Luiz Araújo: Os trabalhadores rurais no contexto da Previdência Social

Como parte da série de artigos do Centro Nacional de Estudos Sindicais e do Trabalho (CES) sobre os impactos do golpe na vida dos trabalhadores e trabalhadoras brasileiro, o  professor de assuntos rurais do CES, Luiz Gonzaga Araújo*, aborda a questão dos trabalhadores e trabalhadoras rurais no contexto da Previdência Social, antes e depois da Constituição Federal de 1988. Leia o artigo abaixo: 

Os trabalhadores rurais no contexto da Previdência Social

I – Evolução Histórica – da década de 60 a Constituição Federal de 1988

Na década de 60, precisamente em 1963, a grande conquista para os trabalhadores rurais foi a criação do Estatuto do Trabalhador Rural, através da Lei nº 4.214. Com ele, pela primeira vez, foi definido numa lei que os trabalhadores rurais passariam a ter acesso à previdência social, por meio do Fundo de Assistência ao Trabalhador Rural.

No período anterior à Constituição de 1988 e sua regulamentação, os trabalhadores rurais possuíam regime próprio de previdência, conhecido como Prorural-Funrural – Programa de Assistência ao Trabalhador Rural, criado pela Lei complementar nº 11, de 25 de maio de 1971. Este programa de caráter assistencial, assegurava benefícios no valor de 1/2 (meio) salário mínimo, cujo acesso era restrito aos trabalhadores rurais que mantinham a condição de chefe de família. Portanto as mulheres e os jovens estavam fora deste programa, exceto em relação à pensão por morte. Como visto, o FUNRURAL tinha como regra a exclusão “privilegiando” somente os homens. Neste parágrafo apenas com a finalidade de demarcar a questão de gênero não há referência à expressão trabalhadora.

Como a média de idade no meio rural ficava abaixo dos 60 anos nas décadas de 60 e 70, poucos eram os trabalhadores “homens” que conseguiam ter acesso a tal benefício.

Na década de 70 o Movimento Sindical dos Trabalhadores Rurais, sob a coordenação da Confederação Nacional dos Trabalhadores na Agricultura (CONTAG), não se conformando com o modelo assistencial implantado pela ditadura militar, promoveu grandes mobilizações, visando a igualdade de direitos trabalhistas e previdenciários entre os trabalhadores rurais e urbanos.

O III Congresso Nacional de Trabalhadores Rurais realizado pela CONTAG em 1979- dentre várias frentes de lutas importantes, como por exemplo a realização de uma reforma agrária ampla e massiva, radicalizou na proposta referente a um modelo de previdência social voltado para os trabalhadores e trabalhadoras rurais, agricultores familiares e assalariados rurais equiparado ao que era determinado para os trabalhadores urbanos. Neste Congresso foi aprovada uma proposta de projeto de lei, que seria encaminhado ao Congresso Nacional.

Somente em 1988, por força da vigência do novo direito constitucional, os trabalhadores rurais (agricultores familiares e assalariados) foram incluídos no Regime Geral de Previdência social (RGPS), cujos direitos assegurados foram: benefícios previdenciários no valor de um salário mínimo; aposentadoria por idade aos 60 anos para os homens e 55 para as mulheres, aposentadoria por invalidez, pensão por morte, salário-maternidade e auxílio-doença.

O artigo 195, § 8º da Constituição Federal, deu tratamento diferenciado aos agricultores familiares, dispensando aos mesmos, a seguinte definição:

“O produtor, o parceiro, o meeiro e o arrendatário rurais, o garimpeiro e o pescador artesanal, bem como os respectivos cônjuges, que exercem suas atividades em regime de economia familiar, sem empregados permanentes, contribuirão para a seguridade social mediante a aplicação de uma alíquota sobre o resultado da comercialização da produção e farão jus aos benefícios nos termos da lei”. Deste conjunto de trabalhadores e trabalhadoras, somente os garimpeiros perderam a condição e estão fora. A intenção do legislador constituinte tinha por finalidade dar maior proteção possível ao grupo familiar.

