Diógenes Júnior: Você podia ser mais claro?
Diante da constatação de mais uma manifestação de ódio despejada via redes sociais — certamente a penúltima, não a última porque outras virão— , ecoam na minha mente algumas palavras de Fernando Evangelista, que tão bem definiu sentimentos e ações que deveriam ser comuns a todos os homens e mulheres, independentemente da cor de sua pele.
Por Diógenes Júnior, no Portal Vermelho e Jornalistas Livres
Publicado 03/11/2015 11:25
“Ser guiado por uma permanente capacidade de se estarrecer e, com ela e por causa dela, não se acomodar.”
Kamilah Brock foi mantida durante oito dias em um hospital psiquiátrico, depois que um policial não acreditou que o carro de luxo que ela dirigia era de sua propriedade.
A bancária de 32 anos foi abordada quando trafegava pelas ruas do bairro do Harlem; o policial que a abordou questionou-a sobre o porquê de ela não estar com as mãos no volante de seu automóvel, um BMW.
Em resposta, ela disse que ouvia música enquanto o veículo estava parado em um sinal vermelho.
Kamilah foi levada para uma delegacia, onde ficou horas detida sem ser acusada de qualquer crime.
Kamilah Brock é negra.
“Caminhar junto aos marginalizados, reconhecer no outro sua própria humanidade, principalmente quando o outro for completamente diferente.”
O norte-americano radicado no Brasil Jonathan Duran, de 42 anos, contou que seu filho Lucas foi expulso da loja da grife “Animale” na rua Oscar Freire, em São Paulo.
Uma vendedora ficou irritada com a presença do menino de apenas 8 anos no local e decidiu que “ele não poderia vender coisas ali”.
“Lucas e eu fomos expulsos da frente desta loja enquanto eu fazia uma ligação; em certos lugares em São Paulo a pele do seu filho não pode ter a cor errada” escreveu posteriormente Jonathan.
Seu filho, Lucas, é negro.
“Não fazer da dúvida o álibi para a indiferença. Nunca ser indiferente.”
“Não consigo respirar, não consigo respirar!”
Essa frase foi a última frase dita por Eric Garner antes de ele ser assassinado por asfixia por um abraço mortal de um policial, em julho desse ano.
O policial que assassinou Eric Garner é branco, e foi inocentado das acusações de assassinato por um júri composto por uma maioria de pessoas brancas.
Eric Garner era negro.
“Escolher o caminho mais justo, mesmo que seja cansativo demais, arriscado demais, distante demais.”
A garota do tempo do Jornal Nacional, Maria Julia Coutinho, foi alvo, em julho desse ano, de uma chuva de comentários preconceituosos na página oficial do Facebook do programa do qual participa.
Após uma postagem sobre a previsão do tempo, alguns internautas escreveram dezenas de mensagens preconceituosas e agressivas.
Maria Julia Coutinho é negra.
“Saber que o destino de uma pessoa não deve ser determinado por causa da cor da sua pele, do gênero ou da religião.”
Policiais militares da Força Tática do 5º Batalhão mataram a tiros o dentista Flávio Ferreira Sant’Anna, de 28 anos.
Naquela ocasião, o rapaz foi confundido com um assaltante e nem teve chance de se defender.
Os policiais confessaram que, ao constatar o engano, simularam um tiroteio para forjar uma falsa resistência seguida de morte e assim alegar que só revidaram a tiros depois que a vítima disparou.
Os militares colocaram uma pistola 357 nas mãos de Flávio e no seu bolso a carteira do comerciante Antônio Alves dos Anjos, vítima de assalto.
Em um primeiro depoimento, o comerciante confirmou a versão de tiroteio dos policiais militares.
Porém, retornou à delegacia e admitiu ter sido pressionado a mentir.
Segundo alegou, ele só apontou o dentista porque, assim como o ladrão, Flávio também vestia uma camiseta preta.
Diante das evidências, os PMs confessaram a execução, assumindo que Flávio levantou os braços e não reagiu.
