Guadalupe Carniel: Não incitamos a violência… ela apenas acontece
Eu poderia começar falando do campeonato argentino que após um longo e tenebroso (bota tenebroso nisso!) tempo voltou. Mas não. Hoje vim falar da maldita ideia de torcida única. A tábua de salvação do futebol. Ou não.
Por Guadalupe Carniel*
Publicado 01/09/2016 14:52
Em julho, durante o clássico rosarino, Newell's e Central pela Copa Santa Fé, tinha tudo para ser um jogo tranquilo, já que ambas equipes entraram com os reservas para ganharem experiência e era com torcida única (na Argentina agora todos os clássicos são apenas com hinchas locales). Mas aconteceu briga e até agora ninguém sabe ao certo porque. Fala-se que um torcedor entrou com uma arma ou que brigaram por trapos. E tudo ficou por isso mesmo.
Na última segunda em partida válida pela Primera D entre Juventud Unida e Leandro Alem, só com torcida do Juventud outro problema: no intervalo um grupo de hinchas tentou invadir o campo enquanto outro foi até os dirigentes do Leandro para apedrejar. Os torcedores simplesmente foram embora do mesmo jeito que foram à partida, de ônibus.
O que esses jogos tem em comum? Torcida única. Que foi muito bem ressaltado pela mídia argentina. Claro, eu não sou cínica ao ponto de falar que os torcedores são santos. Longe disso. Mas tirá-los de dentro dos estádios como se toda a violência fosse culpa única e exclusiva das torcidas pela rivalidade é demais. Não faço ideia de quem tenha sido a pessoa que criou a torcida única, só sei que é alguém que nunca pisou numa arquibancada de madeira ou concreto.
Acho fácil demonizar os torcedores. Mas nem todos que estão lá são violentos. E nem todos os caras violentos são torcedores. Às vezes o estopim vem da polícia, como no caso Hillsborough.
Acredito piamente naquela música que os chilenos cantaram há alguns anos "que lo escuche el gobierno que lo escuche la gente, yo soy hincha de futbol yo no soy deliquente, los bombos y las banderas no generan violencia…'' Quem se informa pelos grandes veículos tem a visão superficial e banalizada de torcida. Mas ela vai bem além disso.
Aliás por falar em Chile, o país criou um dos programas mais estúpidos que eu já vi: Programa Estádio Seguro. Nos estádios, as torcidas são proibidas de entrar. Lá não tem mais chuva de papel picado, não tem instrumentos, não tem mais nada. O que era uma ideia brilhante para trazer de volta a família aos estádios, matou a arquibancada.
O Brasil fez a mesma coisa no estado de São Paulo. Clássicos até o final do ano só com uma torcida. Já disse e repito: o que acontece nas arquibancadas é puro reflexo da sociedade. Não inventamos a violência dentro das arquibancadas. Somos um dos países mais violentos do mundo. Enquanto algumas centenas de milhares morrem em guerras pelo mundo, aqui vivemos uma guerra civil que não tem previsão pra acabar, infelizmente e, em um ano, mata mais do que nos países que convivem diariamente com conflitos armados.
As pessoas vão a estádios como sua válvula de escape. Tem gente que tem tanta coisa acumulada que acaba indo pra cancha descontar toda sua raiva. Não estou justificando, mas precisa-se entender e fazer algo realmente a respeito do que acontece e não apenas fechar os olhos e falar “vamos banir as torcidas”. Não é uma camisa que vai fazer o fulano deixar de fazer besteira. Não são os instrumentos, não são as bandeiras, não são as faixas de protesto, camisas ou torcedores (aqueles que vão mesmo pra cantar e apoiar até o fim) o problema. Ele é maior. Enquanto o Estado tratar todos como bandidos e acreditar que a polícia (que comprovadamente utiliza uma fórmula fracassada) tem que reprimir a todos, viveremos esse horror. Dentro e fora das arquibancadas.