O fim do dólar como moeda de reserva é meta difícil e ousada

Em entrevista ao Portal Vermelho, o professor de economia da UERJ, Elias Jabbour, analisa o projeto do Brics de buscar alternativas ao dólar como moeda para trocas internacionais.

Por Joana Rozowykwiat

Foto: Divulgação

A ambiciosa ideia de mudar a ordem mundial, criando uma alternativa competitiva para o atual sistema econômico controlado pelos Estados Unidos, sempre permeou os debates do Brics. Ainda em 2010, o grupo anunciou que caminharia para abandonar o dólar nas transações internacionais. De lá para cá, alguns passos foram dados para enfrentar a hegemonia da moeda americana, mas o ritmo dessa jornada é lento.

O professor de economia da UERJ, e membro do Comitê Central do PCdoB, Elias Jabbour, é cauteloso em relação ao tema, prefere não alimentar certas fantasias a respeito de um processo dessa magnitude. Mas ele reconhece que a internacionalização da moeda chinesa pode, sim, ser o princípio de uma transição de longo prazo na ordem financeira internacional.

“O projeto de substituição do dólar em transações internacionais, no âmbito do Brics, existe, é fato. Porém, não na velocidade que gostaríamos. O processo de conversibilidade da moeda chinesa está apenas no início”, avalia.

A construção da hegemonia

Desde 1945, o mundo segue a lógica estabelecida pelos acordos de Bretton Woods, a cidade do Massachusets na qual nações aliadas, capitaneadas pelos Estados Unidos, reuniram-se para definir as bases do funcionamento capitalista no pós-guerra. Buscavam regras que lhes propiciassem estabilidade monetária – evitando crises como a de 1929 – e que ao mesmo tempo permitissem a liberdade necessária para que seus capitais se espalhassem pelo mundo.

Naquele momento, foi criado o Banco Mundial e o Fundo Monetário internacional, para financiar a reconstrução das economias destroçadas pela guerra e combater crises cambiais. Principalmente, estabeleceu-se ali que o dólar passaria a ser a moeda de troca internacional.

Essa foi a configuração que deu aos EUA, emissor de dólares, enorme poder. Permite não só que produtos e serviços sejam negociados na sua moeda de Tio Sam, como também que o Banco Central norte-americano, o Federal Reserve, exporte a sua inflação para outros países, enquanto o governo acumula deficit sem que isso lhe gere nenhum inconveniente.

Hoje, o Tesouro dos EUA pode imprimir notas de dólar, aceitas como moeda de troca em todo o mundo, sem ter que garantir seu valor.

A reação

Quando o Brics declarou, lá atrás, que trabalharia para romper com a hegemonia do dólar, a princípio realizando trocas em moedas locais, a notícia causou frisson na mídia e nos círculos econômicos. O anúncio da criação de um banco e de um fundo próprios do bloco, para se contrapor às instituições gestadas em Bretton Woods, carregava implicações geopolíticas significativas. As medidas começaram a ser discutidas com os países do grupo em crescimento acelerado – tendo a China na dianteira.

Elias Jabbour destaca que, agora, o cenário internacional se transformou. “Temos que perceber o momento em que determinadas declarações são feitas. Em 2010, o centro do sistema capitalista estava em queda livre, enquanto o crescimento econômico mundial estava sendo sustentado pelos chamados “emergentes”, incluindo aí a China e o Brasil. Hoje a situação mudou de forma quase drástica, incluindo uma grande fuga ao dólar como moeda “protetora de valor”, o que fortalece a posição desta moeda em relação ao Euro e o Iene japonês”, avalia.

O novo ambiente, contudo, não inviabiliza o projeto do Brics de abandonar o dólar nas transações internacionais. “Se percebermos que a inflação russa e brasileira, em grande medida, é produto da desvalorização do dólar, notaremos uma brecha para esta conversão que inclusive já é tema prioritário nos altos escalões da governança russa, por exemplo”, diz o professor.

Jabbour afirma que o impacto de o dólar ser utilizado como moeda internacional de negócios é diferente em cada país, a depender de sua capacidade de regulação. “O dólar pode ser utilizado como moeda internacional de negócios desde que um determinado país não tenha uma conta de capitais tão aberta que a torne incapaz de ter margem de manobra em matéria de política monetária, por exemplo. Já países com contas de capitais abertas, sem regulações, estão à mercê da apreciação ou depreciação da moeda de reserva internacional. É o caso do Brasil, por exemplo”, aponta.

Ceticismo

O professor é ponderado em relação à dimensão da proposta do bloco. Para ele, acabar com a dolarização da economia mundial é uma meta muito ousada. “Vou ser honesto e claro com relação a isso. Moeda é poder. Poder político, econômico e militar, antes de qualquer coisa. Há muito tempo que o valor do dólar se assentava somente na capacidade econômica norte-americana em responder a desafios econômicos externos. Isso acaba na década de 1970. O rompimento com a ordem financeira internacional é um rompimento com o capitalismo capitaneado pelos EUA”, adverte.

E as condições para que isso aconteça não são fáceis de serem alcançadas. “Isso só pode ocorrer quando os EUA abandonarem suas bases militares, quando todas as classes médias do mundo deixarem de viver o ‘sonho americano’ e quando todos os países do mundo detentores de títulos da dívida norte-americana devolverem e cobrarem seus papeis”, diz.

Jabbour, portanto, é um tanto cético. “Não acredito num rompimento desta magnitude nem no curto e nem no médio prazos… É preciso abandonarmos certas fantasias antes que sejamos vítimas preferenciais delas”, opina.

Segundo ele, alterar esse padrão tem um alcance tão estratégico quanto superar o próprio capitalismo liderado pelos Estados Unidos. Mas, se o objetivo maior está distante, ele propõe focar-se em temas menos complexos. “Antes de pensarmos em superar esse ‘modelo’ temos de olhar a nós mesmos e perguntar as razões de termos uma conta de capitais abertas. Veja bem, se um país como o Brasil não consegue limitar a entrada e saída de capitais externos, como vamos pensar em questões que envolvem a substituição da moeda de reserva internacional? É m contrassenso impressionante”, critica.

Para ele, o centro do debate nacional deve ser outro. “Que tal discutir a funcionalidade das metas de inflação? É muito mais interessante, acho eu”, defende.

O desafio chinês

Mas nem tudo é pessimismo. No fim do ano passado, o FMI anunciou a inclusão do yuan chinês em sua cesta de moedas de reservas. Para Jabbour, a internacionalização da moeda da China pode ser o princípio de uma transição de longo prazo na ordem financeira internacional. “É por essa lógica de longo prazo que devemos observar como as coisas funcionam. A inclusão do yuan na cesta de moedas de reservas é um acontecimento de fundo impressionante”, diz.

“Ainda ontem, os chineses já anunciaram mais uma rodada de desvalorização de sua moeda, denunciando independência e capacidade de manobrar dignas de um país com ampla soberania financeira e que sabe seu real peso na economia internacional, a partir de ‘efeitos demanda’ sentidos com cada vez mais intensidade”, completa.

Questionado se a desaceleração do crescimento chinês atrapalha essa transição de longo prazo, ele diz que sim, “na medida em que essa desaceleração, ao provocar ‘efeitos demanda negativos’ e, consequentemente, trepidações na economia internacional, leva a uma fuga à liquidez justamente nos títulos da dívida norte-americana. No mínimo, engraçado”, afirma.

Mas há também um outro lado na questão. “Na medida em que a China vai aprendendo a lidar com essa brincadeira chamada mercados financeiros globais, vai introduzindo novas formas, e superiores, de planificação econômica que agora não agem somente no sentido de coordenar e socializar políticas monetárias expansivas, centradas em imensos investimentos em infraestruturas”, ressalta.

Para Jabbour, a China está diante de um desafio que pode, sim, ajudar na reconfiguração da ordem mundial. “Chegou o momento de domar a fera dos mercados financeiros. Até aqui em grande medida os chineses copiaram o que o resto do mundo fez em matéria de desenvolvimento e 'catch up'. Encerrou-se essa era. Agora é finança pura. ‘Agora é que são elas’ para os chineses. Caso consigam superar essa transição de dinâmica interna, o mundo poderá ser outro e admirável nas próximas décadas”, conclui, em tom mais animador.