Dallari: “Pedaladas” não foram apropriação de dinheiro público
O professor emérito da USP, Dalmo Dallari, voltou a reafirmar que os argumentos apresentados para embasar o impeachment contra a presidenta Dilma Rousseff não têm base legal. Ele enfatiza que, diferentemente do que a mídia diz, as chamadas pedaladas “não significam apropriar-se de dinheiros públicos em benefício próprio ou entregá-los ilegalmente a alguém”, mas artifícios contábeis de “transferência de recursos financeiros de um fundo público para outro fundo público”. Confira o artigo.
Publicado 01/04/2016 10:26
Por vários motivos, incluindo inconformismo pela derrota nas eleições em que mais de cinquenta e quatro milhões de cidadãos e cidadãs brasileiros elegeram Dilma Rousseff para a Presidência da República, e mais o despreparo para a cidadania e desrespeito aos princípios éticos e jurídicos que embasam a Constituição brasileira, incapacidade de aceitar as mudanças sociais decorrentes da efetivação das normas constitucionais referentes aos direitos econômicos, sociais e culturais e de aguardar as novas eleições presidenciais para tentar fazer prevalecer, por via democrática, as suas preferências, essas falhas somadas à ignorância dos princípios e das normas jurídicas evidenciada por alguns que se pressupunha que tivessem um bom preparo jurídico, tudo isso compõe o quadro dos que desejam, obsessivamente, o impeachment da presidente Dilma, mesmo sem ter fundamento jurídico par tal pretensão.
Alguns fatos diretamente relacionados com as pretensões de impedir a presidente da República de exercer o mandato que lhe foi conferido pelo povo em eleições democráticas e, paralelamente, de impor sérias restrições ao exercício de seus direitos ao ex-presidente Lula, cidadão brasileiro no pleno gozo de seus direitos civis e políticos, têm deixado evidente a influência dos fatores acima enumerados. Ressalte-se, desde logo, a surpreendente e absurda informação da Ordem dos Advogados do Brasil-OAB, por sua secção nacional, de que irá protocolar pedido de impeachment da presidenta Dilma, indicando como fundamentos da proposta “a intenção da presidente de beneficiar o ex-presidente Lula, alvo de investigação judicial, atribuindo-lhe as prerrogativas de ministro de Estado”. Como advogado, inscrito na OAB há mais de quarenta anos, fiquei surpreso e revoltado ao tomar conhecimento desse absurdo jurídico, pois não existe no direito brasileiro ou de qualquer sistema jurídico democrático a punição baseada somente em intenção, desligada de algum ato concreto que a lei defina como crime. Como é óbvio, a intenção é um elemento abstrato que não pode ser comprovado, mas, além disso, a Constituição exige, expressamente, que o presidente da República tenha praticado um “ato” que se enquadre entre os crimes de responsabilidade. Esses crimes estão especificados no artigo 4º da Lei nº 1079, de 1950, não havendo ali, como é óbvio, nada parecido com o “ crime de intenção”.
Além desse absurdo jurídico, que compromete a imagem da OAB por deixar em dúvida o preparo jurídico de seus dirigentes, foi informado também que serão tomadas por base para seu pedido as medidas contábeis popularmente designadas como “pedaladas fiscais”. Ora, o que a lei prevê como crime de responsabilidade à prática de atos contra a lei orçamentária, ou seja, realizar despesa não autorizada pelo orçamento ou contrariando as regras orçamentárias, assim como praticar atos contrários à guarda e o emprego legal dos dinheiros públicos. Ora, as chamadas pedaladas, que foram amplamente utilizadas pelo então presidente Fernando Henrique Cardoso, não significam apropriar-se de dinheiros públicos em benefício próprio ou entregá-los ilegalmente a alguém. Elas são artifícios contábeis relacionados com a época de transferência de recursos financeiros de um fundo público para outro fundo público. Assim, pois, não existe aí fundamento jurídico para a imposição do impeachment, que, mesmo quando juridicamente cabível, traz conseqüências muito negativas para o interesse público.
Cabe aqui outra observação sobre as “mancadas” ligadas ao impeachment. Rebatendo a alegação de que o impeachment seria um golpe, alguns, especialmente personalidades da área jurídica, argumentam em sentido contrário, lembrando que o impeachment está previsto na Constituição, mas esquecendo-se de que a própria Constituição estabelece condições precisas para sua aplicação. Com efeito, os artigos 85 e 86 da Constituição estabelecem a possibilidade de cassação do mandato do presidente da República, mas, precisamente pela gravidade de uma decisão como essa, a Constituição estabelece, expressa e claramente, as circunstâncias em que isso pode ocorrer, exigindo, como condição necessária, que o presidente tenha praticado ato que configure um crime de responsabilidade. Ora, o que tem acontecido até agora é que nenhum dos proponentes ou defensores do impeachment indicou um fundamento jurídico válido para aplicação desses preceitos constitucionais. E não existindo fundamento jurídico-constitucional o impeachment seria efetivamente um golpe contra o sistema político-jurídico democrático consagrado na Constituição feita pelo povo em 1988. Assim, pois, dizendo que o impeachment não seria um golpe simplesmente porque está previsto na Constituição os que assim procedem cometem também uma “mancada”, pois ignoram ou esquecem as exigências constitucionais para sua aplicação legítima e democrática.
Por todos esses motivos, é necessário, e de interesse público, que as manifestações contrárias ao governo não sejam manifestações contrárias à ordem constitucional. O povo tem o direito de se manifestar livremente e de expressar seu descontentamento com o governo no seu todo ou em relação a pontos determinados, mas isso deve ser externado por via pacífica e institucional, respeitando os que têm opinião divergente e propondo objetivamente nova orientação e novas medidas, que poderão ser aplicadas já neste governo ou no que, democraticamente, for eleito para o mandato seguinte.