Foi estupro, mas se depender de um delegado, a culpa é da mulher

O caso de estupro coletivo registrado no Rio de Janeiro neste final de semana deixou claro que chegamos à barbárie completa. A jovem de 16 anos teve vídeos e fotos de sua violação compartilhados na internet pelos próprios algozes. E só denunciou o crime quando viu a repercussão porque até então tinha medo de represálias dos traficantes envolvidos.

Por Mariana Serafini

Estupro coletivo no Rio - Pablo Jacob / Agência O Globo

Quando o vídeo começou a ganhar repercussão na internet, o Ministério Público recebeu mais de 800 denúncias de internautas, antes mesmo que a vítima procurasse a justiça. Desta forma o caso caiu na Delegacia de Crimes Digitais. O delegado responsável, Alessandro Thiers, agiu exatamente ao contrário do que se espera quando o assunto é tratar uma vítima de estupro: colocou em xeque a palavra da adolescente e não teve sensibilidade para lidar com a situação.

Em entrevista ao Fantástico, veiculada neste domingo (29), a adolescente conta que se sentiu intimidada na delegacia. “O próprio delegado me culpou. Quando eu fui na delegacia eu não me senti à vontade em nenhum momento. E eu acho que é por isso que muitas mulheres não fazem denúncia. Tentaram me incriminar como se eu tivesse culpa por ser estuprada. Ele [o delegado] botou na mesa as fotos e o vídeo e me falou 'me conta aí'. Ele perguntou se eu tinha o costume de fazer isso, se eu gostava disso e aí eu falei que não ia mais responder”.

O relato da vítima mostra porque dos mais de 570 mil casos de estupro que acontecem anualmente no Brasil apenas 10% são denunciados. Se uma pessoa registra uma denúncia de roubo de um celular, por exemplo, ela não é questionada sobre o assalto não ter acontecido. O delegado provavelmente pede detalhes do episódio, características do assaltante e segue com uma investigação. Mas no caso de um estupro, o delegado coloca em xeque a palavra da vítima, tenta intimidá-la para “desmentir” uma história, como se mulheres saíssem por aí fantasiando que são estupradas. É mais fácil tratar a mulher como a neurótica, a levar a sério o que ela diz.

Diante deste descaso, a advogada que até então era responsável pela defesa da adolescente, Eloísa Samy, lutou pelo afastamento de Thiers do caso. O delegado chegou a afirmar que a perícia do vídeo iria “contrariar o senso comum”. Porque, segundo ele, o material que mostra a jovem desacordada, e um homem mexendo em sua genitália sangrando não seria prova de um estupro.

A delegada que assumiu o caso depois de Thiers, Cristiane Bento, foi enfática: “houve estupro”. Ela concedeu uma coletiva de imprensa nesta segunda-feira (30) e afirmou que depois de se debruçar sobre todo o material durante o final de semana não restavam dúvidas de que houve um estupro. “Quero provar agora a extensão desse estupro, quantos participaram. Mas que houve, houve”. Ou seja, quando se trata da dor das mulheres, somos todas por uma. Enquanto um homem conduzia o caso, tentava a todo custo deslegitimar a palavra da vítima.


Enquanto os acusados saem da delegacia sorrindo, a vítima sai de cabeça baixa, humilhada, com medo, a diferença sobre quem leva a culpa neste crime | Foto: Gabriel Paiva / Agência O Globo

Cristiane deixa claro que o conteúdo do vídeo e o depoimento da vítima já são provas suficientes para conduzir uma investigação e decifrar o crime por completo. No vídeo ouve-se muitas vozes, mas uma delas, mais clara, fala “olha como que tá. Sangrando. Olha onde o trem passou. Onde o trem bala passou de marreta”. Os algozes afirmam ainda que “mais de 30 engravidaram” a menina. Para a delegada, esta prova é “cristalina”.

Até agora foram identificados seis dos responsáveis pelo crime, entre eles Raí de Souza, de 18 anos, supostamente o dono do celular usado para fazer o vídeo e Lucas Perdomo, de 20 anos, teoricamente o namorado da vítima. Depois de prestar depoimento, nesta segunda-feira (30), os dois saíram sorrindo e acenando da delegacia, e afirmaram que haviam “provado a inocência”. Não permaneceram detidos, mesmo com provas do envolvimento deles.

Outros dos estupradores já identificados seguem foragidos. Um deles é o conhecido como o chefe do tráfico do Morro do Barão, onde o crime aconteceu, trata-se de Sérgio Luís da Silva Junior, o “Da Rússia”. Além dele, a polícia procura Raphael Assis Duarte Belo, Marcelo Miranda da Cruz e Michael Brasil da Silva.

A delegada não titubeou em afirmar que esta prática é comum: “os traficantes pegam as meninas e estupram. Eles não admitem é que outro o faça, mas ele faz. E elas não denunciam por medo de serem assassinadas”. Este é o medo que a vítima desta barbárie sente agora. Ela entrou para o programa de proteção a vítimas porque depois de denunciar, recebeu inúmeras ameças pelas redes sociais.

Ainda assim, as inúmeras manifestação em defesa dela, serviram para, de certa forma, tranquilizá-la. Ela publicou uma mensagem em sua conta oficial no Facebook onde afirma que não imaginava tanta repercussão e apoio. Neste final de semana foram realizadas manifestações no Rio de Janeiro, Porto Alegre e Brasília, há um ato marcado para acontecer em São Paulo. A ONU Mulheres se pronunciou sobre o caso ainda na sexta-feira (27) e inúmeras personalidades abordaram o assunto por meio das redes sociais.

Este crime serviu para trazer à tona a cultura de estupro. Evidenciou como este crime é tratado no Brasil. Segundo o Fórum Brasileiro de Segurança Pública, acontece um estupro a cada 11 minutos no país. Na maioria das vezes as mulheres não denunciam por medo, falta de orientação, e humilhação. Além disso, 70% dos crimes são cometidos por pessoas conhecidas, parentes, amigos da família. Aquele ser que espera mulheres na calada da noite é o bicho papão, estupradores tem rosto, nome e CPF. Mas além disso, há uma justiça branda, pronta para naturaliza o crime e culpabilizar a vítima.

Vale ressaltar que a não existência da Secretaria Nacional das Mulheres, dissolvida pelo presidente interino Michel Temer, enfraquece ainda mais o acesso das mulheres em busca de proteção e orientação. Ou seja, as torna mais vulneráveis. Outro fator sintomático é a equipe ministerial composta apenas por homens, brancos, velhos. Fato que não acontecia desde a administração do ditador Emílio Garrastazu Médici, que terminou em 1974. Voltamos mais de 30 anos na roda da história.

O crime aconteceu no Rio de Janeiro, estado onde Jair Bolsonaro (PSC) foi o deputado mais votado. Ele, o parlamentar que ameaçou a colega Maria do Rosário de estupro, em pleno Salão Verde, na Câmara. “Eu não te estupro porque a senhora não merece, deputada, não saia não, fique aqui para ouvir”, disse. As provas do estupro coletivo vieram à luz no mesmo dia que o ministro da Educação, Mendonça Filho (DEM), recebeu o ator Alexandre Frota, réu confesso de um crime de estupro em um programa de humor veiculado em cadeia nacional, para apresentar uma pauta ao ministério.

Um governo composto apenas por homens, evidencia que voltamos décadas na luta por direitos. Evidenciam o que nós já sabemos, o patriarcado não luta pela liberdade das mulheres. O patriarcado oprime, questiona e intimida. Nesta luta somos todas por uma, todas contra 30.