Paulo Abrão se despede para assumir a secretaria da CIDH
O presidente da Comissão de Anistia do Brasil, Paulo Abrão, ex-secretário da Justiça, foi selecionado no fim de julho para ser o novo secretário-executivo da Comissão Interamericana de Direitos Humanos para os próximos quatro anos. Ele tembém é secretário-executivo do Instituto de Políticas Públicas de Direitos Humanos do Mercosul e era o responsável políticas de reparação e memória para as vítimas da ditadura brasileira.
Publicado 12/08/2016 09:21
Em sua despedida, o brasileiro escreveu uma carta em que ele faz um retrospecto sobre os trabalhos desenvolvidos pela Comissão de Anistia. Há quase nove anos na Comissão, Paulo Abrão faz uma avaliação do trabalho desenvolvido como o da reparação do Estado diante das vítimas da ditadura militar existente no Brasil por 21 anos. 'Ressignificamos o conceito de anistia – não mais como perdão a quem resistiu, mas como pedido de desculpas devidos pelo Estado àqueles atingidos pelos atos de exceção. Buscamos ampliar a política de reparação para além da dimensão econômica, alcançando uma dimensão moral e simbólica", diz na Carta.
Para ocupar à presidência da Comissão da Anistia, Paulo Abrão recomenda o nome a Conselheira Eneá de Stutz de Almeida. "Pensamos que é chegada a hora de uma presidenta mulher para a Comissão de Anistia! Eneá possui doutorado em direito, é professora do Curso de Doutorado em Direito da UnB, reside em Brasília, estudiosa do tema, já tem a experiência como conselheira da Comissão".
"Minha tarefa agora passa a defender o fortalecimento do Sistema Interamericano de Direitos Humanos, como último recurso de justiça para as vítimas e seus familiares em toda a nossa região hemisférica".
Sobre a despedida do amigo, o vice-presidente do PCdoB, Walter Sorrentino diz que Paulo Abrão merece todas as homenagens, pois é "um dos mais insignes democratas" que se "impôs perante a Nação nestes anos progressistas e democráticos do ciclo político aberto em 2003 com Lula Presidente".
Walter escreveu em seu blog que Paulo, à frente da Comissão, "foi a face mais saliente de uma demanda histórica, simbólica, de alto significado humano e democrático. Merece os elogios de todo o Brasil", publicou em homenagem ao amigo.
Abaixo, a carta de Paulo Abrão:
Aos membros do CASC, do Fórum de Representantes das Associações de Anistiandos e Anistiados,
Esta mensagem é um pedido de autorização, uma prestação de contas e uma proposta.
O pedido de autorização é para que vocês me liberem da trincheira da Comissão de Anistia para eu poder ocupar uma posição em uma nova frente de ação.
A questão é que há uma incompatibilidade do meu novo emprego com a permanência na presidência da CA.
É uma incompatibilidade que não é apenas física (existe a dificuldade de seguir mantendo pelo menos uma viagem por mês ao Brasil, como hoje atualmente faço, para vir presidir as sessões plenárias da CA em Brasília, em virtude do aumento significativo da distância) mas também é uma incompatibilidade técnica porque, como sabem, a CIDH recepciona e patrocina perante a Corte Interamericana alguns casos da ditadura brasileira, o mais recente deles o caso Herzog.
Minha tarefa agora passa a defender o fortalecimento do Sistema Interamericano de Direitos Humanos, como último recurso de justiça para as vítimas e seus familiares em toda a nossa região hemisférica.
Eu tive a sorte de estar na CA por um pouco mais que 9 anos, ao lado de valorosos companheiros e companheiras de jornada.
Ressignificamos o conceito de anistia – não mais como perdão a quem resistiu, mas como pedido de desculpas devidos pelo Estado àqueles atingidos pelos atos de exceção.
Buscamos ampliar a política de reparação para além da dimensão econômica, alcançando uma dimensão moral e simbólica.
