O adeus ao mestre do barro Manuel Eudócio Rodrigues
O último grande remanescente da primeira geração que fez a escola do barro do Alto do Moura, em Caruaru, ser reconhecida como o maior centro de Artes Figurativas da América pela Unesco, morreu na noite de sábado (13). Manuel Eudócio Rodrigues, nascido em 28 de janeiro de 1931, internado desde o Carnaval, sofreu falência múltipla dos órgãos, justamente no Mestre Vitalino, no Agreste pernambucano, hospital que leva o nome de seu velho amigo e parceiro artístico.
Por Bruno Albertim
Publicado 16/02/2016 11:57
Era diabético, hipertenso, tinha problemas renais e, segundo a família, apresentava sintomas de chicungunha. A morte do mestre, aos 85 anos, encerra um dos capítulos mais importantes da arte figurativa do Brasil no século 20.
Apesar de complicações na visão, Eudócio, dono do título de Patrimônio Vivo de Pernambuco, seguia trabalhando com dedicação e simplicidade em seu ofício. Gostava de dizer que se não mexesse todo dia no barro morreria. Foi mais que artista. Para o Nordeste, Eudócio foi um criador de arquétipos, um homem que, manejando a terra, ajudou a moldar o conjunto de autorrepresentações da região.
Cronista de seu tempo, cristalizou no barro cenas e personagens de um Nordeste que, hoje raras, estão mais vivas no imaginário coletivo que na própria realidade. Foi ele o primeiro a conceber na cerâmica as figuras do cavalo-marinho, do boi-bumbá e de outros personagens do reisado, folguedo comum quando era menino em Caruaru.
No final da década de 1940, perto dos 20 anos, Eudócio sentiu vontade de reproduzir os folguedos de que participava. “Naquela época, o reisado começava de noite e ia até o amanhecer. A gente só parava para tomar café ou vinho na casa de alguém”, lembrava ele, dos tempos de brincante na opereta dramática e satírica que misturava tipos populares e sobrenaturais para encenar embates sociais e religiosos em torno da morte de um boi. Se já não é recorrente como no passado, o reisado e outras manifestações encontraram eternidade na arte do ceramista. O tempo se engarregaria de transformar as peças clássicas. Sinônimos imediatos de cerâmica popular no Nordeste.
Seu legado reúne mais de 200 figuras diferentes, criadas antes mesmo que pudesse entendê-las: começou a mexer no barro, ainda criança, sob influência de dona Tereza da Conceição, a avó que o criou após a morte da mãe.
Humilde e concentrado, nunca pareceu ter se deixado afetar pelo fato de ter se tornado figura histórica. “A gente nunca pensou que aquilo tivesse qualquer valor um dia. Fazíamos uns boizinhos e uns cavalinhos para vender como brinquedo na feira. Quando quebrava, os meninos compravam mais. Custava qualquer vintém”, lembrava, numa de nossas entrevistas.
Ao lado de Zé Caboclo, Zé Rodrigues, Ernestina e do Mestre Vitalino, o mais célebre de todos, Eudócio ajudou a estabelecer as bases da escola que mudaria a visão sobre a arte popular do Brasil. Com a quebra de preconceitos insinuada pela Semana de Arte Moderna de 1922 e pelo Movimento Regionalista liderado por Gilberto Freyre no Recife, na década de 1920, sua estética contribuiu para flexibilizar as fronteiras que separam a popular da chamada arte erudita. Picasso, por exemplo, chegou a expor um boi de Vitalino ao lado de suas obras. Disse que tinham a mesma importância. “Fui eu quem ensinei a Vitalino a botar arame dentro das peças, para elas ficarem mais resistentes”, lembrou Eudócio, numa entrevista ao JC.
A crítica o reconheceu. “Eudócio é o mais original e instigante entre os artistas brasileiros vivos que trabalham com o barro”, disse o crítico Moacir dos Anjos, ex-diretor do Museu de Arte Moderna Aluísio Magalhães, por ocasião dos 80 anos do mestre. “Não faz sentido classificá-lo como artesão ou artista popular. É um artista. E ponto. Ainda tentam classificá-lo preconceituosamente. Eudócio põe à prova essa classificação.”
Se não foi exatamente mestre, Vitalino foi incentivador. Eudócio só pôs para queimar as 50 peças de cerca de 20 centímetros de seu primeiro reisado após ver o amigo vendendo figuras de animais, retirantes e bêbados na feira de Caruaru. “Quando cheguei em casa, pensei em fazer uns bonecos parecidos com aqueles de Vitalino.”
Vitalino furava com arame os olhos de suas figuras. Com Zé Caboclo, Eudócio desenvolveu detalhes como os olhos redondos e pintados de branco que, curiosamente, passariam a ser uma das principais características da obra vitaliniana. Quando viu aquilo, Vitalino adotou.
Plágio, afinal, era palavra fora do vocabulário. “Eu fazia peças de Caboclo e de Vitalino. E eles, as minhas. Qualquer um assinava qualquer peça. Depois, cada um passou a marcar a sua.” De seu repertório, um dos elementos mais conhecidos é o Casamento com noivos a cavalo. Uma ideia de Vitalino. “Ele criou, e eu fiz. Depois, a gente foi se especializando cada um em cada coisa.”
Com imaginação e barro, Eudócio filtrou a realidade do Agreste. Registrou migrantes em paus-de-arara, Lampião e Maria Bonita, vacas na ordenha, casamentos, velhas indo à missa, quadrilhas de São João, maracatus, e profissionais de prestígio no jogo social interiorano: médicos, dentistas, professores, delegados, advogados.
Manuel Eudócio foi, acima de tudo, membro de uma escola artística democrática, de influências recíprocas, surgida como o barro, sem pretensão. Com sua morte, o Brasil perde mais que um ceramista. Mas um de seus mais prolíficos e longevos produtores de arquétipos.