Assad: “A Turquia tem fornecido todo o tipo de apoio aos terroristas”
Em 19 de novembro o presidente da Síria, Bashar al-Assad, concedeu uma entrevista à revista francesa Valor Actuel e falou sobre a democracia e como o Ocidente se comporta em relação às conhecidas ditaduras da Arábia e do Catar, ao mesmo tempo que procura derrubar o governo sírio.
Publicado 27/11/2015 17:03
“Se você tem um problema com o Estado sírio, relacionado à democracia, como é que você pode ter boas relações e construir amizades com dois dos piores e menos desenvolvidos países do mundo, tais como a Arábia Saudita e o Catar? Esta contradição não sugere credibilidade”, disse, em um dos trechos da entrevista reproduzida abaixo:
Valor Actuel: Qual é o seu comentário sobre o que foi dito pelo presidente francês François Hollande de que “o Presidente Assad não pode ser uma solução, porque ele é parte do problema”. Em sua opinião, isto é um ponto de vista comum? Qual é a sua resposta para isso?
Presidente Bashar Al-Assad: Em primeiro lugar, a primeira parte da minha resposta é uma pergunta: Hollande foi autorizado pelo povo sírio para falar em seu nome? Esta é a primeira pergunta. Você, como um cidadão francês, aceitaria um comentário semelhante por parte de qualquer político neste mundo? Alguém que diga que o presidente Hollande não deveria ser o presidente da França? Isto não constituiria um insulto ao povo francês? Nós vemos esta questão de modo semelhante. Quando ele diz isso, não seria um insulto ao povo sírio? Será que isso significa que ele não o reconhece? Em segundo lugar, a França sempre teve orgulho da tradição e dos princípios da Revolução Francesa. Talvez da democracia e dos direitos humanos. Um dos primeiros princípios da democracia é o direito dos povos de decidir por quem serão governados. Então é vergonhoso, para qualquer um que represente o povo francês, dizer algo que contrarie os princípios da República Francesa e do povo francês. Em terceiro lugar, é uma vergonha que ele tente insultar um povo civilizado, que tem uma história que abrange milhares de anos, como é a história do povo sírio. Esta é a minha resposta. Eu acredito que isso não afetará, em nada, a realidade na Síria porque a realidade não seria afetada por tais declarações.
Se o senhor tivesse uma mensagem para o Sr. Hollande e para o Sr. Fabius, especialmente depois do que aconteceu em Paris, esta mensagem seria: “Cortem, imediatamente, as relações com o Catar e com a Arábia Saudita”?
Em primeiro lugar, esta mensagem é multifacetada. Eu começaria com a seguinte pergunta: Seriam ambos independentes para que eu possa enviar uma mensagem, a qual pudessem implementar? A verdade é que a política francesa, nos dias de hoje, não é independente da política dos Estados Unidos. Isto vem em primeiro lugar. Então, mandar mensagens não ajudaria em nada. Mesmo assim, se eu tivesse a esperança de haver alguma mudança na política da França, a primeira coisa a se fazer é voltar para a política francesa realista, independente e amiga do Oriente Médio e da Síria. Em segundo lugar, a França deve ficar longe das abordagens americanas de dois pesos e duas medidas. Portanto, se eles querem o apoio do povo sírio, como alegaram, no que diz respeito à democracia, então seria melhor dar este apoio ao povo saudita em primeiro lugar. Se você tem um problema com o Estado sírio, relacionado à democracia, como é que você pode ter boas relações e construir amizades com dois dos piores e menos desenvolvidos países do mundo, tais como a Arábia Saudita e o Catar? Esta contradição não sugere credibilidade.
Em terceiro lugar, é natural que uma autoridade trabalhe pelo bem de seu povo. A pergunta que faço, nesta mensagem, é: A política francesa deu algum bom retorno ao povo francês nos últimos cinco anos? Qual foi o benefício colhido pelo povo francês? Eu estou certo de que a resposta será: Nada. A prova é o que eu disse, há alguns anos, de que a distorção deste abalo sísmico na Síria reverberará em tremores pelo mundo todo. E isso acontecerá, primeiramente, na Europa porque nós somos o quintal da Europa, tanto geográfica quanto geopoliticamente. Na época, eles disseram: Estás nos ameaçando? Eu não estava ameaçando. O ocorrido no Charlie Hebdo, no início deste ano, não foi apenas um incidente. E eu disse que tal ocorrência era apenas a ponta do iceberg. O que aconteceu em Paris foi mais uma prova disso. Eles devem mudar suas políticas pelo bem de seu próprio povo. E aí teremos interesses compartilhados com o povo francês, especialmente na luta contra o terrorismo. Portanto, nossa mensagem final é que nós os chamamos para lutar de forma séria contra o terrorismo. Quando falarem sobre o combate ao terrorismo, esta será a nossa mensagem.
Os peritos franceses confirmaram que os terroristas receberam treinamento no Oriente Médio, mas nós ainda não temos informações sobre isso. Quais as circunstâncias que devem ser disponibilizadas para o estabelecimento deste tipo de cooperação entre Paris e Damasco?