A regulamentação de que trata o referido dispositivo referente à contribuição deste segmento para a seguridade social. tem assento no artigo 25, incisos I e II da Lei 8292/91, que fixa uma contribuição de 2,1% sobre a receita bruta advinda da comercialização da produção. Portanto, não é correta a afirmação dos que defendem a saída dos trabalhadores rurais da previdência, sob o argumento da inexistência de regras e bases legais que garantem a contribuição do agricultor familiar para a seguridade social. A baixa contribuição do agricultor familiar para a previdência não deve servir de disfarce para se promover a retirada dos trabalhadores rurais do Regime Geral da Previdência Social.

O Artigo 11, inciso VII na redação dada pela Lei nº 11.718/2008 define o segurado especial, da seguinte forma:

“ a pessoa física residente no imóvel rural ou em aglomerado urbano ou rural próximo a ele que, individualmente ou em regime de economia familiar, ainda que com o auxílio eventual de terceiros, na condição de:

a) produtor, seja proprietário, usufrutuário, possuidor, assentado, parceiro ou meeiro outorgados, comodatário ou arrendatário rurais, que explore atividade:

1 – agropecuária em área de até 4 (quatro) módulos fiscais;

2 – de seringueiro ou extrativista vegetal que exerça suas atividades nos termos do inciso XII do caput do art. 2º da Lei nº 9.985, de 18 de julho de 2000, e faça dessas atividades o principal meio de vida;

b) pescador artesanal ou a este assemelhado que faça da pesca profissão habitual ou principal meio de vida;

c) cônjuge ou companheiro, bem como filho maior de 16 (dezesseis) anos de idade ou a este equiparado, do segurado de que tratam as alíneas a e b deste inciso, que, comprovadamente, trabalhem com o grupo familiar respectivo”.

O § 1º deste artigo, assim define regime de economia familiar:

“Entende-se como regime de economia familiar a atividade em que o trabalho dos membros da família é indispensável à própria subsistência e ao desenvolvimento socioeconômico do núcleo familiar e é exercido em condições de mútua dependência e colaboração, sem a utilização de empregados permanentes”.

A partir deste conceito, extraem-se algumas considerações relevantes: a primeira diz respeito a uma visão distorcida do que seja agricultor familiar que- para a previdência social é denominado segurado (a) especial, somente se enquadra nesta categoria as pessoas que produzem apenas para a subsistência, conforme fora conceituado originariamente pela Lei nº 8.213/91.

Como visto, a redação da Lei nº 11.718/08 inova de forma justa ao ampliar o conceito de segurado  special, quando ultrapassa a barreira da subsistência ao acrescentar a expressão desenvolvimento socioeconômico do núcleo familiar. A segunda questão igualmente importante, diz respeito à contratação por até 120 (cento e vinte) dias ano, de mão de obra assalariada, sem que para isso os membros do grupo familiar percam a condição de segurados especiais.

Quanto aos assalariados rurais, a base conceitual está contida no art. 11, inciso I, a, da Lei nº 8.213/91, que traz a seguinte redação:

“aquele que presta serviço de natureza urbana ou rural, em caráter não eventual, sob sua subordinação e mediante remuneração, inclusive como diretor empregado”.

Até junho de 2008 os trabalhadores rurais assalariado, que trabalhavam em atividades de curta duração, para acessarem os seus benefícios junto à previdência social, precisavam apenas comprovar a carência correspondente ao benefício requerido, acompanhado de início de prova material, tal qual ocorre com o segurado especial.

Com a entrada em vigor da Lei nº 11.718/2008, que efetuou várias mudanças no campo da previdência social dos trabalhadores rurais e criou regras de contribuição e carência para os assalariados rurais que trabalham em atividades de curta duração, a referida Lei estabelece o seguinte:

a) a partir de janeiro de 2011 até dezembro de 2015, para cada mês comprovado de emprego será multiplicado por 3 (três), para efeito de carência, limitado a 12 (doze) meses, dentro do respectivo ano civil;

b) a partir de janeiro de 2016 até dezembro de 2020, cada mês comprovado de emprego será multiplicado por 2 (dois) para efeito de carência, limitado em 12 (doze) meses dentro do respectivo ano civil;

c) a partir de janeiro de 2021, cada mês trabalhado corresponde a um mês de carência.
Com a finalidade de tornar mais clara a realidade dos trabalhadores rurais assalariados, é importante que se compreenda qual é o tamanho, onde está e qual é o grau de informalidade. Então vejamos:

