Leda Paulani:Com plano neoliberal de Temer, direitos vão para o buraco
Para a economista Leda Paulani, o programa que o governo provisório de Michel Temer leva adiante é “absolutamente neoliberal” e vai no sentido de reduzir as possibilidades de o Estado interferir na economia e mesmo de fazer política pública. Segundo ela, se concretizada esta plataforma, o quadro que se delineia é de retrocesso. Estará em risco a garantia de emprego, de direitos trabalhistas e de políticas e serviços públicos básicos e de qualidade, avaliou.
Por Joana Rozowykwiat
Publicado 27/06/2016 20:13
“Tudo em que se avançou em termos de direitos sociais, trabalhistas – fora a questão cultural, na qual nem vou entrar, estou falando do ponto de vista material –, isso tudo vai para o buraco rapidinho. Inclusive conquistas pré-Constituição de 1988”, previu a professora da Faculdade de Economia e Administração da Universidade de São Paulo (USP).
De acordo com ela, caso o Plano Temer vá adiante, a população terá perdas em várias direções. “Porque a política econômica que está sendo implementada deve aprofundar a crise e aprofundar o desemprego. E também porque os serviços públicos pioram muito, do ponto de vista quantitativo e qualitativo, quando você começa a reduzir muito os recursos que o Estado aplica na Saúde e na Educação”, afirmou, em entrevista ao Vermelho, na qual comentou as principais medidas anunciadas pela gestão interina.
Limite de gastos inviabiliza políticas públicas
Um dos itens do programa de Temer é a Proposta de Emenda Constitucional (PEC) que limita o crescimento dos gastos primários do governo à variação da inflação do ano anterior. “Significa que ele está congelando em termos reais o crescimento desses gastos, ou seja, mesmo que a economia se recupere, que as receitas cresçam, os gastos seriam mantidos naquele teto. Isso é a mesma coisa que jogar fora os princípios constitucionais que estavam vigorando, em relação à Saúde e à Educação, por exemplo”, avaliou Leda.
Isso porque a Carta de 1988 estabelece um percentual mínimo a ser investido nessas áreas, como uma forma de garantir recursos para elas. “Quando você fixa um teto, ignora esses percentuais. Se, para alcançar os percentuais, você precisar ultrapassar esse teto, isso não poderá acontecer”, criticou, destacando que, para seguir com esta proposta, o governo terá que mudar a Constituição – algo que o ministro da Fazenda, Henrique Meirelles, já anunciou que deverá ser feito, sem nenhum pudor.
“Essa é uma mudança brutal que, por exemplo, inviabiliza o Sistema único de Saúde (SUS), que, com todas as dificuldades que tem, estava se estruturando e é evidente que precisa de crescimentos reais das despesas. Do contrário, não permitirá a efetivação do princípio da universalização da saúde. Então vai ter sempre gente dormindo nos corredores dos hospitais, vai ter sempre falta de atendimento, tudo isso. Com toda a certeza, trata-se de um retrocesso enorme em termos sociais”, afirmou a economista.
Pedalada com o BNDES
Leda também criticou a antecipação do pagamento da dívida de R$ 100 bilhões do Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES) para o Tesouro – outra proposta de Temer. “Isso a gente também pode chamar de pedalada, se quiser. O efeito é o mesmo”, disparou, referindo-se à utilização de recursos de bancos públicos para aliviar as contas federais. Esse tipo de manobra fiscal é um dos argumentos utilizados pelos aliados de Temer no pedido de impeachment da presidenta eleita Dilma Rousseff.
Banco público que financia basicamente investimentos produtivos, o BNDES possui várias fontes de receitas, conforme gráfico abaixo. Grande parte das verbas vinham do Fundo de Amparo ao Trabalhador (FAT), que, por sua vez, é abastecido por recursos do PIS/Pasep.
Com o impacto da crise, esses recursos minguaram. “Os recursos do PIS/PASEP são muito dependentes do que está acontecendo com a economia como um todo. Quando a economia vai mal, essa arrecadação cai e o financiamento do BNDES também cai. Então, se o banco depender apenas dos recursos do FAT, ele vai ser sempre pró-cíclico. Ou seja, quando a economia vai bem, ele tem muito dinheiro para emprestar; quando vai mal, ele tem nenhum dinheiro para emprestar”, explicou Leda.
Para compensar essa variação, o Tesouro – na gestão de Dilma – passou a emprestar dinheiro ao BNDES, de forma que o banco não sucumbisse à crise e continuasse ajudando a dinamizar a economia. “Os empréstimos são como investimentos do Tesouro. Ele emprestou esses recursos para que o banco financiasse alguns programas e projetos, e tinha lá um tempo para pagar isso.”
A estratégia de Temer, de antecipar a cobrança dessas verbas, vai no sentido contrário à política implementada pela presidenta eleita. A professora alertou então que tirar dinheiro do BNDES significa, portanto, reduzir as verbas disponíveis ao setor produtivo. E, se há uma contração do investimento produtivo, a consequência deve ser o aprofundamento da recessão.
