Paulo Lins: “A música é o campo de luta e da resistência negra”
Em entrevista dada ao jornal italiano La Republica, o escritor Paulo Lins fala sobre o filme Cidade de Deus, seus livros e a vida dos cidadãos pobres e negros no Brasil e Rio de Janeiro. Ao jornal, o escritor classifica claramente como golpe de Estado o processo de impedimento conduzido no país e que as políticas de Lula e Dilma, boas para a população pobre brasileira, estão sendo extintas pelo governo golpista.
Publicado 15/08/2016 17:24
Confira a íntegra da entrevista:
“Eu nasci no Estácio de Sá, bairro do Rio de Janeiro, onde noventa anos atrás, no final dos anos 1920, nasceu o samba”, diz o escritor Paulo Lins, de 58 anos, autor do livro a partir do qual Fernando Meirelles se inspirou para fazer o filme Cidade de Deus. “Quando eu tinha sete anos minha família se mudou para Cidade de Deus, onde morei até completar trinta anos.”
“Eu era o filho mais novo e só consegui me formar graças a meus irmãos, que trabalhavam e pagavam os meus estudos. Eu fui a primeira pessoa graduada na família. Comecei a escrever fazendo revisão das letras das escolas de samba que se preparam para o Carnaval. Eles vieram à minha procura porque eu era um professor de Língua Portuguesa e as letras sempre tinham um monte de erros. Depois eu também fui compositor.”
O livro Cidade de Deus é de vinte anos atrás. Depois dele, você escreveu recentemente Desde que o Samba é Samba, por quê tanta demora?
Porque no Brasil não se pode viver escrevendo livros e eu tinha que fazer muitos outros trabalhos: desde revisão de texto a roteiros para a televisão. Já foi professor, trabalhei dando aulas de redação na universidade, colaborando com os jornais.
Que mudança teve a favela Cidade de Deus nesses vinte anos?
A medalha de Rafaela Silva, a judoca brasileira que vive ali e que ganhou o ouro, é um símbolo dessa mudança. Ela pode praticar estes esportes, especialmente por meio dos investimentos em todas as áreas sociais dos governos Lula e Dilma. Não só na Cidade de Deus, mas em todo o Brasil. Muitos programas deles para as classes mais pobres do país tiveram um efeito positivo nos últimos 15 anos. Para as famílias pobres, tornou-se mais fácil enviar seus filhos para a escola e deixá-los chegar à universidade, conseguir uma bolsa, um empréstimo bancário. Lula e Dilma trabalharam para a redistribuição da riqueza e implementaram importantes políticas contra a pobreza. Mas, infelizmente, agora tudo isso acabou.
No seu último livro, você conta a história da emancipação dos negros no Brasil. Qual é a situação hoje?
É que a emancipação não existe. Eu moro em um prédio de classe média em São Paulo e sou o único negro no edifício. No Rio, nos bairros mais da classe média e bonita, é difícil encontrar uma família de negros. Os negros estão todos nas favelas. Não tem negros em posições de poder institucional, nas profissões, na TV. Para os negros é muito difícil acessar a universidade. Tem negros importantes só na cultura, especialmente na música. A música é nosso campo de luta e resistência para sobreviver, mas os brancos no Brasil já tentaram fazer desaparecer isso, mesmo a nossa cultura.
O Brasil é um país racista?
O Brasil há 500 anos é dominado por uma elite branca que não faz nada para capacitar os negros, que na maioria dos casos, são os pobres, porque ela quer continuar a permanecer no poder. Ela não tem nenhuma intenção de dividir [o poder]. Há uma coisa de que falamos muito pouco: o Brasil, em geral, mas sobretudo o Rio de Janeiro, é o lugar do mundo onde se matam mais negros. Aqui existe uma guerra étnica, é uma guerra de baixa intensidade, mas uma guerra. No Rio há uma polícia assassina e um governo que confunde a violência com o tráfico de drogas e que deveria combater o tráfico de armas e implementar programas de redistribuição de renda e inclusão social e educação dos mais pobres.
O que achou da eleição de Barack Obama a presidente dos Estados Unidos?
Não é apenas um presidente negro eleito que pode fazer algo sobre a emancipação. Na verdade, até mesmo a polícia americana continua a matar, especialmente os negros. Mas os europeus continuam a rejeitar a simples verdade que parte da sua riqueza foi acumulada com a escravidão, com o tráfego de escravos africanos. E apesar disso, hoje as políticas de migração contra os africanos são as mais perversas do mundo.
Qual é a sua opinião sobre o impeachment de Dilma Rousseff?
Isso foi um golpe político institucional. Se tornou presidente o líder de um partido que, desde que a democracia retornou ao Brasil, nunca deixou de eleger um presidente. Foram as pessoas pobres que votaram em Dilma, mas a velha elite branca brasileira se organizou para retornar ao poder. Os brancos brasileiros apoiaram o golpe de Estado e agora eles querem manter na liderança do país um golpista para continuar a governar contra os pobres, por não questionar qualquer um dos seus antigos privilégios. Neste sentido, a elite política branca é malvada e antidemocrática.
Você foi criticado por ter revelado, em seu último livro, que o homem considerado como o pai do samba moderno, Ismael Silva, era gay. Por que você fez isso?
Contra a hipocrisia imperante no pais. A nível institucional no Brasil existem uniões civis para gays, mas este é um país homofóbico. Onde os gays são atacados e mortos na rua.
O que você acha da imagem internacional de Rio de Janeiro como cidade da felicidade?
Onde há um negro, há música, há samba. Por isso o Rio, às vezes, é uma cidade feliz.