Juca: Saco de maldades de Temer pretende retirar direitos até Vargas
Em entrevista concedida ao jornalista Paulo Moreira Leite, do Brasil 247, o ex-ministro da Cultura Juca Ferreira afirmou comentou a decisão liminar do Supremo Tribunal Federal (STF) de reconduzir ricardo Melo à presidência da EBC, o que afirma ter sido a única saída da Corte. Ele também falou sobre a conjuntura política do desgaste do governo de Michel Temer. Confira a íntegra da entrevista:
Publicado 07/06/2016 14:44
Dias depois do retorno de Ricardo Melo à presidência da EBC, numa decisão do ministro Dias Toffoli, entrevistei Juca Ferreira, ministro da Cultura nos governos Lula e Dilma. No depoimento, Juca Ferreira discutiu a postura dos artistas e intelectuais que desde o início assumiram a linha de resistência frente ao golpe que afastou Dilma temporariamente do Planalto. Também falou sobre a EBC, empresa pública de comunicação que ajudou a construir. Sociólogo de formação, Juca Ferreira faz uma análise dura do governo provisório. "Pode-se até dizer que a área econômica tem alguma seriedade," afirma. "O resto é pasto para os aliados, com aqueles interesses e práticas de sempre. Tudo é lobby e máfias."
Quando analisa, por hipótese teórica, a possibilidade de Dilma não retornar ao Planalto, Juca afirma: "Brasil de Temer seria uma Venezuela invertida, em crise permanente, com um presidente que consegue ficar no governo mas não consegue governar." Juca Ferreira foi líder secundarista da década de 1960, mais tarde ingressou no MR-8, organização que defendia a luta armada, e passou nove anos exilado. Levado por Gilberto Gil, ficou cinco anos e meio como secretário executivo do Ministério da Cultura durante o governo Lula, assumindo a pasta até 2010 quando o titular deixou o governo. Em 2014, voltou ao Ministério, permanecendo no cargo até o afastamento temporário de Dilma. Sua entrevista:
247 — Afastado por um decreto de Michel Temer, o jornalista Ricardo Melo retornou a presidência da EBC por uma liminar do ministro Dias Toffoli, do STF. Qual a importância disso?
FERREIRA — Era a única decisão possível e tenho certeza de que não será revogada, caso o questão seja levada a plenário. A EBC tem um estatuto próprio, que define um mandato de quatro anos para seu presidente. Num reflexo das discussões que fazíamos na época da criação de uma empresa pública de comunicação, este é um cargo de responsabilidade, que deve ter autonomia em relação aos governantes, justamente para que não venha atuar como simples veículo de apoio ao governo. O fundamento do estatuto, neste ponto, encontra-se na autonomia, que não foi respeitada.
247 — Lançada há oito anos, até hoje a TV Brasil não apresenta grandes índices de audiência. Como você vê seu futuro?
FERREIRA — Estou convencido de que ela pode se transformar na grande sensação da comunicação brasileira.
247 — Por que?
FERREIRA — Ninguém pode negar que entramos numa época de esgotamento das emissoras tradicionais. O jornalismo da TV Brasil só conseguiu um grande impacto, nos últimos meses, porque foi capaz de apresentar uma cobertura diferenciada, que evitava o ambiente de oba-oba das demais emissoras. Ao cobrir uma disputa política, a TV Brasil entrou na disputa por sua própria afirmação, por sua identidade. A repercussão das reportagens, dos debates, dos comentários, mostra uma tendência que pode levar a uma disputa de audiência, por fatias maiores de público.
247 — O que você acha que se poderia fazer por aí?
FERREIRA — Acho que seria preciso aprender a interagir com as redes sociais. Por motivos óvios, é uma coisa que só uma TV pública pode fazer. Penso, por exemplo, nos jovens que fazem o Midia Ninja. Apresentaram algumas das melhores produções sobre o andamento do golpe. Chegaram a ter uma audiência de 40 milhões de pessoas.
247 — Você ficou conhecido pela preocupação com os aspectos culturais de uma TV pública. Como é isso?
FERREIRA — Mesmo nas outras áreas, não há inovação, mas um esgotamento de velhas formulas que se repetem, sem inovação, nem ideias novas. Se você comparar com outros países, mesmo com a Argentina, irá decobrir que nossa TV cria muito pouco, embora tenha uma força econômica que todos conhecem.
247 — O que falta?
FERREIRA — Falta abrir-se para o país em que vivemos. Não somos a América imperial e desigual que gerou as grandes redes comerciais privadas norte-americanas. Também não somos a Inglaterra, de onde saiu a BBC. Somos o Brasil, e precisamos aprender a dialogar com as pessoas que fazem este país. Isso a TV não faz.
247 — Por que?
FERREIRA — Muitas pessoas não assistem uma TV pública porque acham chato. Vamos admitir: muitas vezes ela é chata mesmo. Até hoje vemos uma concepção de quem pensa TV pública como escola e sala de aula, levando para o estúdio uma comunicação que é feita por um professor, quadro negro, giz e muito discurso. É muito chato. Não tem a ver com a linguagem televisiva. Nos sabemos que as escolas de verdade já são chatas. As crianças só ficam em sala de aula porque são obrigadas pelo pais, pelos professores, por todo mundo. Senão, iriam embora correndo. Na TV, ninguém obriga a nada. A pessoa muda de canal.
