Christiane Brito: O melhor sim; o amado, nunca!
Esta é a história de um médico negro que a minha avó, Hilda César Marcondes da Silva, escreveu no final dos anos 1950. Mostra circunstâncias já superadas, em parte, pela inclusão social dos últimos 20 anos, particularmente nos governos de Lula e Dilma.
Por Christiane Brito*
Publicado 23/04/2016 10:47
Porém, a recente e feroz reinvestida de estudantes de medicina contra o sistema de cotas deflagra a triste realidade do preconceito, mais forte do que as leis. É o que, infelizmente, torna a narrativa a seguir atual. Temos que lutar para manter o conquistado!
Minha avó publicou esse texto no seu primeiro livro de contos, mas já colaborava regularmente com revistas e jornais da época, como Cigarra e Fon-Fon.
Vovó Hilda nasceu em família de fazendeiros do Vale do Paraíba, mas a certa altura escolheu trilhar o caminho mais difícil na vida. Divorciou-se, tornou-se escritora, foi para a faculdade de Direito após os 60 anos — nasceu em 1910 –, sobretudo aprendeu a sentir a dor do outro na própria pele. Porque sofreu muito: publicou este livro (“As três irmãs de Judas”, Companhia Editora Nacional, 1962) após um luto pessoal muito sofrido.
Talvez, infelizmente, esse seja o único caminho para a verdadeira compaixão, talvez, infelizmente, o Brasil vá enfrentar mais um de seus lutos históricos, mas aprenderemos, cedo ou tarde a nos defendermos juntos e não a serviço da elite, na qual, por acaso, nasci.
Segue o conto, "Unha rosada", conforme escrito pela minha avó. O final é inesperado de tão injusto. Os personagens principais, Juvenal e Edson, estão vivendo a saudável competição dos 10 anos de idade, o primeiro é motivado pela clássica paixonite de criança pela professora mais linda da escola, D. Lídia. Mantive a linguagem e ortografia original dos anos 1950, quando a expressão “escurinho” era a mais a utilizada na literatura formal, esse tempo de eufemismo passou, pelo menos isso!
"Todavia, para desolação de Juvenal, Edson lhe tomara a dianteira. Colocara-se, com orgulho e arrogância, na posição de predileto. Era ele quem limpava o quadro-negro, distribuía os lápis e cadernos, transcrevia os problemas de matemática e outros encargos que faziam as delícias dos meninos. Edson, menino rico, bem cuidado, bonito e de cabelos castanhos encaracolados, atraiu, sobre si, as afabilidades da jovem mestra. Com o passar do tempo, mais se firmou tão gritante preferência. Ao escurinho do Juvenal nada sobrava. Nunca lhe foi destinada uma incumbência, por mais tola e insignificante. Lá no seu cantinho, mais invisível e escuro se tornava ele. Edson era o senhor absoluto daquela seara. Fazia-se melhor em tudo. O mais aplicado, tirava, mensalmente, o primeiro lugar. Por mais aquele motivo monopolizava, para si, os carinhos de D. Lidia. Até beijinhos ela passa a dar-lhe quando lhe entregava os boletins com as notas. E o sabidão ficava todo baboso., assim que os lábios da mestra lhe estalavam na testa e nas bochechas. Juvenal roía-se de inveja. Que poderia fazer para merecer tão encantadora dádiva? É possível que, se conseguisse notas tão altas como as do colega, lhe sobrasse um pouquinho daquela ternura. Sofria, todavia, compreendendo que seu físico não era lá muito atraente para inspirar desejos de ser beijado.
No segundo semestre, Juvenal tomou uma decisão: arrebataria o primeiro lugar ao colega. Passou a estudar com afinco, surpreendendo a todos. Diariamente, levava as lições na ponta da língua, colocando a professora em sérias dificuldades. Edson constituía para Juvenal o maior entrave.
Competição duríssima. Enquanto o menino rico levava vida mansa, com professor particular para lhe mastigar as aulas, o menino pobre teria que se desdobrar para dar conta da tarefa. A disputa se tornara, sem sombra de dúvida, árdua e desesperada. Somente à noite lhe sobrava tempo para dedicar aos deveres escolares. Renunciaria a todos os divertimentos que o compraziam. Adeus fitas em séries! Acabaram-se os bate-bolas de meia, no Largo da Igreja. Tudo abandonara por falta exclusiva de tempo. Sua vida mudara, radicalmente, causando estranheza a todos. Seguia outra diretriz. Seu único desejo era de derrubar o Edson de seu pedestal, custasse o que custasse. Teriam, então, que ver – os carinhos de D. Lídia seriam dele, somente dele.
