Golpe representa desconforto das elites com mobilidade social
Para o filósofo José Antônio Moroni, do colegiado de gestão do Instituto de Estudos Socioeconômicos (Inesc), o Plano Temer para o Brasil deveria chamar-se não Ponte para o Futuro, mas Ponte para o Precipício. “Se aquele projeto for implementado, vai levar o país ao precipício, porque retira todas as garantias que foram criadas pela Constituição de 1988 e coloca o Estado completamente a serviço do capital financeiro”, disse.
Por Joana Rozowykwiat
Publicado 17/04/2016 23:56
Poucos dias antes da votação do impeachment na Câmara, Moroni concedeu entrevista ao Vermelho, na qual avaliou que o país estava sofrendo um “golpe institucional”. Para ele, a investida antidemocrática reúne forças do Parlamento, de setores do Judiciário, do Ministério Público e da grande imprensa, que “escolheram a via do impeachment para aparentar certa
legalidade”. Mas, “se você for analisar, não há essa legalidade”, afirmou.
Para o filósofo, a “agenda oculta” do golpe está marcada por um “desconforto” de segmentos da elite brasileira e da classe média com políticas sociais implementadas nos últimos anos. “Mesmo que sejam residuais e não alterem a estrutura social, econômica, cultural e política, essas políticas criaram certa mobilidade social – o Bolsa Família, a valorização do salário mínimo, o Prouni, o Fies, as políticas afirmativas. Numa sociedade machista, homofóbica e racista, com o tempo, veio uma reação desses setores que não aceitam qualquer alteração mínima nessa estrutura”, opinou. Para ele, esse é o “caldo” que foi “mexido pelos desacertos do governo”.
Segundo Moroni, esses setores de centro-direita – que em certo momento até gravitaram em torno do PT em função da questão colocada pela governabilidade – perceberam que, “pela via eleitoral, dificilmente voltariam a compor” os espaços de poder. “Resolveram criar um atalho, que, infelizmente, faz parte da nossa cultura política”.
O gestor do Inesc lembrou a tradição brasileira, onde os mandatos costumam ser interrompidos. “Na nossa história, só três presidentes terminaram seus mandatos: Jucelino Kubitschek, Fernando Henrique Cardoso e Luiz Inácio Lula da Silva. As elites brasileiras, quando têm seus interesses ameaçados, não têm escrúpulos nenhum em ferir a democracia. Para eles, mesmo essa democracia formal, eleitoral, não é um valor. O valor máximo é garantir seus privilégios e ganhos”, criticou.
De acordo com ele, em uma sociedade conservadora como a brasileira, o discurso anticorrupção “pega” em amplos setores e tem sido usado para atrair apoio aos que se colocam contra as mudanças. “O discurso da corrupção vem para dar densidade social e política a esses grupos que se opõem a um governo que procura, minimamente, enfrentar as desigualdades”.
Para Moroni, a “agenda por trás do impeachment” é impossibilitar qualquer mudança na estrutura socioeconômica e cultural do país. “É uma agenda conservadora que precisa ser combatida”, advertiu, ressaltando que o golpe está intimamente ligado a uma pauta retrógrada que tramita no Congresso Nacional, paralelamente ao impeachment.
Congresso conservador
O filósofo crê que o Parlamento brasileiro, hoje, é muito mais conservador, em parte por uma descaracterização ideológica dos partidos. “Não é uma questão só numérica. Se comparar 1988, 1992, 1996, numericamente, a esquerda era bem menor. Mas tinha um grupo de parlamentares muito coeso politicamente, ideologicamente, que fazia o debate ideológico no Parlamento. Com o tempo, houve uma descaracterização da maioria dos partidos e isso se diluiu no Congresso Nacional e fez com que grupos fundamentalistas avançassem na sua agenda”, avaliou.
Moroni afirmou que, agora, alguns grupos “não têm mais escrúpulos” de apresentar certos projetos abertamente. E, para ele, “essa barreira foi rompida” nas eleições presidenciais de 2010, quando o candidato José Serra, do PSDB, colocou em debate “uma agenda extremamente conservadora, muito espelhada no partido republicano norte-americano, que é anti-direitos civis, das mulheres, dos gays etc”.
“Ali começou-se a dar uma densidade social e política a uma agenda que estava dispersa. Com o crescimento da bancada do fundamentalismo religioso – que se alia à bancada da bala, do agronegócio, e da bola – [esses parlamentares conservadores] começam a ter, em termos numéricos, uma presença grande e a ocupar lugares de destaque. Hoje têm a Presidência da Câmara e de várias comissões, inclusive algumas tradicionalmente ligadas à defesa de direitos”, apontou.
De acordo com ele, o avanço dessa agenda conservadora – que inclui fim de garantias trabalhistas e ataque a direitos sociais – e o impeachment têm tudo a ver. “Por que a Presidência tem poder de veto, poderia barrar projetos que atendem às bases ou aos financiadores desses parlamentares, como é o caso do projeto da terceirização”, disse.
Ponte para o precipício
Questionado sobre a plataforma Ponte para o Futuro, que reúne propostas para a economia defendidas por Michel Temer e seus aliados no pedido de impeachment, Moroni defendeu que o melhor nome para o documento seria “Ponte para o precipício”.
“É um retrocesso completo e quem vai pagar a conta do ajuste que querem fazer são os trabalhadores e o Estado. Porque o projeto deles, basicamente, é a garantia de que o Estado vai ser o fiador do mercado. Todas as políticas públicas estariam subordinadas à lógica do Estado como fiador do mercado. Então vai tudo para a conta dos trabalhadores. Se implementado, é a total falta de futuro para o país”, disse, ainda sem saber que o impeachment avançaria na Câmara.
De acordo com o filósofo, um governo Temer que levasse adiante esta plataforma significaria um projeto ainda pior que aquele implementado no país, durante a década de 1990 – considerada a década perdida.
“Seria pior porque, ali, querendo ou não, teve privatizações, o discurso da modernização, mas eles não tiveram a ousadia, na época, de avançar nas chamadas políticas universais, seja na saúde, seja na educação, ou nas garantias individuais. Hoje, a lógica da Ponte para o Futuro é colocar as políticas sociais sob concepção do mercado”, reiterou.
Para ele, entre as medidas que serão levadas adiante, está a “privatização da saúde, através das Organizações Sociais, um processo que vem sendo feito em São Paulo, por exemplo, que é governado pelo PSDB”. Moroni então avalia que o Plano Temer para o Brasil “radicaliza o projeto de 1990 e o leva para todas as esferas, inclusive para as políticas sociais”.
O filósofo critica ainda a possibilidade de “privatização da previdência” e o Orçamento de Base Zero, defendido pelo PMDB. “Se já temos, na saúde e na educação, um problema de financiamento dessas políticas universas, o que será sem recursos vinculados? Vai haver problema de descontinuidade das políticas com certeza. Porque a cada ano deverá ser negociado um orçamento para aquelas políticas. Num momento de crise, a primeira parte do Orçamento que vão cortar será a dessas políticas”.
Segundo Moroni, a proposta de eliminar a vinculação de percentuais do Orçamento a determinados gastos sociais tem por objetivo drenar os recursos públicos para o pagamento de juros. “Na verdade, essa questão da desvinculação de receitas é para garantir o superávit primário, que nada mais é do que o que governo economiza para pagar juros da dívida, que vai para 5 mil famílias rentistas que têm aplicações na dívida brasileira. É bem claro isso”, lamentou.
“Eles desmontam completamente a constituição de 1988, portanto é uma agenda pré-Constituição de 1988”, encerrou.