Publicado 19/08/2016 12:13
Uma guinada radical e acelerada nas diretrizes da política externa passou a ocorrer desde a posse de José Serra na pasta das Relações Exteriores, em maio passado. Em seu discurso de posse Serra foi claro: passaria rapidamente a colocar em marcha as diretrizes derrotadas nas urnas desde 2002. O que de fato vem mudando e qual o significado desta guinada para a sociedade brasileira e para um projeto de país justo e democrático?
Uma das primeiras diretrizes anunciadas anunciava o fim de “preferências ideológicas de um partido político”. Porém, o que está acontecendo de fato é a transformação do Ministério das Relações Exteriores (MRE) em um comitê eleitoral de Serra, com o aparelhamento e contratação de seus assessores particulares para postos cruciais – com perfis controversos, para se dizer o mínimo, como um assessor envolvido no massacre de Carandiru – e a transformação de meios de comunicação do ministério, como o site e perfis de redes sociais, em espaços de culto à personalidade e de promoção política do ministro.
A retórica do enfrentamento da crise dos cofres do ministério, acompanhada de anúncios de fechamento de representações do país na África, é confrontada com notícias de gastos suntuosos de milhões de dólares com jantares durante os Jogos Olímpicos.
A apropriação do MRE e da política externa para os interesses partidários, eleitorais e particulares de Serra e seu grupo trazem sérias consequências para a sociedade brasileira. Desde 2003, organizações e movimentos sociais vinham tentando abrir o diálogo com o Itamaraty com vistas a tornarem a política externa uma política pública, formulada não mais em diálogo apenas com setores do empresariado e do agronegócio mas também com outros setores da sociedade afetados pelas decisões de política externa.
As iniciativas em prol da democratização da política externa vinham avançando ao longo dos governos Lula e Dilma, ainda que a passos lentos e irregulares, mas com clara vontade política de abrir a interlocução com trabalhadores do campo e cidade, consumidores, organizações de direitos humanos, de defesa da educação, saúde e serviços públicos.
Tais diálogos vinham amadurecendo na direção da criação de um Conselho Nacional de Política Externa, a ser integrado por todos os setores envolvidos e afetados pelas diretrizes desta política.
Havia o reconhecimento de que negociações de comércio, integração regional, cooperação, meio ambiente e mudanças climáticas, e em múltiplas outras frentes do sistema multilateral, afetam diretamente os direitos de amplos setores da sociedade e significam perdas ou ganhos a depender da posição negociadora.
Uma negociação comercial em agricultura, por exemplo, seja sobre regras na OMC ou em acordos bilaterais, pode ou resultar em rendição às corporações de países do Norte que comandam a cadeia transnacional da indústria alimentar ou em regras que defendam o direito à alimentação saudável produzida localmente.
Idem em uma negociação sobre comércio de serviços, que deve resistir aos interesses das grandes corporações que vendem pacotes de educação global à distância em detrimento da educação pública, ou de grandes empresas que controlam as fontes de energia e de água no planeta em prejuízo do acesso universal.
Quando o Brasil, durante o período da política externa ativa e altiva, defendia a ênfase no sistema multilateral e resistia ao avanço das negociações bilaterais e bi-regionais com grandes potências, o fazia consciente de que a correlação de forças no ambiente multilateral é mais favorável à defesa dos direitos das maiorias frente às corporações transnacionais e às grandes potências.
Serra, agora, pondo em prática a diretriz derrotada nas urnas e criticando em sua posse a “adesão exclusiva e paralisadora aos esforços multilaterais no âmbito da Organização Mundial do Comércio, como aconteceu desde a década passada”, decide-se pela rendição aos interesses dos países do Norte, beneficiando exclusivamente os interesses de lucros de alguns poucos setores exportadores do país em detrimento dos direitos sociais e trabalhistas.
Ao incorporar a Secretaria Executiva da Camex ao MRE, Serra está explicitando a centralidade dos interesses de setores como a Fiesp, Firjan, CNI e CNA na definição dos rumos da inserção externa do País.
Outra diretriz em seu discurso de posse falava do papel do Brasil em matéria ambiental e climática – “se fizermos bem a lição de casa, poderemos receber recursos caudalosos de entidades internacionais interessadas em nos ajudar a preservar as florestas e as reservas de água e biodiversidade do planeta”.
Antes de Serra o Brasil vinha defendendo, nas negociações multilaterais ambientais e de clima, compromissos com políticas e fundos públicos globais, de modo a combater o avanço dos interesses do mercado e das grandes corporações nesta agenda. Em seu discurso de posse, Serra fez um claro aceno de boas-vindas aos interesses privados e ao mercado financeiro.
A cereja do bolo da tragédia do desmonte da política externa que havia sido eleita pelas urnas é o descompromisso do Brasil com a integração regional. A recente atitude do Brasil, comandada por Serra alinhado com Macri, presidente da Argentina, ao recusar a Venezuela na presidência do Mercosul, é um ataque ideológico inaceitável e uma ruptura das regras e da institucionalidade do bloco.
O Brasil não será nada no mundo se não se enxergar como região. Desde 2002, a sociedade brasileira vem elegendo nas urnas diretrizes de política externa voltadas à democratização do sistema internacional, à valorização do papel do Brasil na construção de relações equilibradas e baseadas nos princípios da complementaridade e solidariedade ativa, principalmente entre países do Sul e na América Latina.
Apostar na concertação latino-americana é decisivo para que a região amplie sua autonomia em relação às grandes potências. Apostar no multilateralismo, na cooperação Sul-Sul, no fortalecimento de um ambiente global a favor dos direitos dos povos e não das corporações é crucial.
É preciso recuperar o governo legitimamente eleito e a política externa escolhida nas urnas, para que seja possível retomar a agenda de democratização da formação da política externa dentro do país, e do papel do Brasil na democratização do sistema internacional.
*Fátima Mello é integrante do Grupo de Reflexão sobre Relações Internacionais/GR-RI