Jessé Souza: O golpe, “produto da mídia servil à elite da rapina”
O presidente do Ipea e professor de Ciência Política da Universidade Federal Fluminense (UFF) Jessé Souza faz uma análise histórica da política brasileira que alcança atualmente uma situação de grave retrocesso. No texto “Quem deu o golpe, e contra quem?” publicado neste domingo (24) na Folha de S. Paulo, ele faz uma análise crítica da disputa da “elite do dinheiro” que desde a década de 1930 “quer drenar o trabalho de todos e saquear as riquezas do país para o bolso de meia dúzia”.
Publicado 25/04/2016 14:17
Como ponderou em seu mais recente livro A Tolice da Inteligência Brasileira, o cientista político diz que é preciso analisar essa “crise”, como outras já vividas pelo Brasil, sob a premissa que a nossa elite – que domina o país constantemente desde a época “escravocrata” – construiu uma imagem distorcida do Brasil para disfarçar todo tipo de privilégio injusto e, para isso, a “elite do dinheiro” contou com grande apoio e manipulação da imprensa.
Em seu artigo, ele recorda o começo da disputa polarizada existente no país, que teve início pelos anos de 1930, com o governo de Getúlio Vargas. “O sonho era a transformação do Brasil em potência industrial com forte mercado interno e a classe trabalhadora protegida, com capacidade de consumo. Nossa elite do dinheiro jamais sequer ‘compreendeu’ esse sonho, posto que ‘afetivamente’ nunca sentiu compromisso com os destinos do país”, aponta.
Para Jessé de Souza, “desde então o Brasil é palco de uma disputa entre esses dois projetos: o sonho de um país grande e pujante para a maioria; e a realidade de uma elite da rapina que quer drenar o trabalho de todos e saquear as riquezas do país para o bolso de meia dúzia”.
O autor compara a “elite do dinheiro” do passado com a de hoje que desfila na mesma Avenida Paulista, sua máscara hipócrita e falsa. “É essa elite, cujo símbolo maior é a bela Avenida Paulista, que compra a elite intelectual de modo a construir, com o prestígio da ciência, a lorota da corrupção apenas do Estado, tornando invisível a corrupção legal e ilegal do mercado que ela domina; que compra a política via financiamento privado de eleições; e que compra a imprensa e as redes de TV, cujos próprios donos fazem parte da mesma elite da rapina.”
Governo popular
O cientista político aponta que é historicamente evidenciado que quando um governo progressista chega ao cargo mais alto do país, o tripé inimigo do povo – imprensa, oposição conservadora e elite endinheirada – arrisca-se de todas as artimanhas para tirá-lo do poder por meio de um golpe, seja pelas Forças Armadas, seja “pelo complexo jurídico-policial de hoje”, avalia.
“A história do Brasil desde 1930 é um movimento pendular entre esses dois polos. Getúlio caiu, como o desafeto histórico maior desta elite, por um conluio entre Congresso comprado, imprensa manipuladora e Forças Armadas que se imaginavam pairar acima dos conflitos sociais”, destaca o professor no artigo.
E relembra ainda: “O suicídio do presidente adia em dez anos o golpe formal, que acontece em 1964 pela mesma articulação de interesses. O curioso, no entanto, é que dentro das Forças Armadas existia a mesma polarização que existia na sociedade”.
Para o autor, “ainda que o capital privado fosse muito bem-vindo, a condução do projeto de longo prazo era do Estado. Foi o bastante para que os jornais se lançassem em uma batalha ideológica contra a ‘república socialista do Brasil’ e os empresários descobrissem, de uma hora para outra, sua inabalável ‘vocação democrática’”.
Para o cientista, não houve por parte da sociedade uma análise mais profunda da conjuntura. “O público ficou sem saber por que o golpe tinha ocorrido e, depois, por que ele havia sido criticado. Criou-se uma anistia do ‘esquecimento’ no mesmo sentido da queima dos papéis da escravidão por Rui Barbosa: para que jamais saibamos quem somos e a quem obedecemos.”
Já com o governo FHC, diz Jessé no artigo, “essa elite da rapina de curto prazo se insere, enfim, não apenas no mercado, mas também, com todas as mãos, no Estado e no Executivo”.