“O que ele está propondo é que o BNDES antecipe o pagamento de R$ 100 bilhões desses recursos, para reduzir a dívida pública. Isso faz com que o BNDES deixe de emprestar ao setor produtivo. Você está, na realidade, tirando dinheiro que poderia estar dinamizando a economia e esterilizando eles de certa forma, porque você vai pagar dívida pública, vai monetizar ativos não monetários que hoje estão nas mãos de detentores de riqueza”, criticou.
Menos soberania
Uma terceira medida apresentada pelo governo interino é o fim do Fundo Soberano, uma espécie de poupança criada em 2008 com o mesmo objetivo contracíclico. Ou seja, em momentos de crise, o governo poderia usar esta reserva fara financiar gastos e agir para movimentar a economia.
“Ele tem esse nome porque, em geral, é aplicado em ativos do exterior e pode ser uma reserva para enfrentar crises externas, por exemplo”, disse a economista. Quando se criou esse fundo – que possui hoje cerca de R$ 2 bilhões – havia a expectativa de que ele poderia receber uma parte dos royalties pela exploração do pré-sal, mas, com a queda dos preços do petróleo, isso terminou não acontecendo. Para Leda, contudo, apesar de o valor dessa reserva hoje ser baixo, trata-se de uma boa ideia, que não deveria ser extinta.
“O fundo é uma espécie de salvaguarda para garantir a autonomia do Estado de poder agir contraciclicamente, de forma a enfrentar, eventualmente, algum desajuste externo. Acabar com ele é reduzir a soberania. É verdade que, hoje, com o pouco recurso que tem, não vai fazer muita diferença, mas é uma questão de princípio. A criação do fundo, por [Guido] Mantega [ex-ministro de Dilma], foi uma boa medida e deveria ser preservado”, pregou.
Ponte para o abismo
De acordo com a professora, “o que é mais dramático é o programa ao qual estão vinculadas” essas medidas – a plataforma do PMDB de Temer, intitulada Ponte para o Futuro, ou “Ponte para o Abismo”, como Leda prefere chamá-la.
“Essas três medidas são o reflexo daquilo que está no Plano Temer. Já estava lá a ideia de eliminar o crescimento automático das despesas do Estado, de acabar com a obrigatoriedade dos gastos com Saúde e Educação, por exemplo”, avaliou Leda Paulani.
De acordo com ela, tudo que foi anunciado até agora, vai na mesma direção: “no sentido de objetivar uma política de austeridade, de redução do papel do estado, de redução dos recursos que o estado pode manipular para fazer política econômica e política pública de maneira geral. É um programa absolutamente neoliberal”.
Para ela, não há também nenhuma preocupação do governo com a soberania do país. “Toda a atuação do [chanceler José] Serra tem sido no sentido de destruir o que foi construído em termos de relações exteriores ao longo desses 13 anos de governos do PT”, condenou.
Embora seja crítica às gestões petistas, Leda defendeu que, do ponto de vista das relações internacionais, a posição dos governos de Lula e Dilma sempre foi mais progressista e à esquerda – recusando projetos como a Alca e se incorporando a espaços alternativos de relações comerciais e exteriores – , algo deverá mudar completamente no próximo período.
“Há propostas no Ponte para o Futuro, como promover uma verdadeira abertura comercial, realizando uma inserção plena da economia brasileira no comércio internacional, buscando acordos com quem quer que seja, com ou sem o Mercosul. Ou seja, o Mercosul que se dane, não é mais uma prioridade”, criticou.
Economia como instrumento para amarrar a política
Leda Paulani concordou com a ideia de que iniciativas como a que estabelece um teto para os gastos públicos vão no sentido de fazer com que a economia, de certa maneira, se sobreponha à política – à medida que limitam a autonomia dos governos para tomar decisões.
Por meio de diretrizes, leis e mudanças Constitucionais, vai-se criando um arcabouço de normas relacionadas à forma com que os recursos do Estado são geridos, que terminam por “amarrar” a atuação dos governos.
De acordo com ela, esse tipo de iniciativa levada adiante pela gestão Temer reforça o que o sociólogo Francisco de Oliveira chama de a “irrelevância” da política. “Você vai amarrando a coisa de uma tal forma, que ganhe A ou ganhe B, esquerda ou direita, consegue fazer muita pouca coisa.”
A professora avaliou, contudo, que este é um processo que não começou agora. “Há várias outras coisas que estão acontecendo na economia e que vão no mesmo sentido, independentemente de Temer ou não. Quando você faz do regime de metas de inflação um cavalo de batalha, como se faz no Brasil, você está fazendo isso também. Quando você editou a Lei de Responsabilidade Fiscal e colocou os interesses dos credores à frente dos interesses de todos, inclusive dos próprios trabalhadores, igualmente”, observou.