De acordo com os dados da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (PNAD/2013), que serviram de base para a elaboração do Plano Nacional dos Trabalhadores Rurais Empregados (PLANATRE), existem no Brasil 4,0 milhões de trabalhadores rurais empregados no Brasil. Estes trabalhadores são em sua maioria, pretos ou pardos com 68,7% do total, os brancos representam 30,8% e os indígenas e amarelos 0,4%. Destes trabalhadores, 51,2 residem em área urbana ou semiurbana e entre os que trabalham na informalidade, 45,9% residem em áreas exclusivamente rurais. Os trabalhadores do sexo masculino representam 88,9% e do sexo feminino 11,1%.

A informalidade é maior no meio rural do que no meio urbano. A taxa de informalidade no meio urbano é cerca de 28% e no meio rural de 60%.

A informalidade se constitui grande problema para a previdência. De acordo com a pesquisa, a média de trabalhadores rurais empregados que contribuem para a previdência é de apenas 43,6, ou seja, a cada dez empregados, somente quatro contribuem. Entre os informais, somente 5,1 recolhem as contribuições para a previdência.

A partir destes dados, constata-se que há graves problemas que precisam ser resolvidos em relação à previdência social dos  trabalhadores rurais assalariados além, evidentemente, dos graves desrespeitos às garantias dos direitos trabalhistas.

II – Período pós Constituição

No início da década de 90, ostrabalhadores rurais- através de suas entidades representativas, Sindicatos, Federações e a CONTAG realizaram grandes mobilizações com o objetivo de garantir a manutenção e a operacionalização dos direitos previstos na Constituição Federal de 1988, que o governo insistia em não colocar em prática, mesmo depois de serem regulamentados através das Leis 8212 e 8213, ambas de 24 de julho de 1991.

O ingresso dos trabalhadores rurais no Regime Geral de Previdência Social, provocou forte reação dos governos Sarney, Collor e Fernando Henrique Cardoso.

Incialmente isso se manifestou pela demora na regulamentação da Constituição, bem como pela ausência de preparo e formação dos funcionários do Instituto Nacional do Seguro Social (INSS) e dos Correios e, depois, pela permanente ameaça de realizar uma reforma que eliminasse os direitos duramente conquistados.

A resistência era tamanha, a ponto do ex-presidente José Sarney -num de seus pronunciamentos no programa Conversa ao pé do rádio, da Presidência da República, afirmar em 1987 que se os (as) trabalhadores rurais passassem a integrar a previdência social, o Brasil iria quebrar. Esse discurso permaneceu durante os governos Collor e Fernando Henrique Cardoso.

Na Proposta de Emenda Constitucional (PEC) que tramitou no Congresso Nacional nos anos de 1997/1998, que resultou na EC 20/1998, continha a expressa retirada dos direitos dos trabalhadores rurais, previstos constitucionalmente, como a varredura do texto constitucional do § 8º do artigo 195, que traz o conceito de agricultor familiar, elevação da idade para fins de aposentadoria em 5 (cinco) anos e a desconstitucionalização do salário mínimo.

Uma das justificativas para o desmonte da previdência social dos trabalhadoresrurais por aqueles governos e por significativa parcela de deputados e senadores, pela grande mídia e por grande parte dos economistas era que a previdência rural é uma das grandes responsáveis pelo chamado “déficit” deste sistema. Naquele período, tanto o executivo federal, quanto um grande número de parlamentares defendiam o retorno dos trabalhadores  rurais para o regime assistencial de então.

Nos dias atuais, com o aval do governo interino que ai está e ancorado no Programa uma Ponte para o Futuro, coloca novamente a reforma da previdência como sendo uma tábua de salvação para o país e, mais uma vez, a conta cai sobre a classe trabalhadora, colocando novamente os trabalhadores rurais como os grandes vilões, sob o argumento de eles estão quebrando a previdência social. Só falta dizer que esse importante segmento está quebrando o Brasil.

III – Impacto da Previdência Social na economia dos Municípios e na vida das pessoas
Com a inserção dos  trabalhadores no Regime Geral de Previdência Social – RGPS, a previdência social tem sido a política pública que gera o maior impacto econômico e social na vida das pessoas e na economia de mais de 70% dos municípios superando, inclusive, os repasses do governo federal através do Fundo de Participação dos Municípios (FPM).