Criamos políticas públicas de Memória, como os projetos Marcas da Memória, as Caravanas da Anistia (percorrendo todo o Brasil com atos e debates públicos), às inúmeras Anistias Culturais, as oficinas pedagógicas, os eventos internacionais, os seminários, as produções culturais e muitas publicações, a mais destacada delas a série da Revista da Anistia, o primeiro periódico em língua portuguesa dedicado à Justiça de Transição.
Agregamos uma lógica de articulação de alianças institucionais estratégicas, fomentando a rede acadêmica brasileira IDEJUST, depois a Rede Latino Americana de Justiça de Transição e ainda depois a Rede Latino Americana de Reparação Psíquica.
Por meio de projeto de cooperação internacional (apoio PNUD), conectamos o caso brasileiro com inúmeros estudiosos internacionais bem como outros ativistas e organizações de todo o mundo. Fomos beber na fonte dos avanços de nossos países irmãos e vizinhos em busca de justiça em terra pátria.
No plano da participação social, abrimos a Comissão de Anistia para a supervisão e orientação dos representantes dos perseguidos políticos: instituímos o CASC – Comitê de Acompanhamento da Sociedade Civil e também o Fórum dos Representantes das Entidades da Sociedade Civil.
As Clínicas do Testemunho abriram uma inédita frente de atendimento e apoio psicológico para quem se sentiu a vontade em participar. Hoje, além do atendimento clínico aos afetados pela ditadura e seus familiares, elas capacitam atores do sistema de saúde pública para o atendimento às vítimas da violência institucional do presente, com apoio internacional. As pontes entre o passado e o futuro estão fortalecidas.
A construção do Memorial da Anistia merece um capítulo à parte. Demanda histórica dos movimentos sociais – além de uma obrigação do Estado Brasileiro na sentença da Corte IDH e da Justiça Federal no caso Araguaia, de uma recomendação da Comissão da Verdade e de parte do Plano Plurianual do país – está em plena construção. Com dificuldades, é certo, advindas de fatos supervenientes inesperados, tal qual o problema técnico das fundações do edifício histórico, ou problemas burocráticos – não tenham dúvida de que alguns tentaram obstaculizar o seu avanço e construção. Mas o fato é que hoje se trata de um projeto em implantação, sem retorno, com apoio da UFMG, Prefeitura de BH, Governo de MG, Ministério da Cultura, IPHAN, BNDES e PNUD. E cujo projeto museológico representa a história da resistência brasileira, com seu mapa curatorial desenhado sob muitas mãos e referendado por consulta pública. Acreditamos que a UFMG vai seguir em frente com seu compromisso de entregar a primeira fase das obras este ano, caso não sejam interrompidos os repasses dos recursos. Peço a todos muita atenção e prioridade ao seguimento desta política e equipamento público permanente, que será o espaço de continuidade no futuro da preservação da memória da luta por justiça de transição no Brasil. Filiem-se todos à Associação dos Amigos do Memorial da Anistia!
Neste tempo, também cabe festejar que foi indenizada a UNE, que hoje reconstrói a sua sede no Flamengo!
Por sua vez, o alcance social da repressão ditatorial foi desnudado pelas mais de 90 Caravanas da Anistia: em cada canto do Brasil, as vozes caladas no passado assumiram o seu devido protagonismo, as memórias privadas transformaram-se em patrimônio nacional, as dores foram desindividualizadas e viabilizadas e os diversos grupos como operários, camponeses, indígenas, militares da resistência, trabalhadores de todas as categorias no setor público e civil, migrantes, estrangeiros, filhos e netos da resistência foram incorporados ao rol daqueles outros já reconhecidos como sujeitos do direito à memória, à reparação, à verdade e à justiça.