Segundo ela, contudo, na gestão provisória de Michel Temer esse processo atinge áreas até então intocadas. “Você tinha alguns santuários preservados – a Educação e a Saúde pública estavam preservados pela determinação constitucional. E agora vai se acabar com isso. Vão colocar isso no mesmo barco que as outras coisas já estão”, lamentou.
Uma conciliação insustentável
Autora do livro Brasil Delivery, no qual condena a política econômica da era Lula, ela avaliou na conversa com o Vermelho, que os governos do PT atuaram por meio de um modelo de conciliação, que procurava “melhorar a situação dos de baixo, sem mexer com os de cima”. A estratégia, segundo ela, funcionou bem até os efeitos da crise atingiram o país, com a queda do preço das commodities e o desaquecimento do crescimento chinês.
“Quando esses ventos ruins batem aqui, a coisa se complica. Esse modelo de conciliação funciona quando você está na maré boa. A classe média é que ficou no meio, se viu desvalorizada, não só porque não mudava de posição, mas porque via os de baixo subindo, o que tirava a sua posição relativa de superioridade. Enfim, isso gerou muito do ódio que se tem contra o PT, Lula, etc.”, defendeu.
De acordo com ela, o modelo de conciliação embora não tenha mexido estruturalmente nos problemas do país, freou as privatizações, tornou o estado muito mais presente e colocou na pauta uma série de questões sociais relevantes, como a redução da pobreza e da desigualdade.
Para a professora, a conciliação, contudo, não era sustentável. E as elites sentiam-se incomodadas com alguns fatores, “ainda que o grande capital, o capital financeiro com vínculos internacionais, não estivesse perdendo nada nas gestões do PT”.
PT, o estranho no ninho do poder
Segundo Leda, essa elite nunca aceitou o PT e Lula, que sempre teriam sido considerados “estranhos no ninho”, de repente alçados à Presidência. “Era evidente que a primeira brecha que aparecesse eles iam tentar destituir o governo, já que não conseguiam ganhar eleição”.
Outro fator que incomodava as classes altas do país, ela analisou, é o fato de que estas gestões utilizaram boa parte dos recursos do estado para fazer política de combate à pobreza e à desigualdade, e, de alguma maneira, fortalecendo institucionalmente o Estado. “Isso também não é uma coisa que essas classes vejam com bons olhos”, disse.
Segundo a economista, o afastamento de Dilma, então, não foi apenas uma mudança de governo, mas de projeto. No lugar de uma agenda de combate às desigualdades e de valorização do papel do estado, a pauta de Temer beneficia “as elites, que sempre mandaram nesse país”, e os interesses internacionais, de olho no petróleo brasileiro.
Olhos gordos na Petrobras
“Não podemos esquecer das questões geopolíticas, porque ainda existe imperialismo e ainda existem olhos gordos sobre as riquezas do Brasil. Não tenho dúvida de que interesses internacionais da área do petróleo, poderosíssimos, querem a privatização da Petrobras, porque querem a exploração de nossas reservas”, citou.
Ela ressaltou que a queda dos preços internacionais do petróleo e os desdobramentos da Operação Lava Jato tiveram impactos negativos na Petrobras. “Isso desvaloriza esse patrimônio, o que é sopa no mel para quem quer botar a mão nele”, alertou.
“Não tenho dúvida que esse programa e esse governo, se ficarem aí até o final de 2018, vão retomar com toda força o processo de privatização e vão tenta pelo menos – já que vai ter muita reação – privatizar a Petrobras”, abrindo espaço para estrangeiros colocarem as mãos na estatal, previu.
Sem crescimento
Com foco no ajuste fiscal, a equipe econômica do governo interino defende que o país precisa equilibrar suas contas para recuperar credibilidade e, assim, a economia voltaria a crescer. De acordo com Leda, de fato houve um aumento nos indicadores de gastos públicos no último período, mas por conta da crise. E aplicar uma política austeridade em momento recessão trará efeitos ainda mais perversos.
“É evidente que, num período de crise, há piora de alguns indicadores. E o Estado tendo sucesso em agir de modo contracíclico, você recupera lá na frente. Mas, num período em que a economia vai mal por uma série de variáveis, você ainda impor um aperto fiscal, uma redução de gastos, você vai afundar a economia ainda mais”, previu.
Leda citou que a austeridade retira força de uma das variáveis mais importantes para o dinamismo da economia, que é o gasto público. “E, principalmente, vai tirar dinheiro de investimento, que já era pouco e vai praticamente desaparecer. No Brasil – e isso faz parte da história – sem investimento público, você não tem nem investimento privado”, afirmou.
Ela também apontou a crise política como um fato a atrapalhar a recuperação. Para ela, há uma espécie de ciclo vicioso, em que a crise econômica alimenta a crise política e vice-versa. “Hoje, a situação está tão enrolada, há um nó tão grande no país – institucional, político, social. Isso afeta muito as expectativas de forma muito negativa, e isso tem impacto não só no investimento como no consumo. Até isso se resolver de alguma maneira, as perspectivas são muito ruins”, encerrou.