A condição mais importante é a seriedade. Se o governo francês não for sério em sua luta contra o terrorismo, então não vamos perder o nosso tempo colaborando com um país ou governo ou instituição que apoia o terrorismo. Em primeiro lugar, eles devem mudar a sua política e que ela seja baseada num critério único, não em vários, e que este país seja parte de uma aliança que reúna os países que lutam contra o terrorismo e não por países que apoiam e combatem o terrorismo ao mesmo tempo. Isto é uma contradição. Então, estas são as bases que devem servir a qualquer cooperação. Nós queremos que esta cooperação exista, não somente com a França, mas com qualquer país. Mas essa cooperação deve ocorrer num ambiente adequado, dentro de certos critérios e tendo propiciadas algumas condições.
No futuro, se o governo mudar, isso seria possível?
Na política, não existe espaço para amizades e sentimentos. Há apenas interesses. Este é o meu papel como político. E este é o papel deles como políticos de seu país. A questão não é saber se eles gostam de Assad ou se eu gosto ou não de Hollande. A questão não tem nada a ver com isso. O meu trabalho é buscar o que é melhor para os sírios. E o trabalho deles deveria ser buscar o que é melhor para os franceses. Não temos problemas quanto ao futuro. O nosso problema está na política e não nos sentimentos.
O senhor teve um encontro com o presidente Putin. Não perguntarei o que ele disse ao senhor, mas gostaria de fazer outra pergunta. Quando alguém diz que Putin é a última pessoa que poderia defender o Ocidente, o senhor concorda com esta opinião? No sentido de que Putin seria o último presidente de estado que poderia defender a civilização ocidental e o cristianismo.
Você quer dizer a minha opinião quanto à questão de se o presidente Putin defende a Europa Ocidental ou não?
Isso mesmo.
Presidente Bashar Al-Assad: Quando você fala sobre o terrorismo, está falando sobre um só cenário. Não sobre um cenário sírio, outro líbio, um terceiro iemenita e um quarto francês. É um só cenário. Este foi o impulso para a aliança russa anunciada há alguns meses, antes do envio das tropas para a Síria. É que se nós não lutarmos contra o terrorismo na Síria, ou talvez em outras partes do mundo, o terrorismo vai atingir a todos os lugares, inclusive a Rússia. Portanto, isso é real. Quando você luta contra o terrorismo na Síria, você está defendendo a Rússia, a Europa e os outros continentes. Isso é certo. Esta tem sido a nossa visão por décadas. Desde quando lutamos contra os terroristas da Irmandade Muçulmana nas décadas de setenta e noventa do século 20. Esta foi a nossa impressão. Nós sempre exigimos o estabelecimento de uma coalizão internacional para combater o terrorismo, porque o terrorismo não reconhece fronteiras políticas e não dá a mínima atenção para procedimentos. Sejam quais forem as ações adotadas pela França, após o incidente do Charlie Hebdo, o que aconteceu em Paris comprova esta teoria. Isto é certo e preciso. Qualquer um que luta contra o terrorismo, e não somente o Putin, está protegendo o mundo inteiro.
Durante a Conferência de Viena sobre a Síria e na reunião do G-20, em Ancara, em momentos diferentes, vários presidentes disseram que “A solução está na saída de Bashar al-Assad,”. O senhor estaria pessoalmente pronto para abandonar o poder se esta for a solução exemplar para proteger a Síria?
Esta é uma pergunta que se subdivide em duas partes. No que diz respeito à primeira parte, sobre se eu faria alguma coisa para atender ao pedido de um estrangeiro, a resposta é não. Eu não faria isso, independentemente da demanda, se é grande ou pequena, importante ou sem importância, porque não tem nada a ver com a determinação da Síria. A única coisa que eles fizeram, até agora, é fornecer apoio aos terroristas das mais diversas formas. Tanto através da cobertura dada a eles quanto através do apoio direto. O que eles fazem é, tão somente, criar problemas. Eles não são parte da solução. Estes países que apoiam o terrorismo não são parte da solução na Síria. Portanto, seja lá o que eles digam, nós não os atenderemos porque, francamente, nós não nos importamos com eles. Em segundo lugar, do meu ponto de vista como um sírio, devo atender apenas às vontades da Síria e, claro, quando falo sobre a vontade da Síria, deve haver algum consenso por parte da maioria dos sírios e a única maneira de descobrir o que os sírios querem deve ser através das urnas.
Em terceiro lugar, para que qualquer presidente chegue ao poder ou deixe-o, em qualquer país que se dê o respeito e respeita sua cultura e seu povo, deve haver um processo político que seja um reflexo da Constituição. A Constituição é quem dá poder e destitui o presidente, através do parlamento, das eleições, do referendo e assim por diante. Esta é a única maneira em que o presidente pode chegar ao poder ou deixa-lo.
O que ocorre, em todas estas negociações, afirma que a única solução, não apenas para a Síria, mas também para o Iraque e o Líbano, é a divisão. Ouvimos muita coisa sobre isso. Como o senhor sabe, fala-se sobre secularismo e sectarismo, mas há muitas coisas sendo ditas em todo o lugar, no diz respeito à Síria, à região costeira e também ao Iraque, bem como ao Líbano. Como o senhor se sente em relação a isso?