“A festa da privatização para o bolso da meia dúzia de sempre, da riqueza acumulada pela sociedade durante gerações, se deu a céu aberto. A maior eficiência dos serviços, prometida à sociedade e alardeada pela imprensa, sempre solícita e sócia de todo saque, se deixa esperar até hoje”, conta.
Ascensão do povo
Jessé acredita que a eleição de Luiz Inácio Lula da Silva, um torneiro mecânico representante do povo, como presidente da República se deu porque a “imprensa a serviço do saque e do dinheiro não pode fazer todo mundo de tolo durante todo o tempo, e como ainda existem sonhos que o dinheiro não pode comprar, o Executivo mudou de mãos em 2002”.
Segundo o cientista, “o novo governo tentou o mesmo projeto desenvolvimentista anterior, de apoio à indústria e à inteligência nacional. Mas seu crime maior foi a ascensão dos setores populares via, antes de tudo, a valorização real do salário mínimo. Os mais pobres passaram a ocupar espaços antes exclusivos às classes do privilégio”.
Com parte da classe média incomodada com a diminuição na desigualdade social e econômica, com a proximidade entre classes, a classe média, segundo o autor, “temia que essa classe ascendente pudesse vir a disputar os seus privilégios e os seus empregos”.
Para tanto, o discurso da “corrupção”, mesmo que seletiva, manipulado pela grande mídia permitiu-se enfrentar “o medo mais mesquinho com um discurso moralizador e uma atitude de pretenso ‘campeão da moralidade’ da elite brasileira”. “O que antes se dizia a boca pequena entre amigos agora pode ser dito com a camisa do Brasil e empunhando a bandeira nacional. Está criada a ‘base popular’, produto da mídia servil à elite da rapina”, esclarece.
A luta contra os juros altos
Para Jessé Souza, a luta contra os juros, desencadeada pela presidenta Dilma em 2012, provoca na elite, que já mama na teta dos juros altos, uma reação unificada de parte da sociedade contra a presidenta, que se desencadeia nas manifestações de 2013.
“Quando em abril de 2013 as taxas de juros voltam a subir, a elite está armada e unida contra a presidenta. As ‘jornadas de junho’ daquele ano vêm bem a calhar e, por força de bem urdida campanha midiática, transformam protestos localizados em uma recém-formada coalizão entre a elite endinheirada e a classe média ‘campeã da moralidade e da decência’ contra o projeto inclusivo e desenvolvimentista da esquerda.”
Difícil, mas vitoriosa reeleição
“Como os votos dos pobres recém-incluídos são mais numerosos, no entanto, perde-se a campanha de 2014. Mas a aliança entre endinheirados e moralistas de ocasião se mantém e se fortalece com um novo aliado: o aparato jurídico-policial do Estado.”
Segundo analisa Jessé, “os altos salários e demanda crescente por privilégios de todo tipo, associados ao ‘sentimento de casta’ que os concursos dirigidos aos filhos das classes do privilégio ensejam, transformam esses aparelhos que tudo controlam, mas não são controlados por ninguém, em verdadeiros ‘partidos corporativos’ lutando por interesses próprios dentro do aparelho de Estado”.
Elemento novo do velho golpe surrado de sempre
Para o analista, o diferencial desta nova tentativa de golpe da elite, agora contra a presidenta, foi a manipulação da informação sobre corrupção, seletivamente divulgada pela imprensa – “discurso ideal para travestir os mais mesquinhos interesses corporativos em suposto ‘bem comum’ e a disputa pelo ‘troféu de campeão da moralidade pública’ que passa a ser disputado por todas as corporações”.
Jessé Souza acredita que o passo seguinte da conjuntura brasileira seja o perigoso acirramento da criminalização da esquerda. “Muita injustiça será cometida em nome da Justiça”, aponta. “Mas existe também a oportunidade. Nem toda classe média é o aprendiz de fascista que transforma seu medo irracional em ódio contra os mais fracos, travestindo-o de ‘coragem cívica’.”
O analista conclui que “ainda que nossa classe média esteja longe de ser refletida e inteligente como ela se imagina, quem conseguir escapar ‘do bombardeio diário de veneno midiático’ não deixará de estranhar o mundo que ajudou a criar: uma sociedade condenada à miséria material e à pobreza espiritual. Esse golpe precisa ser compreendido por todos. Ele é o espelho do que nos tornamos”, aponta.