Publicado 05/06/2016 17:48
“Só o exame de corpo de delito não vai ser característica se houve o estupro ou não. Ela pode ter tido relações sexuais consentidas e por aí não seria estupro. Ela estava deitada e desacordada, mas pode ser realmente que ela possa ter ingerido algum tipo de bebida alcoólica ou algum tipo de droga. Mas nada disso caracteriza. As investigações têm que ser um pouco mais técnicas para caracterizar realmente se houve o estupro e como foi feito esse fato”.
E mais disse, ou completou, como se fala no jargão: “O chefe da Polícia Civil do Rio, delegado Fernando Veloso, disse que um laudo no vídeo que deu origem à investigação do estupro coletivo vai ‘contrariar o senso comum’. ‘Não há vestígios de sangue nenhum que se possa perceber pelas imagens que foram registradas’”. Ah, bom, então ninguém viu o que viu. Ou dito de outra maneira, todos viram, mas não podem avaliar com olhos desarmados o que viram.
Precisam de intérprete. À primeira vista, digamos, esse desligamento de autoridades em relação ao mundo real chega a ser uma lei não escrita. Parece que ninguém avisou ao chefe de polícia que estamos no século 21 e os costumes não são mais como os de antes. Talvez estimulado pelos últimos atos de Temer, o chefe da polícia achou que também podia passar por cima de conquistas históricas da civilização. É possível.
O fato é que tamanha foi a revolta nacional contra a perícia profissional do delegado, que ele se viu obrigado a voltar atrás, e viu, sob os olhos da perda do cargo, que o estupro era mesmo um estupro. Sem dúvida era, onde já se viu? Mas por mais que dê na gente vontade de satirizar uma estupidez, esse ainda não é o ponto. Existem aspectos mais graves e dramáticos no cômico da autoridade que reinterpreta uma ocorrência trágica. A direita, ou para usar expressão eufemística, o pensamento conservador, sempre se apropriou da imagem. Não bastassem o mando das armas e a barbárie, que à força impõem o mundo injusto, a direita quer também o domínio ideológico, pela velha visão. Desejam impor a legenda para a interpretação da imagem, assim como os noticiários da Rede Globo, do Jornal Nacional, que não satisfeitos da seleção dos fatos divulgados, recheiam com narrativa e legenda o que todos veem. Mas é geral. Não faz muito, quando da reedição das Memórias de Gregório Bezerra, fui à TV Jornal do Comercio, que possuía as imagens de Gregório sendo arrastado pelas ruas do Recife, ou sem camisa, somente de calção, preso. A resposta foi que os arquivos dos filmes sumiram. É um mal que vem de longe.
Na ditadura, nós não sabíamos das fotos pornográficas dos prisioneiros políticos no necrotério, dos corpos e faces arrombados à bala. Em compensação, tínhamos a legenda que interpretava o permitido. Então, pela lógica da época, os presos não passavam de terroristas. E feios, caricatura do terror, o rosto cheio de marcas, com as frases sob as fotos que os enquadravam como perigosos, inimigos da família brasileira
Assim como no retrato de Soledad Barrett, na foto esmaecida, enevoada de propósito no laboratório fotográfico da repressão política. Quiseram ofuscar a beleza da guerrilheira para enquadrá-la na face de terrível subversiva. A legenda da foto apagada dizia: “Atuava no Nordeste como agente de ligação de grupos terroristas sul-americanos. Tinha ligação com terroristas brasileiros no Chile”.
Interpretar imagens é um vício da história da direita no Brasil. No próximo texto, contarei um caso exemplar de escravos em Pernambuco.