Com Temer, Minha Casa, Minha Vida abandona famílias de baixa renda
Os 100 dias de governo interino de Michel Temer deixam duras marcas nas políticas que garantem direito à cidade e habitação, avaliam movimentos sociais e especialistas no tema. Entre os retrocessos apontados, destaca-se a suspensão do Minha Casa Minha Vida, principal programa habitacional do país, para as faixas de renda mais baixa, a redução drástica de orçamento para desenvolvimento urbano, a desaceleração do crédito habitacional e a criminalização dos movimentos sociais.
Publicado 20/08/2016 12:18
O presidente interino contratou a construção de moradias pelo Minha Casa Minha Vida apenas para as famílias com renda entre R$ 2.351 e R$ 6.500 (equivalente às faixas dois e três do programa). A regra vale também na modalidade chamada Entidades, na qual associações ligadas a movimentos sociais são inteiramente responsáveis pelo projeto, seguindo um modelo criado pela presidenta Dilma Rousseff. Durante os governos Luiz Inácio Lula da Silva e Dilma a faixa de renda um, de até R$ 1.800, foi a mais contemplada.
"Atualmente, quase 90% do déficit habitacional do país está nas famílias com renda equivalente à faixa um, que é a mais vulnerável. Qualquer aprofundamento na situação econômica pode fazer com que as pessoas nessa faixa caiam em uma situação de vulnerabilidade que pode ser irreversível. Ela vai para a rua e é difícil voltar", afirmou o urbanista Anderson Kazuo Nakano, professor da Fundação Getúlio Vargas.
Com a suspensão das faixas que atendem os mais pobres, o Minha Casa Minha Vida deixará de incorporar R$ 70 bilhões no Produto Interno Bruto (PIB) em três anos, até 2018, como estima a Frente Ampla de Trabalhadores e Trabalhadoras do Serviço Público pela Democracia, que produziu um relatório sobre o tema. Em 2016, o PIB da construção já registra retração equivalente de 7,6%. O total de empregos com carteira assinada é de 2,9 milhões de trabalhadores, semelhante ao do início de 2010.
"Esses 100 primeiros dias já demostram que o governo Temer não tem preocupação em manter o programa que construiu o maior número de moradias para a população de baixa renda", criticou o coordenador do Movimento dos Trabalhadores Sem Teto (MTST), Josué Rocha. "Nada do que está previsto é para baixa renda, que deveria ser priorizada por uma política de Estado. Mas Temer optou pela contratação para faixas superiores. Isso mostra uma escolha."
O governo interino também não assumiu a meta da terceira fase do Minha Casa Minha Vida, que previa a construção de pelo menos 2 milhões de unidades habitacionais até 2018. Segundo o Ministério das Cidades, em 2016 devem ser contratadas 400 mil unidades das faixas dois e três. Além disso, Temer alterou as regras para cobrança das prestações dos imóveis do programa, inclusive para os contratos já assinados. Na prática essa mudança pode invalidar milhares de termos de adesão.
"Ministro das Cidades interino (Bruno Araújo) demonstra desconhecer o processo de produção social da moradia, com forte participação dos movimentos populares, conquista de mais de 30 anos de luta a partir da redemocratização pós ditadura", diz o relatório publicado pela Frente.
O Minha Casa Minha Vida foi lançado em 2009 como uma alternativa para acelerar o crescimento econômico em um momento de crise internacional, por meio da distribuição de fortes subsídios à construção de moradias para as camadas de renda mais baixa, valorizando a descentralização territorial dessas construções, que se espalharam pelas grandes e pequenas cidades do país.
O programa tenta enfrentar um déficit habitacional de mais de 5,4 milhões de casas no país. Até 30 de junho, o Minha Casa Minha Vida havia contratado 4.359.396 unidades habitacionais, das quais 2.926.381 já foram entregues (67,12% do total). Ao todo, pelo menos 11 milhões de pessoas foram beneficiadas pelo programa.
Muito além da moradia
Os retrocessos não se resumem às políticas de habitação. "O Ministério das Cidades foi criado para implantar uma ampla política nacional de desenvolvimento urbana, baseada em políticas de habitação, saneamento básico, mobilidade urbana e reordenamentos fundiários. Se nos basearmos nessa referência houve um retrocesso enorme nessa área. Antes do Temer já vinha se desenhando isso, agora temos um agravamento por conta da crise, mas sobretudo da falta de prioridades do atual ministro das cidades", diz o urbanista Kazuo Nakano.
Temer prepara uma série de medidas para impedir a utilização de instrumentos de acesso à terra previstos no Estatuto das Cidades e em outras legislações específicas. Além disso, o governo interino não reconheceu o Conselho das Cidades e suas instâncias de participação, ignorando um modelo de gestão democrática das cidades. "O Ministério das Cidades tem tido pouquíssimo diálogo com a sociedade civil ligada a setores urbanos. Toda a estrutura está bastante opaca. Ao mesmo tempo os problemas das cidades não param de crescer", afirma Nakano.
Desde que foi aprovado o Estatuto da Cidade, em 2001, o processo de elaboração de políticas para a cidade tornou-se mais democrático e descentralizado. O governo federal passou a organizar conferências das cidades, que reuniam diversos segmentos do poder público e da sociedade civil para discutir políticas urbanas.
Outro ponto que chama a atenção é a redução de verba destinada ao ministério. "A paralisia aumentou porque não tem mais orçamento. No caso da habitação você percebe o retrocesso, porque tinha muito orçamento para o Minha Casa Minha Vida e agora não tem mais. As outras áreas tinham o mínimo de orçamento e agora não tem nenhum", avalia Nakano. "A gente sabe que a vida nas cidades não é só ter quatro paredes. A crise de mobilidade, por exemplo, exige políticas específicas. Saneamento básico e ambiental também."
No mesmo pacote veio a redução do crédito para aquisição de imóveis por meio dos bancos públicos e a criminalização dos movimentos sociais. "A escolha do ministro da Justiça (Alexandre de Moraes) já mostra qual vai ser a opção de Temer no trato com os movimentos sociais. Todas as declarações dele são no sentido de criminalizar os movimentos para restringir os protestos", diz o coordenador do MTST. "A redução nos gastos públicos em saúde e educação também será um problema grave para as cidades. Os serviços podem entrar em colapso", alerta.