a gestão da economia exigirá medidas impopulares tais como reforma da previdência, reforma trabalhista, limitação de gastos públicos, retiradas de subsídios etc. Está, portanto, diante de uma tarefa dificílima: tornar-se popular por meio de políticas impopulares.

Outro aspecto bastante difícil para o novo Governo é o da legitimidade. Aqui cabe registrar desde logo o fato documentado pelas pesquisas de opinião; a grande maioria da população brasileira, cerca de 2/3 do total, prefere as eleições diretas como forma de solucionar o impasse político-institucional do país, e não o Governo Temer.

No plano internacional, a situação não é melhor. Afora os mercados financeiros e as grandes corporações, de cujas inclinações antidemocráticas não se pode duvidar, há um mal-estar difuso com a situação do Brasil. Na maioria dos países desenvolvidos, o establishment embora pouco inclinado a condenar abertamente a ruptura institucional tampouco a elogia, ou se solidariza com o novo Governo.

Nos países subdesenvolvidos, em particular na América Latina, a preocupação é maior em razão do potencial de propagação dessa nova forma de promover a rotatividade no poder. Por fim, do ponto de vista doméstico, parece evidente que uma parcela importante da sociedade, principalmente os setores populares organizados em sindicatos em movimentos sociais, jamais considerará legítimo o novo governo.

O quadro mais difícil para o Governo reside, porém, na sua sustentação política. Por duas razões essenciais: desde a democratização, excetuando-se o malfadado Governo Sarney, os governos que lograram êxito foram nucleados por um dos dois partidos com base social e programática definidas; o PSDB à direita e o PT à esquerda. A ancoragem de um Governo que terá por característica um presidencialismo de coalizão, num partido fisiológico e fragmentado como o PMDB, será uma experiência com larga propensão ao fracasso.

Ao mesmo tempo, a perspectiva das eleições presidenciais de 2018 torna os partidos da coalizão mais propensos à competição, problematizando sua unidade. A pergunta que fica é a de como agirão esses partidos no Congresso diante de uma pauta de grande impacto político e social: serão capazes de levá-la adiante ou irão desfigurá-la no balcão de negócios?

Um outro fator de pressão sobre o Governo serão os desdobramentos das investigações sobre a corrupção. É bem verdade que estas últimas já cumpriram seu principal objetivo de apear o PT do poder e buscar criminalizar a figura do ex-presidente Lula. Já é visível a desaceleração das investigações e sua seletividade ainda maior. A tentativa de livrar a cara dos próceres dos partidos da coalizão é mais do que evidente e conta com a cooperação da maioria do Judiciário.

Todavia, não é certo que este seja um processo inteiramente controlável. Primeiro, porque já foi longe demais deixando vários cadáveres insepultos. Segundo, porque nem todo o Judiciário faz o jogo do abafa; a ação dos “santos e justiceiros” pode desestabilizar o acordo tácito de engavetamento geral.

Não há dúvida de que no campo político o grande cacife do Governo é a imprensa. Para além de sua ação interessada em todos os eventos recentes, o mais importante é o seu apoio decisivo às ações do novo Governo. Mas, isto pode estar com os dias contados. Funcionou muito bem para tirar o PT do poder, mas à medida que os interesses distintos forem se manifestando na coalizão, a imprensa perderá seu caráter monolítico e sua prática de manipular a opinião pública. Em resumo, o balanço dos fatores políticos não dá margem a muito otimismo quanto aos resultados do Governo Temer. Se depender deles pode-se antever sua crescente entropia. Mas, e a economia salvará a política e o governo?

Na economia, as possibilidades de recuperar o crescimento, o emprego e a renda, estarão condicionadas por dois vetores antagônicos: no plano negativo, o estado da economia real muito deteriorado após vários anos de desaceleração, mas, principalmente, por dois anos de forte recessão provocada pela crise política. No lado positivo, a alteração das expectativas com a melhora significativa da confiança, ao menos temporária, em razão do caráter marcadamente pró-mercado da orientação do novo governo, expresso na intenção de realizar várias reformas e implantar novas regras.

Uma parte das medidas, incluindo a regra fiscal e a reforma da previdência, visaria a corrigir o desequilíbrio fiscal a médio e longo prazo, supostamente garantindo a solvência da dívida pública. A outra parte refere-se à ampliação do investimento centrado na infraestrutura, abarcando regras não só para as novas concessões, mas para a reformulação de contratos antigos e a retomada das privatizações.

O primeiro conjunto não tem impactos diretos imediatos sobre a atividade econômica. Poderá, se lograr sucesso, consolidar a confiança no Governo. Mas, seus riscos de não aprovação ou de desfiguração são elevados. As medidas restringem direitos conquistados e gastos sociais. Ademais, aguçam o conflito distributivo no âmbito do orçamento, devendo levar a importantes disputas que terão seu desaguadouro no Congresso. Se não forem aprovadas em consonância com as expectativas do mercado, o que ocorrerá?

Os eventuais impactos na atividade econômica em curto prazo advirão dos incentivos à ampliação da infraestrutura em três esferas distintas: as privatizações, a renovação de contratos e as novas concessões. Desta tríade, apenas o sucesso das novas concessões ampliará, com certeza, o investimento.

