Por que o senhor atirou em mim? A voz dos jovens mortos pela PM
“Quero a minha mãe”, disse Herinaldo Vinicius de Santana, de 11 anos. Provavelmente não foi a primeira vez que o jovem falou essas palavras. Mas foi a última. Em 23 de setembro de 2015 ele foi baleado e morto por policiais militares na comunidade Parque Alegria, no complexo do Cajú, no Rio de Janeiro.
Por Gil Alessi*, no El País
Publicado 27/05/2016 10:47
Testemunhas disseram que um grupo de PMs patrulhava o local, que conta com uma Unidade Policial Pacificadora, e se assustou quando a criança desceu correndo uma escadaria do bairro. Em seu bolso, 80 centavos para comprar uma bolinha de pingue-pongue. Após receber os disparos, Santana caiu e, segundo testemunhas disse suas últimas palavras: “Quero minha mãe”. Não deu tempo. Quando ela chegou, ele já estava morto. A frase, no entanto, foi imortalizada na página Últimas Palavras de Jovens Negros, criada recentemente no Facebook. O caso de Santana ainda está sob investigação.
“Nossa página tem por objetivo mostrar que esses jovens não eram, e nunca foram enquanto viveram, coisa sem valor”, diz um dos posts, que traça ainda um paralelo entre os métodos violentos da PM de hoje com o dos feitores e capitães-do-mato dos tempos da escravidão no Brasil colônia: “só trocaram o açoites por armas de fogo”. A iniciativa toca em uma antiga ferida do país que ainda está longe de cicatrizar: a maneira como a polícia por vezes age de forma arbitrária e ilegal nos bairros mais pobres. Nas periferias, onde não é necessário ter um mandado de busca e apreensão para entrar na casa de alguém, as balas não são de borracha e muitas vezes levar apenas um tapa na cara é o melhor desfecho para um enquadro.
As frases são acompanhadas pelo nome da vítima, uma breve descrição dos fatos e a hashtag #últimaspalavras. Algumas delas são simples, apenas gemidos ou gritos de dor, o último registro vocal de alguém prestes a morrer. “Mmmm….”, teria dito André Luís Parruda Goulart Siqueira Junior, 17, ao levar um mata-leão de um policial militar no dia 19 de março deste ano. Ele não resistiu e morreu sufocado. A versão oficial é que ele fugiu de uma abordagem da tropa, e precisou ser imobilizado.
“Parece que a sociedade não se toca que existe um recorte racial bem grande nisso, parece que a bala da polícia tem um sensor na ponta que só encontra jovem negro”, afirma Luzia Souza, a professora de História por trás da página. Moradora da periferia da zona leste, ela perdeu um irmão e um primo para a violência. A inspiração para a iniciativa veio de uma série de montagens semelhantes feitas tendo como base as mortes de jovens negros nos Estados Unidos em 2014 e 2015, que deu origem ao movimento Black Lives Matter (Vidas Negras Importam).
Pense duas vezes antes de atirar em mim. Tenho filhos pequenos para criar
A professora aponta ainda o papel da mídia na “naturalização” da violência policial contra jovens negros. “Você percebe isso nas manchetes. Se é um jovem branco preso com droga, é ‘Estudante preso com droga’. Se é um negro, é ‘Traficante preso com droga”. Segundo Luzia, isso colabora para tornar as mortes de jovens negros “normais”. “É como se eles não tivessem humanidade, profissão, família, futuro…”, explica.
Outras frases da página refletem o espanto de quem foi baleado sem motivo algum por quem deveria ser responsável por sua proteção. “Por que o senhor atirou em mim?”, indagou Douglas Rodrigues, 17, após ser alvejado por um PM em 28 de novembro de 2013, na Vila Medeiros, zona norte de São Paulo. Os policiais foram ao local para atender uma denúncia de “distúrbio da paz”. Quando o soldado Luciano Pinheiro Bispo foi sair da viatura para realizar a abordagem, sua arma disparou. Em nota, a corporação afirmou que “por motivo a esclarecer, houve disparo acidental, que atingiu um adolescente, de 17 anos, no tórax”. A morte de Rodrigues provocou uma série de protestos na região norte da capital, que culminaram com a interdição da rodovia Fernão Dias, três caminhões e seis ônibus queimado.
A morte de Douglas – e suas últimas palavras – deram origem a uma campanha contra a violência policial que se espalhou pelas redes sociais. À época, um grupo de artistas, entre eles o rapper Emicida, o cantor de funk MC Guimé e o dj Kl Jay, dos Racionais MC's, gravou um vídeo para dar visibilidade ao caso.
"Não precisa me matar, senhor…", teria dito Lucas Custódio, 16. Em 29 de maio de 2015 o jovem jogava bola com amigos quando foi abordado por policiais. Algemado, foi levado para um matagal na favela Sucupira, no Grajaú, zona sul de São Paulo, onde foi morto. Em um dos posts, os administradores da página dizem que querem “ecoar as vozes dos mortos para que cheguem a todos que não puderam ouvir naquele momento”. E elas chegam. Como um chute no estômago.