A Comissão de Impeachment e a farsa do direito de defesa
Enquanto a população se contorce para entender o que acontece com o país diante da crise político-institucional, o afastamento da Presidenta eleita e a existência de um governo interino, que em um mês e meio de existência já protagonizou recuos de toda natureza.
Por Tânia M. S. Oliveira*, no Empório do Direito
Publicado 03/07/2016 10:39
Extinção de pastas e políticas públicas, queda de três ministros sob acusação de tentativa de obstrução da justiça, nenhuma resposta positiva de indicadores econômicos e os mesmos índices de rejeição da titular do cargo em seu momento mais extremo, ocorre no Senado da República, em um colegiado de 21 membros, a análise do pedido de impeachment.
Instalada oficialmente no dia 26 de abril último, a Comissão Especial destinada a apreciar a Denúncia nº 01, de 2016 no Senado Federal, que pede a apuração de suposto crime de responsabilidade cometido pela Presidenta da República Dilma Rousseff é, desde o seu início, um jogo de cartas marcadas, sem qualquer novidade no resultado das votações, onde a maioria dos membros é publicamente favorável ao pedido.
Dentro da lógica parlamentar das disputas, o funcionamento do colegiado é caracterizado por um amplo conjunto de controvérsias e desacordos. A construção dos consensos encontra pouco espaço. O diálogo é bastante acalorado e envolve práticas por vezes muito próximas de arbitrariedades antidemocráticas, perpetradas nos limites de uma realidade que se quer dizer democrática, dentro do espaço de afirmação de poder de maioria. Fácil que se visualize, no conflito posto, imposições de decisões de um coletivo numericamente maior, operadas a partir da desobediência a imperativos que garantam à minoria não ser sufocada e atropelada, no que seria categórico o atendimento – máxime em um processo que é político-jurídico – aos princípios do devido processo legal.
Na percepção do discurso que afirma o poder, é fácil decifrar o comportamento de senadores favoráveis ao impeachment, que costumam interditar o debate com o jargão: “a minoria esperneia e a maioria vota”, acusando de chicana a ação de colegas seus que firmam a necessidade de que se prove juridicamente o cometimento de crime de responsabilidade pela Presidenta da República, condição jurídica sem a qual não se mostra possível o julgamento do mérito do pedido de impedimento.
Presidida pelo Senador Raimundo Lira (PMDB-PB), a Comissão escolheu como relator o Senador Antonio Anastasia, do PSDB, partido que encomendara parecer jurídico para a feitura do pedido originário de impeachment, pagando a quantia de 45 mil Reais à Senhora Janaína Conceição Paschoal, advogada e autora da denúncia, que tem, ainda, como signatário o Senhor Miguel Reale Júnior, também advogado, filiado e militante da mesma agremiação partidária. Não menos relevante é o fato de ter o relator, Senador Anastasia, utilizado o que se convencionou chamar de “pedaladas fiscais” inúmeras vezes como governador do Estado de Minas Gerais, sendo esse um dos “crimes” de que acusa a Presidenta da República em seu parecer que determinara a abertura do processo no dia 11 de maio de 2016, fatos sobre os quais o Senador sequer se dera ao trabalho de esboçar qualquer negativa.
Sua escolha para a relatoria fora o demonstrativo primeiro da intenção de dar uma roupagem de aparente juridicidade ao rito de impeachment apesar do parlamentar, que costuma ser apresentado pelos seus colegas como “grande constitucionalista” ser professor de Direito Administrativo e não ter nenhuma especialização em Direito Constitucional, segundo seu currículo oficial.
Dadas suas premissas, é nas agressões ao direito de defesa que a Comissão Especial de Impeachment demonstra, dia após dia, a falta de compromisso com o devido processo legal, suprimindo procedimentos essenciais e acelerando prazos.
A postura de fundo que orienta as ações é a de promover, dentro da maior brevidade possível, a votação em Plenário do pedido de impedimento, como forma de atender à demanda do governo provisório de se instalar definitivamente no comando. O “calendário” proposto pelo relator estabeleceu o prazo de onze dias para produção de provas. O número de testemunhas da defesa, consideradas em oito para cada fato, bem assim a realização de perícia técnica, foram questionados e indeferidos na Comissão, sendo repostos apenas por decisão do Presidente do Supremo Tribunal Federal, Ricardo Lewandowski, ao acatar recursos apresentados pela defesa da Presidenta e por senadores de sua base parlamentar.
Esse açodamento conduz a impropriedades e a desmedidas de toda ordem. A imposição de ouvir várias testemunhas por dia todos os dias da semana levam à exaustão o conjunto de membros, repercutindo direta e negativamente sobre o esclarecimento dos fatos. Afobação e atropelo que revelam os lamentáveis sinais dos tempos, em que a pressa é apenas o desejo de alcançar o objetivo já dado, não de buscar verdade ou justiça. Ao invés de dados, subterfúgios, em uma rotina de inércia do pensamento, em que pouco importam os inúmeros fundamentos que demonstrem a inexistência de crime de responsabilidade.
Rotineiramente imbuídos da tarefa de conferir toda pressa ao processo, ao temor de que o governo interino seja ameaçado pelos próprios escândalos e mazelas, senadores tentam minimizar, com o uso de bordões e falácias, a indispensabilidade da produção de provas. Alegam que o fornecimento de dados e documentos comprometeria o cumprimento do prazo. Aliás, em um deslocamento do mundo real, como se prazo houvesse para trâmite processual. E em uma inversão de valores e princípios, asseveram que buscar provas é procrastinação. Em sua urgência, protagonizam, paradoxalmente, justo aquilo que acusam a defesa da Presidenta de fazer: manobras capciosas para acelerar o julgamento e a votação.
Em apenas 46 dias após o recebimento da denúncia, afiançada por uma imprensa cuja cobertura, ao invés de identificar os verdadeiros dilemas de provas, divulga tão somente o que lhe interessa e nos moldes que convém, enfatizando a superfície dos debates menos significantes para o mérito, com a atuação teatral de uma advogada de acusação que dá discurso estritamente político, comportando-se como parlamentar, a Comissão Especial de Impeachment é um espectro do desprezo ao devido processo legal, decorrente de uma denúncia com base jurídica notadamente frágil.
No cotidiano, a busca dos dirigentes da Comissão de dar uma aparência de legitimidade a seu funcionamento não impede que seus membros, na ansiedade de uma definição mais célere, pretendam diminuir o direito de defesa e o respeito às regras do Estado de Direito, de tal modo que as possibilidades virtuosas de que o órgão colegiado pudesse ser um canal de elucidação de fatos sucumbiu aos seus erros e precipitações.
A decisão no âmbito da Comissão são favas contadas – ou votos contados como se preferir. O que ficar para a história a partir de seu funcionamento é que muito dirá sobre nossas escolhas civilizatórias e nossa democracia.