A impressão que eles querem dar, através da mídia ocidental, é que o problema nesta região é uma guerra civil entre os vários componentes, religiões e grupos étnicos que não aceitam o convívio uns com os outros. Se for assim, por que eles não dividem o seu próprio país, podendo, desta forma, ficar cada um em sua área? Na realidade, o problema não é bem assim, porque, atualmente, você pode constatar que nas áreas que estão sob o controle do governo, todos estes componentes convivem uns com os outros e levam uma vida normal. Portanto, se eles querem a divisão, devem, primeiramente, desenhar linhas muito claras entre os componentes, quer seja entre as etnias ou as seitas religiosas. Nesse caso, se a região chegar a este ponto, eu vos digo que haverá pequenos países lutando uns contra os outros, em guerras intermináveis que durarão, talvez, por séculos. Uma situação como esta significaria que serão deflagradas guerras permanentes. Para o restante do mundo, isso significaria mais fontes de instabilidade e terrorismo, que poderão ser exportadas para o mundo inteiro. Esta seria a situação. Todavia, esta é uma forma muito perigosa de se pensar. Não queremos uma tutela social para tal divisão. O fato é que se você perguntar a qualquer sírio, agora, quer seja a favor ou contra o governo, todos dirão que apoiam a unidade da Síria.
O senhor falou sobre a Constituição. Daqui a alguns meses, haverá eleições na Síria. O senhor estaria disposto a receber observadores internacionais para estas eleições?
Sim, mas nós já dissemos que a observação internacional não inclui as organizações das Nações Unidas, porque não possuem nenhuma credibilidade. Porque elas estão, francamente, sob o controle dos americanos e do Ocidente em geral. Portanto, quando falamos sobre observação internacional ou a participação ou a cooperação, nos referimos a países não foram parciais durante a crise, não apoiaram os terroristas e não tentam politizar suas posições sobre os acontecimentos na Síria. Estes são os países que poderiam estar envolvidos na coordenação ou na observação. Nós não temos, em princípio, nenhum problema quanto a isso.
Falamos sobre o Catar e a Arábia Saudita, mas não falamos sobre a Turquia, que permite a centenas de milhares de refugiados a atravessar para a Europa. Ao que parece, também permite que os jihadistas entrem na Síria. Como o senhor vê o papel da Turquia?
É o papel mais perigoso em toda esta situação, porque a Turquia tem fornecido todo o tipo de apoio a todos estes terroristas, dos mais diferentes espectros. Alguns países apoiam a “Frente al-Nusra”, ligada à Al Qaida, e outros apoiam o Estado Islâmico, enquanto que a Turquia apoia estas duas organizações e muitos outros grupos ao mesmo tempo. Ela fornece o suporte em recursos humanos, em termos de recrutamento de combatentes, e os apoia com dinheiro, armas, monitoramento e informações. Isso sem contar o apoio logístico. Até mesmo as manobras levadas a cabo pelo exército turco na fronteira com Síria, durante as batalhas, têm este objetivo. Mesmo recursos captados, em todo o mundo, passam pela Turquia. O Estado Islâmico vende o petróleo na Turquia. Portanto a Turquia vem desempenhando o pior dos papéis em nossa crise. Em segundo lugar, isso está diretamente ligado ao próprio Erdogan, assim como a Davutoglu, porque ambos refletem a verdadeira ideologia que está em seus corações, que é a ideologia da Irmandade Muçulmana.
O senhor acha que ele é membro da Irmandade Muçulmana?
Não necessariamente um membro regular. No entanto, a mentalidade dele é 100% a mesma da Irmandade Muçulmana. Ele tem um grande interesse no Islã político, que é um islamismo oportunista, sem qualquer relação com a religião muçulmana. Nós enxergamos o assunto desta forma, porque não se pode politizar a religião. Então, a questão está ligada a ele pessoalmente e ao seu desejo de ver a Irmandade Muçulmana governar todo o mundo árabe, para que ele possa ter o controle sobre eles e ser o sultão deles, ou na realidade um Imã. Este é o papel desempenhado pela Turquia.
O senhor sabe a situação em que nos encontramos agora, após os ataques a Paris e, anteriormente, ao Charlie Hebdo, assim como os eventos que os antecederam. O senhor falou sobre isso, mas eu quero a confirmação do que o senhor disse. O senhor acha que a França não poderá lutar contra o terrorismo, se continuar em suas relações com o Catar e com a Arábia Saudita?
Sim e acrescento que você não pode lutar contra o terrorismo, se você não tiver relações com as forças que combatem o Estado Islâmico ou o terrorismo no terreno. Você não pode lutar contra o terrorismo, enquanto adota políticas equivocadas que apoiam direta ou indiretamente o terrorismo. Se você não tiver todos estes fatores, você não poderá atuar neste sentido. Eu não acredito, até o presente momento, que ela possa fazê-lo agora.
Muito obrigado, Sr. Presidente, por nos conceder esta entrevista.
Obrigado por nos visitar.