As notas, distintas, começaram a chover nas páginas de seus cadernos e no boletim. D. Lídia não tinha por onde fugir. Juvenal as merecia de fato. Para tamanho esforço, porém, apenas um gentil “muito bem”! As esperanças, entretanto, não lhe faleciam completamente. Um dia ou outro a coisa se modificaria. Ela reconheceria sua força de vontade e lhe daria o tão almejado beijo.
Coisa estranha, porém! O primeiro lugar já lhe pertencia, por direito e, no entanto, nas bochechas do colega é que as beijocas continuavam! E as mãozinhas, macias e aveludadas, pousavam sobre os caracóis castanhos, afagando-os com ternura. Aquelas mãozinhas que pareciam recortadas em pétalas de lírio, de tão alvas e cheirosas; aqueles dedos longos, de unhas compridas e bem cuidadas… Quantas vezes, ao vê-las pousadas sobre as páginas de seu caderno, corrigindo-o, não tivera ímpetos de acarinhá-las, beijando-as com fervor religioso! Queria beijá-las como beijaria as mãos de sua mãe, se ainda vivesse. Que amor sublime sentia o rapazinho por aquelas mãos! Vivesse sua mãe e ele, por certo, haveria de transmitir-lhe todas as carícias de que sua alma andava cheia! As mãos de sua madrasta eram tão escuras e encardidas…dedos grossos e unhas roídas pelo trabalho… Talvez as de sua mãe, também, fossem assim. As de D. Lídia, todavia, eram diferentes, feitas de material mais fino, mais delicado!
Certa manhã, durante a aula de matemática, Juvenal foi chamado ao quadro-negro. D. Lídia, tomando o giz entre os dedos, principiou a escrever os números de uma equação. O menino, atento, aguardava, ao lado. Num esforço mais forte para escrever, a unha do indicador se partiu, num clique sonoro. D. Lídia ficou penalizada. Um dia antes, estivera na manicure, e, naquela manhã, suas unhas se apresentavam frescas e rosadas. Juvenal assistiu ao desastre, sem nada poder fazer para evitá-lo. Sentiu-se culpado. Talvez, se houvesse pedido à professora para escrever no quadro-negro, tivesse evitado o acidente, de tão grande importância para ela. Ela mesma, entretanto, não se demorou em lamentações. Rápida, abriu a bolsa e, tirando uma tesourinha, amputou a unha quebrada. Juvenal não perdeu um só gesto e, ao ver que ela se dispunha a jogar, no cesto, o delicado fragmento, pediu-o com timidez.
– Para que você o quer? Perguntou-lhe a mestra contrafeita.
Juvenal, mais embaraçado ainda, sem saber que justificativa apresentar, sentindo sobre ele o olhar de zombaria dos colegas, balbuciou:
– À toa…
Naquela mesma tarde, a unha rosada foi dormir num alvo e macio colchão de algodão, numa caixinha de veludo azul que lhe dera uma freguesa de quitanda. Um cofre delicado para tão maravilhosa joia.
À noite, depois do serviço, quando os pais já se tinham recolhido, Juvenal, terminadas as tarefas escolares, retirava do esconderijo a partícula cor-de-rosa, beijava-a com enternecimento e a guardava com zelos. Atirava-se na cama, deitava-se de costas, as mãos sob a cabeça, as pernas cruzadas para o alto e ficava, horas e horas, pensando. “Continuaria os estudos, embora isso lhe custasse enormes sacrifícios. Derrotaria o Edson de uma vez e, no futuro, seria como Patrocínio, Luís Gama e muitos outros, escurinhos como ele, mas que conquistaram um lugar ao sol. Tornar-se-ia grande e ilustre e, então, pediria a D. Lídia que se casasse com ele. Ela, com certeza, o aceitaria. Não sentiria vexame de dizer a todos que desposara o seu melhor aluno, que se fizera tão importante! Talvez que a diferença de idade fosse empecilho. D. Lídia era dez anos mais velha que ele. Isso, entretanto, não constituiria, problema tão sério. Conhecia tantas mulheres mais velhas do que os maridos! Depois, se Juvenal conseguisse ser como Patrocínio, de quem D. Lídia tanto falava, ela só poderia sentir orgulho dele.”
