Luís Edmundo Araújo: Pelos imigrantes
Na disputa dos últimos anos pelo posto de melhor jogador do mundo havia, sempre houve por parte da nossa grande imprensa corporativa uma certa tendência, a preferência às vezes sutil, outras nem tanto, pelo argentino Lionel Messi, silencioso, avesso a declarações polêmicas, na dele, genial dentro do campo e, agora, condenado na Espanha por sonegação milionária, e em euros, o que para a mídia nacional, convenhamos, nem costuma ser tratado como um crime tão grave assim.
Por Luis Edmundo Araujo*
Publicado 12/07/2016 19:06
De Cristiano Ronaldo víamos as caras, as bocas, um pouco das grandes jogadas, arrancadas, golaços e a ajeitada no cabelo, a mirada no telão e mais toda a gama de trejeitos que ele continuará a fazer após a conquista da Eurocopa, inédita para Portugal. Por isso a surpresa com a referência clara do capitão da seleção portuguesa, com o agradecimento direto dele aos imigrantes em meio à multidão em festa, o que em tempos de craques e ex-craques omissos ou dissimuladamente golpistas, com raras exceções aqui e lá fora, já é um alento.
A Eurocopa não começou bem para Cristiano Ronaldo, que passou em branco nas duas primeiras rodadas, exagerou na vaidade na estreia ao ignorar o capitão adversário, mexendo com os brios de toda a Islândia, e ainda perdeu um pênalti no segundo jogo, contra a Áustria. Só na terceira partida, no empate de 3 a 3 contra a Hungria, o atacante português pode se tornar, enfim, o único jogador da história a marcar em quatro edições seguidas da Eurocopa, desde 2004, e com um golaço de letra, depois outro pra ajudar a garantir a classificação portuguesa às oitavas-de-final sem uma vitória sequer, mas também sem derrotas, ora pois.
Quaresma CroáciaNo primeiro mata-mata, Cristiano Ronaldo quase se consagrou nos minutos finais da prorrogação do zero a zero resistente contra a Croácia. No contra-ataque fulminante após boa chance desperdiçada pelos croatas, a bola sobrou pra ele cara a cara com o goleiro, mas com a defesa parcial de Subasik, a honra do gol da vitória mais emocionante da campanha coube a um cigano de origem, Ricardo Quaresma. Nas quartas-de-final, depois de Lewandowski abrir o placar para a Polônia, Renato Sanches, português de Lisboa mas de origem caboverdiana, fez o gol do empate que levou à decisão por pênaltis onde, no incentivo a João Moutinho, Cristiano Ronaldo começou a mostrar o tamanho de sua liderança na equipe.
Na semifinal ele bateu outro recorde ao abrir o placar na cabeçada fulminante, tornando-se, com 9 gols em quatro edições, o maior artilheiro de todas as Eurocopas. Também nascido em Cabo Verde, Nani, que já tinha feito os gols de empate no 1 a 1 com a Islândia e contra a Hungria, fez o segundo contra País de Gales, que sacramentou a ida à final em que Cristiano Ronaldo ganhou ares do rei sumido em África e eternamente desejado pelos portugueses, Dom Sebastião, com um quê de El Cid, primeiro no drama de sua contusão, na tentativa desesperada de voltar e no choro final, na maca, que emocionou portugueses e franceses no estádio, e a quem mais tenha visto a cena pela tevê, e depois no renascimento fora do campo, mancando e incentivando seus companheiros até o choro dessa vez de alegria, com o apito final e o título ganho na prorrogação graças ao gol de Éder, nascido em Guiné-Bissau.
Tirando os três de Cristiano Ronaldo, todos os outros gols de Portugal na conquista da Eurocopa foram de imigrantes nascidos ou originários de outro país, de outro continente ou etnia, como os milhões que, na crise migratória atual, viraram refugiados, morrem afogados, são chutados e insultados enquanto fogem do extermínio, da miséria, da fome e das guerras. Pode até ter sido jogada de marketing, como alguns acreditam, ainda mais após Cristiano Ronaldo se recusar a trocar de camisa contra a seleção de Israel e depois aceitar participar de um comercial fazendo exatamente o gesto negado. Mas só de tocar no assunto tão diretamente, em tempos de manifestações racistas, elitistas, sem a menor vergonha pelo mundo afora e por aqui também, o atacante português merece elogios.
Cristiano Ronaldo já entrou em campo com o filho do refugiado sírio que, com o garoto no colo, foi agredido pela cinegrafista húngara de triste memória. Com a conquista da Eurocopa, subiu de patamar no pedestal da história, de um um dos melhores do mundo de sua época para os maiores de todos tempos, um pouco abaixo de Pelé, menos ainda do Maradona e do Garrincha, a milímetros do Romário e ao lado do Zidane, do Beckenbauer, do Cruyff, do Ronaldo, do Didi…
E acima, um pouco só, do Messi, isso na bola, porque de resto, a diferença entre os dois é bem maior. Se continuar com declarações como a de domingo, porém, é capaz de Cristiano Ronaldo mesmo vitorioso, mesmo alçado à categoria de lenda nacional, voltar a ser tratado daqui a pouco por aqui com aquele ligeiro clima de vilão vaidoso da história, enquanto o craque argentino discreto, calado, nada polêmico e sonegador, não deve perder nunca a aura de mocinho. A conferir.