O conjunto delas terá seu desempenho determinado por dois condicionantes: o marco regulatório e o esquema de financiamento. O Governo Temer tem adotado o discurso de que a reformulação do marco regulatório – despindo-o dos equívocos do Governo Dilma – será condição necessária e suficiente para deslanchar os projetos. Ou a postura é puramente retórica, para inglês ver, ou constitui erro crasso.

O financiamento público é peça central para ampliação dos investimentos, mas o Governo Temer tem insistido na tese de que sua participação deverá ser secundária. Ou seja, ele deveria estar a cargo principalmente do setor privado e se fazer às taxas de juros de mercado. A proposição é duplamente equivocada. O financiamento da infraestrutura tem uma primeira especificidade no que tange ao prazo de construção das obras, em torno de cinco anos.

Além de não gerar fluxos de caixa durante a construção, esta última está sujeita a atrasos frequentes e a revisão de preços. Em resumo, os riscos são bem mais elevados do que em outras atividades, o que muito frequentemente limita os empréstimos de bancos e não-bancos nesta fase. Ora, diante dessas características do setor, o financiamento privado, no Brasil, é impossível: ele demandaria taxas de juros estratosféricas.

Nas privatizações, as limitações ao investimento novo aparecem magnificadas. Elas podem representar apenas transferência de ativos públicos ao setor privado. A ampliação das inversões estaria sujeita a todos os condicionantes assinalados anteriormente e provavelmente um adicional, a exigência de financiamento público para viabilizar as transferências de propriedade aos grupos privados, como ocorreu nos anos 1990, competindo com os recursos escassos destinados à atividade pelo sistema público.

Nesse caso, como na renovação dos contratos, a postura do Governo terá um papel central para determinar as prioridades, escolhendo-se entre maximizar o valor de venda/outorga por motivações fiscais, reduzir tarifas, ou ampliar a rentabilidade condicionada à ampliação dos investimentos. Pelo menos no que tange às privatizações, a orientação anunciada é utilizá-la para fechar as contas fiscais e evitar a criação de novos impostos.

No lado real da economia os estímulos ao crescimento são francamente negativos. Na frente externa, a economia global está numa conjuntura de baixo crescimento, e em desaceleração. Seu único aspecto positivo é a existência de um miniciclo de liquidez de duração incerta.

Fundado nas baixíssimas taxas de juros praticadas nos países centrais, este ciclo tem possibilitado o influxo de capitais de curto prazo para os países periféricos, em busca de um diferencial de rentabilidade. Isto tem levado à valorização de ativos nos mercados secundários e a apreciação de suas moedas. Ou seja, seus impactos nos fluxos de investimento produtivos são desprezíveis. Por outro lado, a bolha no mercado de ativos pode produzir efeitos deletérios quando da saída desses capitais especulativos. Olho no FED!

O único estímulo palpável para minorar a recessão atual no Brasil vem das variáveis ligadas ao setor externo. A indústria respondeu à desvalorização do real com aumento das exportações e, também com alguma substituição de importações, responsáveis por um crescimento localizado. A substancial valorização do real decorrente, principalmente, do ciclo de liquidez e da postura passiva do Banco Central – que o utiliza como instrumento de redução da taxa de inflação – se continuar, fará o país perder sua única fonte de dinamismo no curto prazo.

Os estímulos externos limitados têm sido amplamente contra restados pelos desestímulos domésticos. O consumo vem se retraindo continuamente, puxado pela inadimplência e alto endividamento das famílias, aumento do desemprego e queda da renda. O déficit público, por sua vez, tem capacidade de servir como alavanca para a atividade econômica reduzida. Em primeiro lugar, porque, a despeito da sua ampliação, o déficit primário, que é a parcela relevante para estimular a atividade econômica, tem peso relativamente pequeno no déficit total. Por sua vez, ele tem sido ampliado sem um sentido estratégico. Ou porque decorre da queda das receitas, atuando como um estabilizador automático, ou porque responde ao keynesianismo fisiológico, destinado a atender as demandas da base de apoio no Congresso.

Paradoxalmente, as esperanças da retomada do crescimento no curto prazo repousam nas atividades de infraestrutura, reconhecidamente um setor de grande complexidade e para o qual o Governo Temer tem anunciado medidas parciais e insuficientes.

Assim, do que foi dito sobre a economia, evidencia-se a dificuldade de recuperação do crescimento a despeito do otimismo do mercado, alavancado pela imprensa. Para além das mistificações usuais, a verdade nua e crua é que dificilmente a economia brasileira apresentará uma retomada expressiva do crescimento, em curto prazo. Claro que isto não deve ser confundido com o “business as usual”, ou seja, privatizações, fusões e aquisições etc., sem impacto na economia real.

A síntese das duas dimensões sugere que a economia não salvará a política. Como decorrência, os déficits de popularidade e legitimidade do Governo Temer deverão se ampliar. A partir de certo momento, passado o entusiasmo inicial, e confrontados com a dura realidade e com a perspectiva da eleição presidencial de 2018, este quadro será agravado pelo acirramento da luta política dentro da coalizão. Daí em diante, a política jogará um papel negativo para a economia com o que o insucesso do Governo Temer estará garantido.

*Ricardo Carneiro é professor titular do Instituto de Economia da Unicamp e ex-diretor executivo pelo Brasil no Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID)