Zika reforça argumento pelo aborto, afirma ex-ministro Temporão
O aborto já é uma realidade no Brasil e a legislação conservadora está alinhando o país aos mais atrasados do mundo em relação ao tema. Nesse contexto, o ex-ministro da Saúde José Gomes Temporão defende a legalização da interrupção da gravidez, especialmente com a ameaça do vírus zika e o risco de nascimento de bebês com microcefalia.
Publicado 21/02/2016 11:37
Médico especialista em doenças infecciosas e tropicais, o ex-ministro considera “mito” dizer que o aborto é proibido no país, onde são realizados por ano mais de um milhão de procedimentos clandestinos: “Uma em cada quatro mulheres até 40 anos de idade já interrompeu a gravidez”.
Temporão, que foi titular do ministério da Saúde no governo Lula, entre 2007 e 2011, e enfrentou a chegada ao país do vírus H1N1, transmissor da chamada ‘gripe suína’, alerta que o momento é “grave” e “complexo”. Avalia que, enquanto a ciência não trouxer mecanismos para evitar a rápida disseminação das doenças provocadas pelo Aedes aegypti, o caminho é a mobilização da população no combate ao mosquito. Mas destaca que o país precisa atacar problemas estruturais, em especial na área de saneamento. A seguir, os principais trechos da entrevista concedidas ao jornal Valor Econômico:
Valor: Há exagero ou o momento é realmente alarmante?
José Gomes Temporão: Não creio que haja exagero. O que está acontecendo é muito grave. É alarmante. O vetor da transmissão, o Aedes aegypti, está largamente disseminado no continente sul-americano e no Brasil.
Estamos diante de um desafio para a ciência do ponto de vista da saúde pública e da medicina, o que deixa autoridades, governos, especialistas e profissionais de saúde um tanto perplexos. É um problema complexo, que está impactando de maneira muito importante a saúde e a vida de milhares de mulheres e de bebês. Sabemos que ainda não há comprovação científica da relação entre a infecção por zika durante a gravidez e o desenvolvimento de danos no sistema nervoso central, como microcefalia, entre outras, mas existem evidências epidemiológicas e clínicas muito robustas que apontam nessa direção.
O senhor acha que o governo brasileiro custou a reagir ou o processo foi muito mais rápido do que se imaginava?
Não creio que tenha havido descaso ou falta de atenção para a questão. Trata-se de uma coisa completamente nova. O Brasil está sendo pioneiro no desenvolvimento de estudos por meio da Fundação Oswaldo Cruz, no Rio; do Instituto Evandro Chagas, em Belém; e na unidade da Fiocruz, em Curitiba. Está sendo feito um grande esforço de aproximação e parcerias com universidades e institutos americanos e também com empresas produtoras de vacinas, que seriam a solução para essa questão. Mas o horizonte ainda está longe, é coisa para três a cinco anos. Esse vírus foi inicialmente identificado na África, nos anos 40 do século passado e, ao longo dessas décadas, se expressou de maneira muito localizada, com pequenos surtos. Na década seguinte apareceu na Ásia, depois ficou silencioso durante um período. Não se sabe ainda o que aconteceu, se o vírus sofreu mutação e passou a se disseminar de maneira muito mais rápida. Tanto que isso levou a Organização Mundial de Saúde a decretar situação de emergência mundial. Mas há muito a ser desvendado, se conhece pouco da biologia do vírus, da genética.
O desenvolvimento de uma vacina seria a solução?
Há algumas tecnologias que estão sendo desenvolvidas. Uma delas é na Austrália, onde se introduz em mosquitos machos uma bactéria impedindo que eles transmitam vírus. Existe a experiência no Brasil de mosquito transgênico, numa cidade de São Paulo. São estratégias com potencial interessante, mas ainda não validadas cientificamente e sempre, claro, é preciso todo cuidado com biossegurança e o que isso pode causar a longo prazo. A vacina seria a grande solução. Uma empresa francesa lançou uma para dengue, mas que protege apenas 66% das pessoas. É baixo do ponto de vista de saúde pública. É preciso uma proteção acima de 80%. O Instituto Butantan está desenvolvendo uma nova vacina contra dengue. Essa nova fórmula pode ser útil para ser utilizada no desenvolvimento de uma contra o zika. Mas estamos falando de coisas para daqui a três, quatro, cinco anos.
Por que tanto tempo?
A questão é que, hoje, milhares de mulheres estão sendo contaminadas, estão atemorizadas, inseguras. Estou lendo na imprensa que algumas estão sendo abandonadas pelos maridos e companheiros porque tiveram um bebê com comprometimento no desenvolvimento cerebral. Não tenho dúvida de que muitas, que podem e têm acesso, estão interrompendo a gravidez em clínicas privadas ou consultórios. Mulheres mais pobres, que não têm condições, podem ser levadas a fazer a interrupção da gravidez em condições não seguras, o que pode até elevar a mortalidade materna no Brasil. É um quadro muito complexo, porque os instrumentos que a sociedade tem para intervir são limitados.
“Comunidades sem saneamento se disseminaram no país. Só metade das residências está ligada a rede de esgoto”
O momento de escassez de recursos financeiros pode prejudicar uma ação de governo?
Temporão: Não creio. Há que se refletir sobre as causas que levaram a essa situação, pois são causas estruturais. O processo de urbanização permitiu a disseminação de comunidades sem infraestrutura de saneamento. Apenas metade das residências brasileiras está ligada a rede de esgotamento sanitário. Temos problemas de fornecimento regular de água no país. Temos problemas de coleta de lixo e limpeza nas cidades. Essa macroestrutura facilita a disseminação do mosquito. E isso não se resolve da noite para o dia. Basta ver levantamento feito pelo Ministério da Saúde, no ano passado, que mede a presença de larvas em domicílios no Brasil. No Nordeste, o principal foco de disseminação do mosquito está no fato de as famílias terem que estocar água, porque não recebem regularmente.
Valor: Essa é a principal razão do maior número de doentes no Nordeste?
Temporão: Exatamente. Dos focos detectados no Nordeste, 80% estavam em reservatórios de água. Na região Sul, o maior foco de larvas é relacionado ao lixo, devido à falta de limpeza urbana. Apenas no Sudeste o foco é na residência das pessoas. E o que nos resta neste momento é essa ferramenta precária que é a mobilização gigantesca da sociedade para tentar reduzir a presença do mosquito.
Valor: A mobilização não está acontecendo um pouco tarde?
Temporão: Ninguém esperava e não se sabia da relação potencial ainda não cientificamente provada, mas com evidências muito fortes entre o vírus zika e microcefalia e outros danos ao sistema nervoso e organismo dos bebês. E temos um outro problema importante, que é a ausência de um teste laboratorial rápido e preciso que possa dizer quem teve contato com o vírus ou não. A maior parte dos diagnósticos é clínico e muito precário. Agora começam a surgir algumas empresas colocando no mercado alguns reagentes que mostram um quadro mais fidedigno, mas, por enquanto, estamos tateando. Estamos no escuro. Considerando que a presença do mosquito está disseminada em todo território nacional, acho que a única medida que restou foi a grande mobilização. Se isso vai ter impacto no curto prazo, possivelmente sim, espero que sim, reduziria o risco das pessoas contaminadas. Sustentar essa estratégia no médio e longo prazo é difícil se não forem atacadas as questões estruturais relacionadas a saneamento, limpeza das cidades, principalmente das cidades mais pobres, oferta regular de água.
O senhor está entre os que defendem a legalização do aborto para as mães com os filhos na gravidez diagnosticados com microcefalia.
Exato.
Mas não avalia que seria um processo demorado? O senhor identifica condições de uma ação mais rápida nesse sentido?
Para responder a isso, preciso primeiro dizer que concordo com o Drauzio Varella. Ele declarou que é um mito dizer que o aborto no Brasil é proibido e só é autorizado em situações limite. O aborto no Brasil é largamente utilizado. Estima-se que cerca de um milhão de abortos são feitos clandestinamente por ano e que uma em cada quatro mulheres até os 40 anos de idade, alguma vez durante sua vida reprodutiva fez um aborto. Nesse momento, possivelmente centenas de mulheres já estão interrompendo a gravidez voluntariamente e ninguém sabe em que condições.
As que têm mais recursos financeiros possivelmente em condições seguras e as mais pobres em condições inseguras, colocando a vida em risco. Esse é um fato, não se pode fugir desse fato. E a outra questão é que esse é um ponto relacionado aos direitos sexuais reprodutivos e da autonomia das mulheres, é uma luta histórica das brasileiras com a qual eu me alio. Claro que concordo que do ponto de vista prático é complicado. A sociedade brasileira é muito conservadora. Existe uma bancada muito reacionária e altamente lesiva aos interesses das mulheres instalada hoje no Congresso [Nacional] que, inclusive, tenta derrubar direitos duramente conquistados no passado para restringir ainda mais as possibilidades de interrupção da gravidez. O Brasil hoje se alinha aos países mais atrasados do mundo em relação à legislação sobre o aborto. O aborto hoje é feito sem restrições na América do Norte, na Europa e em boa parte da Asia. No hemisfério Sul, o Uruguai recentemente aprovou e Portugal também tem legislação. O Brasil está alinhado com a Somália, Líbia, Sudão, Mali, Burundi e Iêmen. Ou seja, países onde parece que a vida nos últimos tempos não tem muito valor. Estamos no mesmo nível de legislação dos países mais atrasados do mundo. Evidentemente que a estratégia que se pensa não é pelo Congresso. É ir ao Supremo como aconteceu no caso da anencefalia. Foi uma conquista histórica das mulheres, que permite que ela decida se quer levar até o fim uma gestação onde o bebê não terá possibilidade de sobreviver.
Valor: Os dados recentes mostram quem há 4,7 mil bebês de mulheres grávidas com suspeita de microcefalia, sendo 407 casos confirmados no país. Esse número é muito superior à média dos últimos anos?
Temporão: A incidência no Brasil de casos de microcefalia é muito pequena. O que chamou atenção foi exatamente o surpreendente número de casos. Existem outras doenças que causam microcefalia. Então é preciso excluir qualquer outra possibilidade para que haja comprovação que seja pelo zika. A sífilis pode causar, o citomegalovirus, a toxoplasmose, a rubéola. Então é preciso excluir todas essas possibilidades e fazer um vínculo direto com o zika. Ainda não temos um exame laboratorial que detecte anticorpos no sangue das mulheres, independentemente do período de gestação que elas estejam. São reagentes que não estão no mercado ainda. Parece que a Anvisa [Agência Nacional de Vigilância Sanitária] concedeu o primeiro registro para um deles. É difícil fazer esse diagnóstico em definitivo. A maior parte dos casos suspeitos é registrada por evidências. A mulher que tem um filho com suspeita de microcefalia, ou microcefalia diagnosticada, relata ter tido durante algum período da gravidez um quadro clínico compatível com os sintomas do zika, mas não se pode ainda dizer: sim, ela foi infectada pelo zika.
“No Nordeste, o principal foco de disseminação do mosquito ocorre porque famílias têm que estocar água, pois não há regularmente”
Mas se faz a correlação…
O exame que se tem hoje detecta a presença por um curto período. Esse é um dos grandes desafios do ponto de vista tecnológico, da ciência, que tem que ser desenvolvido rapidamente. Os pesquisadores ainda estão tateando, há muitos pontos obscuros, pontos de interrogação. Eu diria que o que pode ser feito está sendo feito com todas as limitações que esse cenário tão inquietante nos coloca. A possibilidade de a mulher decidir se vai levar a gravidez a termo reduz o número de crianças que vão nascer com problemas de desenvolvimento. O Brasil realizou um trabalho mostrando que o zika ultrapassa a barreira placentária e penetra no organismo dentro do útero. São evidências que vão se acumulando e dando robustez às hipóteses. Na América do Sul, o país que está autorizando a mulher interromper a gravidez com suspeita de zika é a Colômbia. Suspeitase que o zika possa ter sido introduzido no Brasil durante a Copa do Mundo quando houve grande movimentação de turistas e visitantes. O problema do mundo de hoje é exatamente esse. Se uma pessoa que teve o vírus e 80% das pessoas contaminadas pelo vírus não desenvolvem sintomas, o que é mais preocupante, você pode estar com o vírus e sequer desconfiar viaja para uma região onde há o vetor, o Aedes aegypti e, se for picado, vai transmitir para uma outra pessoa.
Pode-se dizer que há países que não têm o mosquito?
Não, ele está disseminado, por isso o alerta da Organização Mundial da Saúde. Há um mosquito que existe em tudo que é lugar e aparece um vírus novo que tem capacidade de disseminação muito grande por meio desse vetor. Esse é o ponto.
Quando o sr. era ministro a dengue já era muito disseminada…
Convivemos com a doença há mais de 30 anos.
Havia instrumentos para combater?
O ministro da Saúde tem uma governabilidade sobre as questões estruturais muito limitada. O que pode fazer é o que está circunscrito pelo espaço de intervenção. Dados os limites, o que pode fazer é combater foco, mobilizar as pessoas, mas as questões estruturais estão na governança de outras políticas de outras pastas. A saúde nesse contexto aparece na ponta. Tem que tratar as pessoas, cuidar, resolver os problemas de saúde, impedir que haja óbitos, ter assistência hospitalar, exames de laboratório. No caso de bebês que estão desenvolvendo danos no sistema nervoso central, são danos gravíssimos, que vão necessitar de uma estrutura de cuidados de que o Brasil com certeza não dispõe.
O senhor está à frente da unidade brasileira do Instituto SulAmericano de Governo em Saúde.. A entidade está envolvida nessa mobilização?
Houve uma reunião, em Montevidéu, de ministros da Saúde do Mercosul e de outros países. Eu estava em Quito [Equador] com o secretário geral da Unasul [União de Nações SulAmericanas], Ernesto Samper. Foi aprovado um esforço conjunto para trabalho integrado de vigilância, de troca de informações e estruturação de um plano continental de combate ao vetor. Medidas importantes que terão impacto no médio e longo prazo, que estabelecem uma aliança dos países no sentido do enfrentamento global na troca de conhecimento e esforços voltados para os 400 milhões de habitantes da América do Sul.
Quais conselhos daria para uma mulher grávida, ou que esteja com planos de engravidar?
Não é possível sugerir que as pessoas não façam mais sexo. As pessoas vão deixar de viver? Naturalmente, com esse clima todo, as mulheres estão adiando o projeto de engravidar. O governo deveria estar disseminando informações e acesso a métodos contraconceptivos principalmente nas regiões onde esse problema está se tornando mais evidente. Existem medidas individuais, como o uso de repelentes. Mas há limitações, pois os que estão no mercado protegem por duas horas e as mulheres têm que ficar repetindo [a aplicação]. E temos aí uma barreira que é quem tem dinheiro para comprar repelente. É caro. Parece que o governo está desenvolvendo um esforço de tentar uma distribuição em larga escala. Tenho recebido telefonemas de amigos que vivem fora do Brasil perguntando se podem vir ou não, pois a mulher está querendo engravidar ou está grávida. Perguntam se podem viajar para o Nordeste. A minha resposta é que não venham nesse momento, porque o quadro é de muitas interrogações e vamos precisar de mais tempo para avaliar como as coisas vão se desenvolver.