Publicado 19/07/2016 13:22
Desculpe reproduzi-lo aqui, assim tão baixo, tão ofensivo, tão equivocado; mas penso ser necessário porque, apesar de ilógico, representa o pensamento de uma parcela considerável da nossa população: aquela que apoia o projeto Escola sem Partido e elege parlamentares violentadores dos direitos humanos.
“Quem tem que ensinar comportamento sexual adequado é a família, escola não é lugar de doutrinação gayzista”; “Professor serve para ensinar, se quiser dar o cu, vá dar longe de sala”; “Nenhum professor tem o direito de usar sua posição para induzir uma criança a desenvolver transexualismo nem homossexualismo” (sic.); “Gênero é o cacete, é transtorno de personalidade e ponto”.
Acreditem: esses são todos comentários reais, “argumentos” em defesa da não-discussão sobre gênero nas escolas. Muito me espanta o quanto as pessoas pensam que suas posições são frágeis: falar sobre algo significaria se tornar esse algo.
Não há nada disso de uma “apologia” nas discussões do gênero, como alguns insistem em repetir equivocadamente. Há apenas conversa e entendimento de que existem diferenças de existência no mundo que devem ser respeitadas.
Mas o que me choca ainda mais nesses comentários é a confusão que fazem do significado de gênero.
Desde quando o termo é sinônimo de orientação sexual ou, em casos extremamente disparatados, de perversões e fantasias sexuais?
Essa é uma pergunta retórica que respondo já: desde nunca. Falar do gênero é falar de todo mundo. Falar sobre o tema é questionar um regime de poder, que institui o homem branco heteronormativo como a regra, o patriarcado. Falar sobre gênero é nos propormos a pensar sobre o porquê das mulheres pintarem as unhas e, homens, não; sobre o porquê da boneca ser “brinquedo de menina” e, o carrinho, “de menino”, por exemplo.
Nós devemos muito à discussão sobre gênero. Sem ela, nós mulheres não teríamos conquistado o direito ao voto, o direito a usar calças, o direito a trabalharmos fora de casa, a frequentarmos a universidade. Sem ela, os homens, ou “pais de família”, se assim preferem os mais conservadores, não teriam conquistado a ampliação da licença paternidade recentemente. Todas essas questões partem de uma discussão prévia, antiga porém tímida, sobre o gênero.
Sem ela, mulheres ainda estariam fechadas dentro de casa, sem lugar: enquanto solteiras, na terra dos pais, seriam passageiras, e enquanto casadas, o lar é do marido, como já disse Rami, personagem de Paulina Chiziane.
Sem discussão sobre gênero, mulheres são estrangeiras no mundo, têm a voz diminuída, têm o comportamento silenciado e domesticado – mulher precisa fechar as pernas, falar baixo, concordar.
Mas eu entendo essas pessoas tão cheias de ódio no coração quando nos propomos a questionar esse regime de poder. Dever ser muito triste nascer homem pensando que a mulher está aí para apenas dizer sim, e, de repente, chega uma mulher toda empoderada, falando para ele lavar as próprias louças.
Deve ser muito triste ter que lavar uma cueca depois de anos acreditando que elas aparecem magicamente limpas, passadas e dobradas dentro do armário.
Falar sobre o gênero incomoda não por ser uma “apologia gayzista” (porque não é), mas por mexer na base da nossa estrutura social, da qual homens brancos heteronormativos se apropriam diariamente, há muitos séculos e sem escrúpulos.
O universal é masculino. Quando falamos de todos, falamos “eles”.Chamar uma multidão pelo feminino é ultrajante. Mas por quê? E é essa interrogação pequena e aparentemente inofensiva que carrega toda a potência do gênero. É ela o grande perigo aos que hoje dominam todos os discursos.
Por quê?
Só saberemos a resposta falando sobre gênero. E nenhum lugar é melhor para isso do que a escola, local das inquietações, dos questionamentos e dos aprendizados.
* Raisa Pina é jornalista e pesquisadora da Instituto de Bioética, Direitos Humanos e Gênero (Anis)