Daquele modo ficava o moleque, parte da noite, a construir os mais loucos e ousados castelos. Embebia-se naquele sonho ingênuo de criança de onze anos, simples e sem malícia. Não envolvia, naqueles pensamentos, o motivo sexual. Não! Ele nada sabia, ainda daquelas coisas. Era, na verdade, um amor puramente infantil, sem vislumbres de maldade.
O fim do ano letivo chegou, trazendo as alegrias do término das aulas e a tradicional festa de encerramento. No pátio foi armado o palco de madeira para a comemoração. À mesa sentaram-se as autoridades da cidade, o diretor e os professores. Nos bancos, em fileiras, os alunos do estabelecimento. Na frente, os diplomandos, felizes, de terninho branco, gravatinha borboleta e sapatos pretos.
A expectativa era enorme. Quem teria levantado o prêmio? Edson, de bochechas rosadas e sadias, mais vermelhas e rechonchudas do que nunca, sorria antecipadamente, confiante e satisfeito. Tinha certeza absoluta de que ninguém lhe arrebataria tão ambicionado laurel. Juvenal, metido no meio dos outros, ocultava-se entre os companheiros, sentindo-se diminuído e insignificante. Sempre o maldito complexo a torturá-lo. Sentia-se pequenino e inferior, na presença do colega privilegiado. O abominável rival teria, sem dúvida, conquistado o prêmio. D. Lídia não permitiria, a outro, roubar-lhe aquele direito. E Juvenal se esforçara tanto! Tudo fizera por causa dela. Queria dar-lhe o gosto. Um aluno seu disputando o primeiro lugar e mais a medalha de ouro, entre todos os alunos do grupo escolar. Ela receberia elogios pela sua eficiência e ele se julgaria recompensado…
A festa teve início com a voz forte do diretor chamando o aluno distinguido. Juvenal encolheu-se. Não desejava participar da vitória do colega. Era possível que o prêmio coubesse a uma das meninas. Mulher é sempre mais aplicada do que homem. Mas, então, a glória não seria de D. Lídia. Seria uma verdadeira tragédia. Enfim, seria melhor para ele que tão cobiçado troféu fosse para a classe feminina, a ser do Edson.
Abismado em suas conjecturas, Juvenal não ouviu bem quando o chamaram: “Juvenal Cardoso”! O menino estremeceu. Habituara-se àquela voz, quando de castigo na diretoria. Sentiu-se como se fosse ouvir uma reprimenda. Encolheu-se no banco, envergonhado. Nada fizera de mal. Por que o chamavam então? Teria ouvido bem? Daquela vez tinha certeza de que nada fizera. Não havia culpa contra ele. Estava muito quietinho e comportado, ou…seria mesmo seu nome que ouvira?
Não. Não houve nenhum engano. Chamavam-no, novamente: “O Sr. Juvenal Cardoso não se acha presente?” Agora, já não lhe restava dúvida. Era a ele mesmo que chamavam. Mas…por que não chamaram o Edson? Era ele o primeiro aluno!
Suas pernas tremeram e a coragem lhe faltou. Espichou o pescoço. A cabeça pesava como chumbo. Buscou o rosto animador de D. Lídia. Lá estava ela, sorrindo satisfeita para ele, acenando com a cabeça. O menino cobrou ânimo. Levantou-se e caminhou. Empertigado, no terninho de algodãozinho alvejado que a madrasta engomara tão bem. As botinhas lustrosas, que o pai engraxara com esmero, ringiam de satisfação. Aproximou-se da mesa e recebeu, das mãos do Sr. Vigário, o prêmio de seus esforços. A medalha de ouro balançou, brilhando, na lapela do paletó. Num canudo de cartolina, amarrado com fitinha verde-amarelo, lhe entregaram o diploma. Fôra ele o aluno premiado, em todo o grupo escolar! Alguém falou na mesa, talvez o diretor: “Prodígio fez esse menino. Era o pior da escola”.
