Desenterrando Dercy na TV: alcançamos o limite da barbárie
Esta semana sofri aquele tradicional abalo na crença num mundo melhor ao ler uma reportagem sobre as gravações de Gugu Liberato para a nova temporada do seu programa na Record, e que talvez anuncie que tenhamos alcançado o limite da barbárie.
Por Rita de Cássia Almeida*, em seu blog**
Publicado 05/02/2016 09:02
Gugu fez uma visita ao túmulo de Dercy Gonçalves a fim de conferir se ela foi mesmo sepultada de pé, como era de sua vontade. Tal visita foi acompanhada e, certamente, autorizada pela filha da falecida.
Uma longa entrevista de Charles Melman à Jean-Pierre Lebrun, ambos psicanalistas, resulta no livro: O homem sem gravidade, que contribui para o incessante debate sobre o mal-estar na civilização, inaugurado por Freud. O livro trata do que Melman chama de “a nova economia psíquica”, economia na qual o que se persegue é que o gozo triunfe sobre o desejo. Explico: Benito de Paula nos avisava nos idos de 77 que “nem tudo pode ser perfeito, nem tudo pode ser bacana” já que não seria possível “assoviar e chupar cana”. Hoje rejeitamos a escolha do desejo e perseguimos o gozo sem limites, ou seja, acreditamos ser possível “assoviar e chupar cana”. No século que se anuncia, dirá Melman, não há mais impossível, vivemos a era do “ultrapassamento dos limites”.
Inusitada temática
Sirvo-me da inusitada temática do Programa do Gugu para tratar aqui desse “ultrapassamento dos limites”. É importante que se diga, já de partida, que quando se fala de “ultrapassar o limite”, não se trata de evocar um discurso moralista puro e simples, como se tal ultrapassamento fosse uma espécie de subversão às regras e normas sociais. Não é essa a questão. Até porque, para subverter limites, regras e normas, é necessário partir do pressuposto que eles existem e nos servem de algum modo. Sendo assim, o que assistimos hoje não é o ultrapassamento do limite como desobediência ou subversão, mas como pulverização, como apagamento; é como se tal limite nem mesmo existisse.
Apenas uma desconsideração total de que deva haver um limite a partir do qual deixamos de ser humanos, poderia conceber um programa de TV onde se faz a exumação de um corpo/cadáver com o intuito de aplacar a curiosidade alheia e, obviamente, angariar telespectadores. E ainda mais espantoso é pensar que a própria filha da falecida concordou, vai participar e muito possivelmente recebeu algum retorno financeiro em tal empreitada.
Melman chama de “suspensão do recalque” a falta de pudor que temos hoje para desvelar o que antes mantínhamos sob um véu. Acreditávamos que nosso mal-estar era apenas fruto da repressão excessiva que a civilização impunha sobre nós e que a suspensão de tal repressão, a fim de permitir a expressão nua e crua do nosso desejo, seria a cura; nossa libertação. Entretanto, não foi o que aconteceu. Se com a psicanálise aprendemos que o mal-estar é inerente à condição humana, obviamente que novas formas de mal-estar surgiram, e o que elas têm em comum é compactuarem com esse desvelamento do gozo. Se um dia tudo estava sob o véu do recalque, hoje a ordem é exibir; nada pode ser dissimulado.
Nesse sentido, nem mesmo a morte com sua inscrição no campo do sagrado (sagrado no sentido de não estar ao alcance da nossa compreensão), é poupada desse desvelamento. Não só é permitido, mas é necessário que se abra o túmulo de uma pessoa diante das câmeras para que milhares de telespectadores satisfaçam sua curiosidade, que nem pode ser chamada de mórbida, porque se tornou banal. Dias atrás a internet também noticiou que um cadáver exposto numa praia de Florianópolis não mudou em nada a rotina dos banhistas. Tudo pode ser visto, sem o menor pudor.
As consequências da pulverização dos limites e da suspensão do recalque têm produzido essas e outras bizarrices na TV e fora dela, como temos visto, no entanto, o mais preocupante é que elas anunciam a barbárie. A barbárie, segundo Melman, consiste numa forma de relação social organizada por um poder que não é simbólico, mas real. Ou seja, na falta de um limite simbólico compartilhado, emergem formas de poder amparadas na força bruta. Diante da angústia que o esgarçamento dos limites provoca, assistimos a emergência de autoridades despóticas, que Melman chama de “fascismo voluntário”. São lideranças que se autorizam a sim mesmas a partir de uma aspiração social. Diante do desbussolamento coletivo, demanda-se alguém que venha novamente dizer o que se deve ou não fazer. Se o limite não aparece compartilhado, retorna encarnado em alguém.
Talvez isso explique o sucesso das religiões neopentecostais, cada vez mais rígidas, com limites morais muito bem claros e definidos, e o aparecimento de lideranças políticas na chamada, nova direita, que legislam em favor de uma moral coletiva que norteie a sociedade, e que tolera, inclusive, que ela possa ser alcançada por meio da força, se necessário. Também não é incomum que religião e política andem juntas e se sobreponham nessa empreitada. Especialmente no Brasil tal movimento está numa crescente.
Enfim, para novas formas de mal-estar são necessários novos modos de intervenção, e a ética que advogo nos convida a construir aquelas que evitem a barbárie e que façam laços por meio da linguagem, que é aquilo que nos humaniza. Quanto ao programa de TV citado eu desejo, sinceramente, que exista algum tipo de vida após a morte e que Dercy apareça de algum modo tecendo seu conhecido rosário de palavrões para desacatar Gugu, a filha, e quem mais esteja assistindo essa bizarrice, porque é isso exatamente que todos esses merecem. E pensando bem, só mesmo Dercy teria o vocabulário adequado para colocar em palavras tamanha babaquice. Só isso seria capaz de nos redimir dessa vez.