Mudança na Previdência prejudica trabalhadores para favorecer capital
Para o professor de economia da Unicamp Eduardo Fagnani, o debate sobre a reforma da Previdência – defendida pelo governo Michel Temer – é uma face da luta de classes no país. Segundo ele, as elites financeiras nunca aceitaram os direitos sociais garantidos na Constituição e utilizam velhos mitos para atacar a Previdência e capturar seus recursos. Fagnani é taxativo ao afirmar que não há deficit no setor e que a reforma prejudica trabalhadores e não deve sanar a questão fiscal no curto prazo.
Publicado 01/06/2016 20:47
Por Joana Rozowykwiat
“As elites financeiras jamais aceitaram que o movimento social dos anos 70 e 80 introduzisse na Constituição de 1988 os direitos sociais, que capturam cerca de 10% do PIB. Então fazem uma intensa campanha difamatória sobre a Previdência, porque são os gastos mais significativos – 7% do PIB. O que está por trás [da reforma] é uma disputa por recursos públicos. O capital quer de volta os 10% do PIB da seguridade social”, aponta.
O ministro da Fazenda de Temer, Henrique Meirelles, já anunciou que a reforma da Previdência é prioridade na sua gestão e defendeu, inclusive, que as mudanças atinjam os trabalhadores na ativa, e não só os que ainda vão entrar no mercado de trabalho. Para o ministro, as novas regras que o governo quer aprovar devem valer mesmo para aqueles que já estão no processo de contribuição para a Previdência – algo como mudar as regras do jogo no meio da partida.
O mito do deficit
A defesa da reforma tem como principal argumento a necessidade de equilibrar as contas do governo. Há anos, gestores, a mídia e setores empresariais repetem o mantra de que há um rombo nas contas da Previdência. Nesta quarta-feira (1º), a Folha de S. Paulo, por exemplo, noticia que o Tesouro registrou um deficit de R$ 8,5 bilhões na Previdência em abril.
Fagnani, contudo, defende que o discurso do rombo é falacioso. De acordo com ele, não há deficit, o problema é que o governo não tem arcado com a parte que lhe cabe no financiamento do sistema.
Ele destaca que a Previdência ao redor do mundo é financiada pelo governo – por meio de tributos –, pelo empregador e pelo trabalhador. A Constituição de 1988, ao estabelecer o sistema brasileiro, inspirou-se nesses modelos tripartites. E, para o governo cumprir a sua parte, foram criadas duas novas contribuições: a Contribuição Social para o Financiamento da Seguridade Social (Cofins) e a Contribuição Social sobre o Lucro Líquido das Empresas (CSLL).
“Ocorre que o governo [de José] Sarney não aceitou isso. Desde 1989, o Ministério da Previdência e Assistência Social não computa essas duas contribuições como fontes de financiamento da Previdência Social. Ele se apropriou dessas fontes de receita mas não contabiliza para a Previdência”, afirma o professor, ressaltando que todos os governos que se seguiram mantiveram tal equívoco.
O suposto rombo, então, é ocasionado pelo não cumprimento, por parte do Estado, daquilo que determina o artigo 195 da Constituição. “O deficit é, na verdade, a parte que cabe ao governo e, se ele não coloca os recursos, contabiliza como deficit. Isso é inconstitucional”, critica o economista.
Com Temer, caiu a máscara
Para Fagnani, por trás da narrativa do deficit está um discurso ideológico, que não teria bases na realidade. “É fruto da desonestidade intelectual de muitos especialistas que estão do lado dos detentores da riqueza financeira (…) Eles jamais aceitaram os artigos 194 e 195 da Constituição, que definem o que é Seguridade Social e vinculam recursos para financiá-la”, condena.
Apesar de ter assumido a Presidência apenas interinamente, Temer apressou-se em fazer uma reforma administrativa, que extinguiu pastas e fundiu áreas do governo. Como uma espécie de símbolo, colocou a Previdência dentro do Ministério da Fazenda.
Fagnani avalia que a mudança explicita essa visão que perdura desde 1989. “Caiu a máscara. Eles estão dizendo o seguinte: dane-se a questão social, a questão da pobreza, o subdesenvolvimento do país, as desigualdades sociais, agora nós mesmos vamos recapturar esses recursos”, declara.
