Desigualdade social e xenofobia: combustíveis do racismo nos EUA
A base material dos conflitos raciais é a profunda desigualdade social que separa brancos de negros, tendo o racismo como base simbólica
Por Juarez Xavier*
Publicado 18/07/2016 20:10
Os conflitos raciais nos EUA expõem a trinca de uma sociedade dividida em dois mundos: o branco –cercado de vantagens comparativas- e o negro –submisso às diversas formas de violências físicas e simbólicas. A brutalidade da polícia é a face derradeira dessa disparidade de condições, que se estende para todos os principais indicadores sociais.
conflitos raciais
As conquistas solidificadas nas lutas políticas pelos direitos civis foram sendo desmontadas, por políticas de austeridade seletivas, pelas administrações republicanas conservadoras.
Nem mesmo a eleição de um presidente negro, Barack Hussein Obama II (2009-2016) foi capaz de cessar e reverter esse processo. A base material dos conflitos é a profunda desigualdade social que separa brancos de negros. O racismo –ideia de uma suposta superioridade racial- é a base simbólica, convertida em força material, incorporado às relações sociais cotidianas.
Os números evidenciam o tamanho dessa rachadura em cinco círculos que sãos o centros dessas desigualdades: renda entre os grupos sociais, situação da população carcerária, condições escolares, violência policial e direito à moradia.
Em 2014, a BBC produziu reportagem em que analisou os principais indicadores de cada um desses espaços sociais.
As pesquisas das instituições que serviram de fonte mantêm as linhas observadas antes, mas com curva ascendente.
É profunda a desigualdade de renda entre os brancos e os afro-americanos. Com base na variação entre 1983 e 2010, os brancos têm em média seis vezes mais patrimônio do que os negros e hispânicos [Urban Institute].
As prisões são os locais onde essas diferentes se materializam. Os negros do sexo masculino recebem penas maiores do que os brancos, nas mesmas situações [U.S. Sentencing Commission].
Os afro-americanos representam 12% da população nacional. Mas os negros representam 40% da população carcerária [Stanford University].
Nas escolas, os negros têm índices de suspensão e expulsão maiores dos que os brancos, numa proporção de 16% contra 5% [Office of Civil Rights – US Department of Education].
A situação atinge meninos e meninas. A diferença se amplia quando comparada as condições dos dois grupos no ensino superior: os brancos com mais de 25 anos têm mais chances de concluir a licenciatura do que os negros: 34% contra 21% [Pew Research Center].
A percepção do tratamento dispensado aos negros e hispânicos se encaixa a realidade. Setenta por cento dos negros e 37% dos brancos acreditam que as oportunidades concretas da sociedade são negativas para não brancos [Pew Research Center].
A crise imobiliária aprofundou a linha do “apartheid norte-americano”. A população negra tem menos casa própria do que a população branca. Os brancos com casa própria somavam (2013) 73,4%. Os negros, 43,2%. Os hispânicos também estão abaixo da média nacional (65,2%), com 45,5% [United States Census Bureau].
As casas dos negros são menos valorizadas. A segregação residencial opera como fator de desvalorização dos imóveis das famílias negras. As hipotecas dessas famílias são de alto risco, mais vulneráveis à execução e à oscilação de preços [Brandeis University].
A arquiteta e urbanista brasileira Raquel Rolnik observou esse fenômeno, quando foi relatora especial da Organização das Nações Unidas (ONU) para o Direito à Moradia Adequada [2008-2014]. De acordo com os seus relatos, o peso da crise imobiliária de 2008 caiu sobre os ombros das populações negras e hispânicas, expulsas de suas moradias e bairros. Elas arcaram com o mico dos papéis pobres pulverizados pela queda dos preços nas bolsas de valores mundiais.
Os governos conservadores que se sucederam desde a década de 1970 deram a sua contribuição para esse cenário de desigualdade, com a adoção de políticas neoliberais e seus impactos negativos para a população negra: Richard Milhous Nixon (1969-1974), Gerald Rudolph Ford Jr (1974-1977), Ronald Wilson Reagan (1981-1989), George Herbert Walker Bush (1989-1993), George Walker Bush (2001-2009).
