O mistério da classe média da América Latina
Nestes últimos anos foi aberto um intenso debate sobre o papel político da classe média na América Latina. Entretanto, este termo “classe média” é exageradamente ambíguo.
Por Alfredo Serrano Mancilla
Publicado 25/04/2016 15:41
Tem tantos significados como focos teóricos. A economia ortodoxa apela ao ingresso para sua definição e a sociologia dominante o limita a um assunto de estratificação social. Outros se central em uma questão de identidade, em uma nova subjetividade emergente que se sente incluída em um modo de vida mediano. Em qualquer de suas interpretações, a classe média existe atualmente como “dilema político de época”.
A estrutura de classes sociais da América Latina se modificou substancialmente de forma acelerada. Se formou um novo sujeito graças às políticas de distribuição de renda implementadas no continente. Na Bolívia, na última década, 20% da população saiu da extrema pobreza e passou a ser considerada como classe média. No Equador, neste mesmo período, a classe média duplicou. Na Venezuela, durante a Revolução Bolivariana, triplicou. Na Argentina, durante o kirchnerismo, se incorporaram 9 milhões de pessoas a esta categoria. No Brasil, durante os governos de Lula e Dilma, a nova classe média engloba 39 milhões de pessoas. Esta ascensão social ou “reenclassamento” positivo é uma característica irrefutável deste ciclo político.
A forma de enfrentamento a este fenômeno será decisiva neste momento histórico. Depois da vitória de Mauricio Macri na Argentina, da derrota eleitoral do chavismo na Assembleia da Venezuela, do resultado negativo de Evo Morales no referendo para a reeleição na Bolívia, a menos de um anos das eleições presidenciais do Equador, e em meio a uma tentativa de golpe contra Dilma no Brasil, o assunto da classe média se situa atualmente no centro do conflito político.
A chamada “nova direita” latino-americana do século 21 está há anos prestando especial atenção em “como falar” a esta nova classe média. O objetivo é duplo. Por um lado, vem prometendo (desde a oposição irresponsável do governo) aquilo que atende à lógica de aspirações deste novo sujeito. E, por outro lado, busca dar-lhe forma e identidade para transformá-la como um ator social alinhado ao seu projeto político-econômico. Apresenta-se assim uma classe média cansada de confrontar, aparentemente despolitizada, que prefere a moderação, majoritariamente urbana, que não se importa com justiça social ou igualdade, se sente mais cômoda com outros valores materiais (consumo) e pós-materialistas (ecologia), e cada vez mais individualizada.
Seguramente há parte de verdade em tudo isso, mas tampouco se pode dar tudo por certo. Tal caracterização responde a uma intencionalidade, a de instaurar um novo sentido comum conservador acerca do que é a nova classe média. Feita sob medida, construída à sua semelhança, e útil como novo sujeito.
Eis aqui a nova jogada do neoconservadorismo para vencer em meio deste impulso sobre a ressignificação do que é a “nascente classe média”. Ainda é um enigma a ser decifrado. Não é a classe média europeia das décadas passadas, sequer é a classe média latino-americana preexistente a estes processos de intensa mobilização social. Álvaro García Linera a denomina como “classe média de origem popular”, o que significa que não é uma classe média propriamente dita. É outra classe média, distinta, que já naturalizou os direitos sociais adquiridos e tem novas aspirações, mas isto não significa que tenha perdido suas raízes. É uma classe média politizada, mas não da mesma forma que o era há uma década. Tem uma nova subjetividade que nos toca a conhecer. Está em constante relação com novos meios (redes sociais), tem outra estética, outros marcos culturais que respondem a uma etapa pós-fordista.
O desafio está em caracterizar a esta “classe média de origem popular” em forma mais complexa do que o fazem Durán Barba e companhia. Este sujeito emergente é heterogêneo e contraditório, é um híbrido do que foi, o que é e o que quer ser. E um ator em transição, em conformação. É mais, todavia, uma espécie de “quase classe média”, que se encontra na ponta do fio, como qualquer recém chegado que sempre pode voltar ao lugar de onde saiu. A isto, o banco Mundial chama de “classe média vulnerável”, porque deixou de ser pobre, mas nunca passou a ser rica e é suscetível a retroceder se a economia não cresce o suficiente. A restrição econômica externa põe em risco sua permanência.
Seguramente este termo “nova classe média” provoca o pensamento tradicional da esquerda, mais acostumado a outras categorias teóricas. Isto é incompreensível, mas não há tempo a perder em um debate em curso que não pede permissão aos manuais clássicos. O mistério da classe média está onipresente. E se permite a restauração de uma “classe média light” procedente da visão neoconservadora, ou ao contrário, se disputa seu significado. Por não fazê-lo corremos o risco de interpretá-la como se fora uma classe média de outro espaço e outro tempo histórico, importada e imposta como tantas vezes fizera com receitas, teorias, categorias, epistemes, marcos analíticos.