Segundo ele, a junção mostra que não se pensa em uma reforma para aperfeiçoar o sistema, mas para destruir o que foi construído em 1988. “E agora a Fazenda não precisa mais de intermediário, não precisa de ministro da Previdência. Ela mesma vai fazer esse serviço.”
Desvincular para rebaixar
Entre as medidas contidas na reforma da Previdência sinalizada pelo governo Temer, está a desvinculação do reajuste dos benefícios ao salário mínimo. “O que a Fazenda quer fazer é com que o Brasil retorne aos anos da ditadura militar, quando o governo corrigia os benefícios previdenciários abaixo da inflação, como uma forma de conter gastos e combater a inflação”, lamenta o professor.
Fagnani lembra que os constituintes, para enfrentar esse problema, que sistematicamente corroía o poder de compra dos aposentados, instituíram o piso, ou seja, a exigência de que nenhum benefício poderia ser inferior ao piso do salário mínimo.
“Então, quando você desvincula, você volta à ditadura. O que vamos assistir daqui para frente é que os reajustes da Previdência vão ser corrigidos abaixo da inflação, o que foi dito explicitamente pelo ministro da Fazenda. O que significa dizer que em cinco, seis anos, o poder de compra dos aposentados pode regredir 30%, 40%”, prevê.
Campeão mundial de exigências
Outro item da reforma Temer-Meirelles é exigir, para a aposentadoria, a idade mínima de 65 anos e 35 anos de contribuição. “Se fizerem isso, o Brasil vai ser o campeão mundial de exigências para aposentadoria. Não existe nenhum país do mundo que combine 65 anos de idade e 35 anos de contribuição”, alerta o economista.
Fagnani aponta então uma segunda falácia do debate sobre a Previdência. É comum ouvir que o Brasil é o único país do mundo em que não há idade mínima para a aposentadoria. “É errado. Temos idade mínima desde a Reforma da Previdência de 1998, que foi feita por Fernando Henrique Cardoso. E, hoje, mais de 60% das aposentadorias são por idade”, diz.
Atualmente, uma das formas pela qual a aposentadoria pode ser concedida é por idade, aos homens com 65 anos e às mulheres com 60 anos, com tempo mínimo de contribuição de 15 anos. O professor da Unicamp cita que este padrão, introduzido há quase 20 anos, já era superior ao praticado em muitos países da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE). “A França, na época, exigia idade de 61 anos.”
Outra forma de se aposentar, atualmente, é por tempo de contribuição. Neste caso, apesar de não ser exigida uma idade mínima, há o Fator Previdenciário, que penaliza o trabalhador suprimindo parcela do valor do benefício até que ele atinja a tal idade mínima e termina por forçar o adiamento da aposentadoria.
“Mas, em outubro último, a regra do fator foi alterada e agora prevê que, em 2028, haverá a fórmula 95/105, o que vai exigir tempo de contribuição de 35 anos, e idade mínima de 65 anos para homem e 60 anos para mulher. Então essa reforma, de certa forma, já foi feita”, pondera.
Contra o trabalhador rural
Uma terceiro pretensão da reforma previdenciária proposta pelo governo é transformar a Previdência Rural em benefício assistencial, aponta Fagnani.
“Significa que eu posso fazer com que o valor desse benefício seja, por exemplo, 70% do salário mínimo. Ele não precisa subir de acordo com o mínimo.”
Mais que isso, acrescenta o professor, o governo quer elevar a idade da aposentadoria rural de homens e mulheres também para 65 anos. “É algo que só leva em conta a questão fiscalista e não considera as enormes heterogeneidades da zona rural brasileira. Hoje 70% da pobreza brasileira estão situados na zona rural do Nordeste. Vamos aplicar para essa zona rural o mesmo padrão de idade que é exigido hoje na Dinamarca”, compara.