Para o pesquisador da Universidade do Texas (Austin) Joseph Straubhaar, a crise atual é resultado de acertos e erros na adoção das políticas dos direitos civis. Para ele, essas políticas tiveram êxitos na promoção do acesso ao direito de voto, à educação de qualidade e à mobilidade social. Mas, “todos nós subestimamos três questão importantes”: a durabilidade e a força do racismo, em especial nos estados do Sul; a ligação do racismo óbvio com o racismo mais sutil de caráter econômico, que bloqueou o acesso ao crédito para a população negra na compra da casa própria e a reação –“blackash” -contra a perda de poder dos brancos, em especial homens das velhas gerações –“força motora por trás do ‘Tea Party’ [articulação conservadora] e da campanha de [Donald John] ‘Trump’”, pelo Partido Republicano.
É nesse cenário de desigualdade e ressentimento racista que atua a polícia norte-americana. Para Straubhaar, o aparelho repressivo policial se deslocou do bloco dos direitos civis, e passou a operar segundo o “ethos local”, onde se concentram os incidente e as mortes. “A situação piorou desde o ‘11 de setembro’ [ataque às torres gêmeas do World Trade Center, na cidade de Nova Iorque], com a militarização das polícias, o aumento do uso de armamentos pesados, a presença da SWAT [Special Weapons And Tactics] e manifestações paranoicas contra os imigrantes, islâmicos e negros”.
O problema da violência está no racismo institucional da polícia, diz o pesquisador da Texas A&M International University, Stuart Davis. Para ele, a instituição policial se separou dos cidadãos. As ações de violência da corporação são investigadas pela própria polícia. “A parte da polícia [Assuntos Internos] investiga as ocorrências, enquanto os sindicatos [como a “Ordem Fraterna da Política”] defendem os oficiais”. Esse mecanismo, de acordo com Davis, forma um circuito de impunidade, com intimidações a políticos e jornalistas interessados nas investigações das violações de direitos.
As violências raciais nos Estados Unidos, com particular evidência nos estados do Sul [American South], região mais conservadora, são resultado de profundas desigualdades sociais, que separam brancos de afro-americanos e hispânicos, no acesso às oportunidades sociais.
O desmonte sistemático das conquistas políticas dos direitos civis aprofundaram, nas últimas décadas, as contradições econômicas, sociais, culturais e políticas, pano de fundo dos assassinatos consentidos de jovens negros e hispânicos.
O foco das denúncias do movimento “Black Lives Matter (BLM)– Vidas Negras Importam” –com forte apoio entre jovens e artistas, como a cantora Beyoncé Giselle Knowles-Carter – são as manobras dos grupos conservadores, com os republicanos à frente, para reduzir a força política das comunidades negras e hispânicas.
A Suprema Corte de Justiça dos Estados Unidos recusou, em abril deste ano, proposta de republicanos conservadores, para modificar as normas eleitorais, com a redução da representação dos circuitos com maior população negra e hispânica, para beneficiar os circuitos com maioria da população branca.
Os discursos racistas, xenófobos, homófobos e machistas de Trump –em sintonia com os discursos de intolerância de fundo nazifascistas em várias partes do mundo, inclusive no Brasil- alimentam os conflitos raciais nos Estados Unidos -nos dois lados da fronteira racial, como se viu nos últimos acontecimentos, em que o veterano Micah Xavier Johnson, 25, matou cinco oficiais.
É esse discurso de ódio que é o passaporte que alimenta as violências racistas de policiais incrustados no aparelho repressivo do estado, para quem as “as vidas negras não importam”, como denunciam os jovens negros, hispânicos e brancos do BLM.
*Professor da Faculdade de Arquitetura, Artes e Comunicação da Unesp de Bauru e Coordenador do Núcleo Negro da Unesp para Pesquisa e Extensão (NUPE). Integra o Programa de Pós-Graduação San Tiago Dantas (UNESP / UNICAMP / PUC-SP).