A Associação Nacional dos Fiscais de Contribuições Previdenciárias (ANFIP), através de importante pesquisa realizada sob a coordenação de Álvaro Sólon de França, em todos os Municípios brasileiros, constatou que em 3.154 dos 5.507 municípios no país os pagamentos dos benefícios da previdência social superam aos repasses do Fundo de Participação dos Municípios (FPM).

O comércio local só funciona, na prática, nos dias de pagamento dos aposentados (as) e pensionistas rurais e, em menor escala, por ocasião do pagamento dos funcionários públicos.
Outro dado importante que merece ser citado, é o fato de que em torno de cada aposentado rural há 2,5 dependentes. Regra geral são netos.


IV – Reforma da Previdência Social

Até dezembro deste ano, o Presidente da República em exercício, pretende enviar ao Congresso Nacional uma proposta de reforma da previdência social. Sabe-se que estão sendo desenterrados alguns pontos que faziam parte da reforma previdenciária que ocorreu em 1998, como: desvinculação do valor dos benefícios previdenciários do salário mínimo; elevação e equiparação do limite de idade para aposentadoria aos de 65 anos para homens e mulheres e alterações nas regras de acesso à pensão por morte.

Voltando à conversa ao pé do rádio do ex-presidente Sarney, que disse “se os trabalhadores rurais forem para a previdência social o Brasil vai quebrar” a toada continua a mesma em relação aos rabalhadores rurais no atual governo, que dá nítidos sinais de que é preciso alterar as regras de financiamento para os  segurados especiais que, de acordo com o § 8º do art. 195 da Constituição Federal de 1988, a contribuição recai sobre a produção comercializada. A retirada deste parágrafo também fazia parte de reforma empreendida no governo Fernando Henrique Cardoso. Está voltando tudo de novo.

Ao longo destes quase 28 anos da vigência da Constituição Federal, ocorreram muitas alterações na legislação previdenciária, digamos reformas silenciosas através de Medidas Provisórias e Projetos de Leis aprovados pelo Congresso Nacional, sempre retirando direitos e extinguindo o Ministério da Previdência Social.

A Confederação Nacional dosTrabalhadores na Agricultura (CONTAG) a exemplo do que ocorreu durante a reforma previdenciária de 1998, novamente se posiciona totalmente contrária à reforma da previdência social que ora se apresenta com a perspectiva de retirada de direitos dos trabalhadores rurais. Artigo publicado no jornal da entidade, nº 135, de junho de 2016.

V – Conclusão

Os trabalhadores  rurais, precisaram percorrer um longo caminho de lutas e desafios a partir da década de 60 até 1988, buscando justiça social e direitos equiparados aos trabalhadores urbanos , inclusive perante a previdência social.

A travessia foi longa e de muitas dificuldades, com exclusão, preconceitos, descumprimento da lei, o trabalho escravo e infantil presentes em várias cadeias produtivas, como cana-de-açúcar, carvão, sisal, fumo, pecuária, dentre outras atividades.

A manutenção dos direitos previdenciários dos trabalhadores rurais foi assegurada, fundamentalmente, pela luta e mobilizações incansáveis destes através das suas entidades de classe.

Hoje, vive-se o mesmo terror daquele período. Para evitar mais um retrocesso, os diversos movimentos sociais e sindicais se articulam, novamente, para impedir a retirada de direitos duramente conquistados e assegurados pela Constituição.

A CONTAG, as Federações a ela filiadas e os Sindicatos de Trabalhadores Rurais estão mobilizados nacionalmente e lutando para impedir qualquer alteração na Constituição Federal e na lei que retire os direitos da classe trabalhadora.

Referências

Constituição Federal
Lei 8.212/91 – Plano de Custeio da Previdência Social
Lei 8.213/91 – Plano de Benefícios da Previdência Social
Lei 4.214/63 – Estatuto do Trabalhador Rural
Relatórios de atividades da CONTAG
A Previdência Social nos Municípios – 2ª Edição – ANFIP

*Luiz Gonzaga Araújo é Advogado, consultor em Seguridade Social, sócio do Escritório Luiz Gonzaga Advogado Associados e professor de assuntos rurais do Centro Nacional de Estudos Sindicais e do Trabalho.