247 — O que falta, então?
FERREIRA — Eu acho que precisamos perder o preconceito contra o entretenimento. A Tv precisa seduzir, agradar, divertir.
247 — Uma das primeiras derrotas do golpe contra Dilma ocorreu no plano cultural. Ao lado do movimento de mulheres, artistas e intelectuais foram os primeiros a ir para a rua para denunciar o governo Temer. Como aconteceu depois de abril de 1964, o golpe foi derrotado neste debate. Por que?
FERREIRA — O primeiro ponto é a questão geral. Os artistas já estavam mobilizados em defesa do mandato da Dilma, mesmo aqueles que têm críticas ao PT e ao governo. Compreendiam que estava em causa a democracia. Era natural, portanto, que estivessem em posição de alerta quando Temer tomou posse e anunciou a extinção do Ministério da Cultura. Reagiram na hora. Em poucos dias, 200 músicos já se reuniam para dizer em protesto que haviam sido felizes por ter conhecido um Estado democrático.
247 — Por que o Ministério tornou-se uma batalha?
FERREIRA — Ninguém estava defendendo o ministério, os empregos, o conforto, mas uma posição política conquistada com luta, que ninguém poderia extinguir numa canetada.
247 — Dá para explicar?
FERREIRA — A partir de 2003 o Brasil teve a felicidade de contar com um ministro da Cultura popular e carismático, Gilberto Gil. Também teve um presidente que, mesmo com pouca educação formal, teve a capacidade de compreender com mais clareza que a cultura é uma necessidade de todos, verdade que nem sempre foi aceita por muitos políticos, mesmo do nosso lado. Eu estava presente numa reunião de ministérios, em que se discutia, como sempre, a partilha de verbas disponíveis. Defendi que a Cultura tivesse uma participação maior. Disse que era uma necessidade do povo e fui criticado por isso. Na hora de encerrar, o Lula, que nem sabia meu nome, disse que concordava com "aquele ali". O presidente contou que, na adolescência, vivia de bolso vazio e só conseguia ir ao cinema quando podia acompanhar amigo de cadeira de rodas — neste caso, a entrada era de graça. Essa foi a mudança. Com muito atraso, o Brasil percebeu que a cultura é uma necessidade absoluta de toda sociedade de massas, tão essencial como a comida, o transporte, o vestuário. Era natural que os artistas, diretamente envolvidos nesse processo, assumissem sua defesa. Diziam "o Ministério é Nosso" e não estavam errados, porque sua participação era ampla e direta. Nossos encontros para debater a Lei Rouanet, por exemplo, reuniram 100 000 pessoas. Para debater Direito Autoral, tivemos 60 000 presenças.
247 — Estamos falando de um processo longo, custoso, que envolveu prioridades e investimentos. Como foi isso?
FERREIRA — Em 2003, o ministério herdou um orçamento de R$ 287 milhões. Em 2010, quando deixei o governo pela primeira vez, era de R$ 1,3 bi. Esses números mostram que a cultura deixava de ser um produto de luxo. Podia vista como uma espécie de Bolsa Família do mundo simbólico que todos possuem e precisam alimentar.
247 — O que se fez para saciar tantos apetites?
FERREIRA — Foi assim que criamos os pontos de cultura, nos pontos distantes das grandes cidades, que reúnem milhões de pessoas nos fins de semana. Alguns produzem cultura, outros consomem. Também estimulamos e apoiamos grupos de leitura, bibliotecas comunitárias. Descobrimos um grupo de camponeses do interior de Pernambuco que formaram uma orquestra sinfonica e todas as tardes se reunem, após o trabalho, para tocar sinfonias de Bach. Também estivemos numa aldeia onde um cacique queria ajuda para usar computador e implorava para que não ninguém mais aparecesse por ali "para nos ensinar como é ser índio."
247 — Você não está exagerando quando fala que cultura é tão essencial como comida, como dizia a música dos Titãs?
FERREIRA — Vou falar de uma experiência pessoal. Eu era militante clandestino, na década de 1970, e obviamente não podia me expor a riscos desnecessários. Militava no MR-8, organização que defendia a luta armada e tinha uma estrutura clandestina importante. Mas sempre gostei de música e participei da vida cultural. Na noite em que Gal Costa foi apresentar o show Fa-Tal, em Salvador, não resisti. Fui assistir. Eu era uma pessoa conhecida, tinha sido uma liderança estudantil importante desde a escola secundária. As pessoas me reconheciam e perguntavam se eu estava louco. Não. Estava feliz. Eu não podia deixar de ver aquele show. Cultura é isso.
247 — Em 2016, como está o país?
FERREIRA — Se não houver uma reversão do golpe, que me parece cada vez mais clara, teremos uma situação impossível. O destino Temer é uma Venezuela invertida, do ponto de vista ideológico, mas idêntica, como impasse sem saída: um presidente que consegue se manter no governo mas não consegue comandar o país. Já sabemos que o saco de maldades será monstruoso, um retrocesso que pretende retirar direitos até Vargas. Estamos falando de um golpe jurídico-parlamentar, que precisa manter uma certa aparência de normalidade. Se ficar claro que é golpe, ele cai.
247 — Como analisar o governo?
FERREIRA — Admito que há alguma seriedade na equipe econômica. E só. O resto é pasto para aliados, para interesses de lobistas e máfias.