TV Digital, retrocesso à vista?
Desconhecida por grande parte da população, o projeto da TV Digital no Brasil, que pode garantir o acesso a serviços básicos a um grande número de pessoas, está sendo jogado para escanteio. Ela permite que os receptores de TV sejam capazes de apresentar conteúdo audiovisual de alta definição e executar aplicações variadas, transmitidas pela emissora.
*Por Rafael Diniz e Alan Livio, no site Outras Palavras
Publicado 22/02/2016 11:43
Regulamentado no governo Lula, em 2003, sob os princípios de garantir “a promoção da inclusão social” e “a democratização da informação”, o inovador Sistema Brasileiro de Televisão Digital (SBTVD) corre riscos devido ao lobby de grandes empresas de telecomunicação.
Na última reunião do Gired, entidade criada pelo governo para planejar a transição do sistema de TV analógico para o sistema digital (também conhecido como switch-off), apresentaram-se mudanças drásticas no planejamento. Ela atrasa não apenas o cronograma de digitalização da TV no Brasil, como também afeta a distribuição de receptores digitais para os beneficiários do Bolsa Família, previamente planejados pelo governo.
Essa nova resolução revoga diversas outras portarias, estabelecidas anteriormente (Portaria MC nº 477, Portaria MC nº 481, Portaria MC nº 2.765, Portaria MC nº 3.205,Portaria MC nº 1.502). Nas antigas, estipulava-se o prazo da mudança para o sinal digital para até 2018, no Brasil inteiro.Também estava planejada a distribuição de 14 milhões de receptores com interatividade plena (chamada de Ginga C) para beneficiários do Bolsa Família. Segundo o novo cronograma, entretanto, a grande maioria das cidades não fará a transição completa no prazo. Em 2016, apenas as cidades de Rio Verde e Brasília terão o sinal analógico desligado. Já em 2017 e 2018, as capitais e regiões ricas do país farão o switch-off. As demais cidades terão, com sorte, o sinal analógico desligado no prazo até 2023. Além disso, com a nova portaria, somente 5,8 milhões de receptores com interatividade plena serão distribuídos para os beneficiários do bolsa família até 2018 – um corte de quase dois terços.
Com essas mudanças, é possível observar uma nova posição do governo. Ao favorecer os grandes centros urbanos desta maneira, deixa claro que está visando garantir os interesses das empresas de telecomunicações. Nas grandes cidades, estas megaempresas (com assento cativo no Gired) têm forte interesse na digitalização da TV por conta da consequente liberação do espectro na faixa dos 700MHz – necessária para a expansão comercial de serviços 4G. Para as cidades menores, nas quais os serviços de 4G não são comercialmente interessantes, decidiu-se que não é necessário ter pressa.
Mas é exatamente nas regiões desfavorecidas que a tecnologia seria de mais importância. O Ginga C, criado na PUC do Rio de Janeiro, é a única inovação de SBTVD feita no Brasil, com base no modelo japonês. Ele permite o acesso a importantes serviços de inclusão digital, como, por exemplo, o acesso a informações de emprego, cursos de capacitação, saúde, dentre outros. Outro serviço útil é fornecido pelo Ministério do Desenvolvimento Social, com aplicação do Bolsa Família, que permite o acesso de informações aos seus beneficiários, como data de pagamento do benefício. Há ainda um do Ministério da Cultura, chamado Quero ver cultura, que oferece o acesso diferentes filmes nacionais utilizando a transmissão digital. Alguns desses serviços foram desenvolvidos pela EBC (Empresa Brasil de Comunicação) no internacionalmente premiado projeto Brasil 4D. Já nas emissoras privadas, a interação é mais superficial: o Ginga é atualmente utilizado como veículo de informações complementares ao audiovisual, por exemplo, o quadro de medalhas durante as Olimpíadas e informações de últimos capítulos de uma novela.
Além da portaria já aprovada, existe também uma discussão que prevê a distribuição de mais 12,4 milhões de conversores para pessoas inscritas no Cadastro Único (iniciativa do governo federal que identifica famílias de baixa renda), também apenas nas cidades grandes. O problema, neste caso, é que, diferente dos entregues às pessoas que recebem Bolsa Família, esses novos receptores não terão interatividade alguma, o que não permitiria nenhum serviço de inclusão social para os integrantes do Cadastro Único.
A EBC, lutando contra tal absurdo, durante a reunião do Gired, se opôs à diferença de receptores para famílias do Cadastro Único. Em nova proposta, estabeleceu que todos os receptores distribuídos incluiriam o Ginga C, porém com configurações mais enxutas, para caber no orçamento da entidade. Esperamos que pelo menos no que se refere à interatividade – diferente da posição ante o atraso no cronograma – o governo possa ter um discurso consistente com o do presidente Lula, à época que decretou a criação do SBTVD, e com o compromisso firmado pelo ministro das Comunicações anterior, Ricardo Berzoini, em 2015, que afirmou que a distribuição de receptores com interatividade era uma ação importante na promoção de inclusão social.