Meia dúzia de palavras foram proferidas pelo inspetor escolar, Mal as ouviu. Sua vontade era fugir, fugir correndo dali. Tão grande sua emoção, que se sentia completamente oco. D. Lídia veio ao seu encontro. Estava risonha e feliz. Uma coisa esquisita lhe subiu pelo peito, passando-lhe pela garganta, enrubescendo-lhe o rosto. Suas orelhas pegaram fogo. Aquele seria o momento. “Daquela vez ela o beijaria”, pensava. Ele conquistara o tão invejado laurel. Ela não deixaria de recompensá-lo.
Havia de dar-lhe um daqueles beijos, que tantas e tantas vezes prodigalizara ao Edson. Daquela vez não lhe restava nenhuma dúvida…” E o menino, antegozando o instante sonhado, semicerrou os olhos, ergueu-se na ponta dos pés, para melhor facilitar a tarefa afetuosa, e esperou! Assim não foi, porém. Não sentiu, em sua face, o calor dos lábios da professora. Nem sequer ouviu o som divino do beijo em sua testa. Apenas o gesto costumeiro. A mãozinha leve pousando sobre seu ombro magro e aquelas palavras que soariam, em sua memória, pelo resto de seus dias. “Muito bem, Juvenal! Espero que você continue sempre assim. Estudioso e aplicado. E que no futuro se torne um grande homem.” Um grande homem…um grande homem…um grande homem…
Juvenal abriu os olhos, náufragos em um mar imenso de lágrimas, boiando entre as procelas das dores e desilusões. Suas palavras saíram roucas e apagadas:
– D. Lídia… o prêmio é seu…ganhei para a senhora!…
As mãos perfumadas, de unhas polidas, impeliram-no, com carinho, na direção dos bancos. As lágrimas dançavam nos olhos escuros, como diabinhos nas caldeiras do inferno. Uma salva de palmas o acompanhou até seu lugar. Os aplausos puseram confusão nos seus pensamentos. Para que palmas? Para que todo aquele entusiasmo, se ele estava sofrendo tanto? Não queria nada daquilo. Fora roubado no que mais ardentemente sonhara!
Ao sentar-se, olhou para o Edson. Era seu o prêmio. Arrebatara-o ao companheiro odioso. Tirara-lhe a mais brilhante vitória. Derrotara o rival, antes o primeiro da classe. Todavia, de que lhe valera o triunfo? O outro nem se molestara. Continuava sorrindo, satisfeito e venturoso.
O segundo chamado foi Edson Lima. O adversário detestável levantou-se e caminhou altivo, como um pequeno rei que vai ser coroado. O terno de linho branco estalava de engomado. Os sapatos novos de verniz brilhavam como espelho, refletindo, na biqueira, o porte vaidoso do menino.Juvenal não perdeu um só movimento do colega. Viu quando recebeu a medalha de prata e o diploma. Tirara o segundo lugar. D. Lídia aproximou-se e o abraçou…beijando-o nas faces! Os olhos de Juvenal não mais puderam reter as lágrimas. O pranto amargo escorreu-lhe pelas faces, pingando na medalha e manchando a cartolina branca.
Um desespero íntimo explodiu dentro do seu coração ingênuo de criança infeliz. Revoltou-se contra tamanha injustiça. Por que não fora beijado, ele, que recebera o prêmio por merecimento? Por que o Edson era melhor que ele?
Uma vontade alucinada de gritar para que todos o ouvissem:
– Por que não me beijou como fez ao Edson? Eu que conquistei o prêmio para a senhora! Por que não me beijou? Por quê?…."
Importante: Eu transcrevi apenas o final do conto. No começo, um jovem médico está arrumando a mudança de uma pensão barata, de São Paulo, para a Alemanha. Havia se formado com muita luta e, finalmente, conseguira uma bolsa de estudos na Alemanha por ser um dos melhores alunos da universidade. O médico parou de fazer as malas quando encontrou a caixinha de veludo azul com a unha rosada. O médico é Juvenal. Minha avó vai contando a história em flashback, que começa quando uma professora linda, D. Lídia, assume a turma do Juvenal no grupo escolar.
*Christiane Brito é jornalista e escritora, militante dos direitos humanos, foi agente literária da biografia “Sabotage, um bom lugar”, de Toni C., LiteraRua, 2013. É adepta do “favelês” como legítima e criativa expressão do idioma português do Brasil e seguidora do Hip-Hop, como um dos movimentos artísticos mais inovadores dos últimos 20 anos.