Ajudamos a reforçar a luta social histórica para romper uma cultura do medo e enfrentar todo o tabu em torno da lei de anistia, indevidamente interpretada como regra de impunidade. O STF um dia deverá retirar o Brasil da situação de ser a única democracia latino-americana a manter uma lei de anistia em vigência, a despeito dos tratados e convenções internacionais. Há muito o que fazer e as frentes de batalhas ainda não acabaram nesta seara. O Brasil ainda será um país onde os crimes contra a humanidade serão considerados imprescritíveis e impassíveis de anistia. Essa é uma questão de princípio para a Comissão de Anistia que certamente não vai abrir mão.
Neste tempo de história da CA, mais de 65.000 petições de anistia foram analisadas, apesar de que ainda são muitos companheiros que ainda aguardam seu pedido de reparação analisado ou revisto. Assim como são muitos os que precisam seguir com a atenção psicológica, são muitos os projetos de memória aguardando apoio para serem devidamente preservaria, são muitos os ‘tijolos’ a serem fixados na obra do Memorial.
Uma outra boa notícia é que já conseguimos digitalizar 100% do acervo da CA, investimento de profundo cuidado com os arquivos das vítimas, e também pudemos implementar um célere sistema de gestão processual eletrônica. A criação do Laboratório de Tecnologia sobre Memória e Direitos Humanos, com recursos de última geração, permite as mais sofisticadas pesquisas e inteligenciamento de dados sobre o nosso acervo e para o estímulo ao estudo presente e futuro sobre a ditadura e seus feitos nos padrões de violência institucional.
Mas a despeito de tantas conquistas (e claro que alguns erros tambem), a verdade é que esta prestação de contas nada mais é do que uma continuidade das lutas do passado, dos comitês pela anistia, dos familiares dos mortos e desaparecidos, dos ex-presos e perseguidos políticos, dos trabalhadores civis, públicos e militares demitidos injustamente. Apenas seguimos a toada.
Absolutamente nada foi resultado de virtudes individuais. Mas de uma grande e linda construção coletiva: estivemos ao lado de inúmeras pessoas que dedicaram suas vidas pessoais e profissionais para colocar a ética da memória acima da ética do esquecimento. Seria um sacrilégio tentar nominar cada um dos que compuseram o time da Comissão de Anistia nestes últimos 9 anos! Ou dos que nos apoiaram, constituindo-se numa rede imensa de colaboradores e alianças. Aproveito para deixar o registro do meu agradecimento a cada um deles e delas. Sei também que dirijo-me a vocês em nome de cada um deles, pois a relação de confiança sempre foi a fortaleza do nosso trabalho.
É por isso que, ao pedir ao autorização de todos vocês – os movimentos e lutadores sociais – para eu poder seguir com uma nova atribuição, e consciente de que essa jornada é uma construção coletiva, os conselheiros me incumbiram de dar conhecimento a todos e todas de uma sugestão para que seja nomeada próxima presidenta a Conselheira Eneá de Stutz de Almeida. Pensamos que é chegada a hora de uma presidenta mulher para a Comissão de Anistia!
Eneá possui doutorado em direito, é professora do Curso de Doutorado em Direito da UnB, reside em Brasília, estudiosa do tema, já tem a experiência como conselheira da Comissão.
É importante juntar todos os movimentos em torno de um nome comum para garantir a sua nomeação formal, pois sabemos que a Comissão de Anistia não é órgão de governo. É órgão de Estado e seu fundamento é o artigo 8º do ADCT da Constituição da República. Seu programa de reparação integral – econômica, coletiva, simbólica/moral e psicológica precisa prosseguir.
Quero finalizar dizendo que todo este tempo escutei milhares de testemunhos. Eles me contaminaram, eu me emocionei demasiadamente e, posso dizer, “cresci muito” (sem piadas por favor). Eu me arrisco a dizer que me sinto um de vocês.
Um caloroso e combativo abraço em todas e todos, deixando o meu muito obrigado por terem transformado a minha vida.
Com o coração (muito, mas muito) apertado, seguimos juntos em frente.