Ele informa que o mesmo deve acontecer com um benefício da assistência social, o Benefício de Prestação Continuada, que atende hoje 4 milhões de famílias cuja renda familiar per capita é inferior a ¼ de salário mínimo. “Essas famílias também terão seus benefícios não corrigidos pelo mínimo e, sim, por um índice arbitrário fixado pela área econômica, que certamente será inferior à inflação. Há medidas para fazer com que esses benefícios sociais correspondam, por exemplo, a 70% do salário mínimo, então você faz um rebaixamento agora e, a partir daí, você reajusta a índices inferiores ao mínimo”, antecipa.
A questão fiscal
A justificativa para o pacote de maldades é clara, avalia Fagnani. “É sobrar dinheiro para a gestão da dívida pública, para transferir para o capital especulativo. Eles conseguiram induzir à formação de um consenso de que eles só vão equacionar a questão fiscal se fizerem esses cortes, se acabarem com os direitos sociais de 1988. Isso virou um ‘consenso’”, afirma, acrescentando, contudo, que se trata de mais um mito.
“Se a Justiça no Brasil funcionasse, o que não é o caso, você não poderia mexer em direitos adquiridos. Então uma reforma desse tipo só vai ter impactos para as gerações que vão entrar agora no mercado de trabalho. Portanto, só terá impactos fiscais daqui a 30, 35 anos”, analisa.
O ministro da Fazenda, contudo, ao falar sobre a reforma da Previdência em seu primeiro pronunciamento no cargo, relativizou a questão, afirmando que direito adquirido é “um conceito impreciso”. Também já sinalizou que seria necessário incluir na reforma os contribuintes que já estão no mercado de trabalho, como dito acima.
“A fúria, a ânsia da Fazenda pela captura desses recursos é tanta que sequer levam em conta os direitos assegurados, a legislação, a jurisprudência. Ocorre que, se ele [Meirelles] partir por esse caminho, além da reação da sociedade, certamente haverá a judicialização da questão”, defende o professor da Unicamp.
Para Fagnani, não é o gasto social que impede o equacionamento da questão da dívida pública. “Não vejo nenhum desses protagonistas do golpe escrever uma linha que seja sobre o fato de que o Brasil gasta 9% do PIB com juros”, cita, como exemplo.
Sem trégua para Temer
De acordo com o economista, o projeto Temer-Meirelles para a Previdência enfrentará resistência pelo caminho. “As elites financeiras brasileiras ainda atuam como em 1954, 1961 e 1964. Esquecem de uma variável chave. A sociedade de 2016 não é a mesma de 1964. Antes você tinha 70%, 80% da população morando no campo, analfabeta, sem informação. Hoje você tem quase 90% da população morando na cidade, grande parte educada, conectada, redes sociais”, compara, citando ainda a eclosão e o fortalecimento de diversos movimentos sociais nas últimas décadas.
O professor avaliou que, para os detentores da riqueza brasileira, o impeachment da presidenta Dilma Rousseff apresenta-se como uma “oportunidade histórica” para instalarem no país um “projeto ultraconservador no campo dos direitos humanos e ultraliberal do ponto de vista econômico e social”.
“Eles estão tentando implantar um programa derrotado nas últimas quatro eleições. O golpe é uma oportunidade, porque não tem o veredito das urnas. Só que eles estão indo com muita sede ao pote”, analisa, citando medidas impopulares que integram a agenda do presidente provisório, como o ataque aos direitos humanos e a privatização da Saúde e da Educação.
Fagnani, contudo, ressalta que não será fácil levar tais projetos adiante. “Tudo isso mexe em interesses populares e grande parte deles está mobilizada. É falsa a ideia de que vai ter uma trégua, pelo contrário, as tensões sociais vão aumentar muito, sobretudo em se tratando de um governo que não tem a menor legitimidade popular, cujos quadros do primeiro escalão estão envolvidos em denúncias de corrupção”, prevê.
Segundo ele, não é hora de abatimento, mas de mobilização. “É muito grave o momento, mais ainda porque temos um Congresso mercantilizado que não representa a sociedade, mas as empresas que financiaram suas campanhas. E ele parece dispor de cerca de 2/3 dos votos e, em tese, poderia simplesmente mudar a Constituição. Então não é hora de as pessoas ficarem desanimadas, pelo contrário. Você não fica abatido na iminência do terremoto, tem que fazer o possível para se defender e proteger aquilo que você durante tanto tempo lutou para conquistar”, encerra.