O tenente Carlos Alberto de Souza Santos e o soldado Luciano José Dias, acusados de atirar em Flávio, foram condenados a 17 anos e seis meses de prisão por homicídio, fraude processual e porte ilegal de arma.
O cabo Ricardo Arce Rivera foi absolvido do crime de homicídio, mas acabou condenado a sete anos e meio de prisão pelos outros crimes.
Na noite em que foi morto, Flávio retornava do Aeroporto Internacional de Guarulhos, na Grande São Paulo.
O dentista Flávio Ferreira Sant´Anna era negro.
“Não aceitar injustiças, sejam elas quais forem, como um fato natural”.
Taís Araújo foi vítima de preconceito em uma rede social no último sábado.
Internautas encheram a página da atriz no Facebook com comentários criminosos, chamando a atriz de macaca e fazendo piadas sobre a aparência do seu cabelo.
Taís Araújo é negra.
Ainda com o eco das palavras de Fernando Evangelista em minha mente, visitei a página da atriz e um dos comentários me chamou muito a atenção, e justamente por isso usei-o como base para o título desse artigo:
“Pode ser mais clara?" ?
Numa primeira leitura a frase não tem o mesmo apelo violento de outras tantas que lá encontrei, tais como “cabelo de parafuso enferrujado” ou “entrou na Globo (sic) pelas cotas”, mas choca pela sutileza cirúrgica com a qual ataca a atriz.
Ao mesmo tempo que sugere uma espécie de “dúvida” de seu autor, que dá a entender que “pedia clareza” à atriz por alguma coisa, é bem explícita sua intenção:
“Taís Araújo, tem como você ficar branca, assim como nós queremos que seja?”
A frase, colocada dessa maneira jocosa é de uma covardia, de uma brutalidade embora sutil que poucas vezes vi nesses anos todos em que participo de redes sociais.
É uma frase que foi construída, foi meticulosamente concebida com um objetivo específico.
A frase ataca Taís não tanto com a truculência estapafúrdia de alguém que a chama de “macaca” mas a ataca de uma maneira duplamente cruel, estudada, calculada.
Ela ataca Taís com a violência da indagação falseada pela ironia, mas também com a impossibilidade da negativa.
O racismo, através das redes sociais, tem mostrado seus músculos.
Já se foi o tempo em que as pessoas criavam perfis falsos com o objetivo de externar, sob a égide do anonimato e a certeza da impunidade, suas taras e deformidades de caráter.
Criminosos têm colocado seus demônios para fora sem a menor cerimônia, para quem quiser ver, ou mesmo à revelia de suas vontades.
Deixaram, faz muito tempo, de praticar seus crimes de maneira velada.
Há muito assumiram suas posições, e têm tomado de assalto os corações e mentes de pessoas que se mantinham reticentes, ou mesmo confusas, quanto a sua posição, a qual lado pertencem nessa luta travada no seio de nossa sociedade.
Sim, porque fica bem claro que nessa luta há dois lados: o lado dos que praticam o racismo e aqueles que combatem tal prática.
Hannah Arendt, filósofa que escreveu com tanta propriedade sobre os crimes praticados pelo nazismo nos ensina, em seu livro “Eichmann em Jerusalém”, o que é a “banalidade do mal”. (Adolf Eichmann foi tenente-coronel da SS nazista acusado, responsabilizado, julgado e condenado à morte pela logística de extermínio de milhões de pessoas durante a Segunda Guerra Mundial.)
Por “banalidade do mal”, Arendt se referia ao mal praticado no cotidiano como um ato qualquer.
Uma rotina, algo sem importância e até sob certo aspecto praticado de maneira mecânica, quase que irresponsavelmente automática.
Entendo que os ataques racistas e preconceituosos que usei para ilustrar esse artigo são nada mais menos do que a teoria de Hannah Arendt sendo aplicada na prática e confirmada.
E confirmada da pior forma possível: saindo das telas dos telefones celulares, dos tablets e computadores, tomando forma na vida real, assustadoramente materializando-se nas ruas:
“Saber que o destino de uma pessoa não deve ser determinado por causa da cor da sua pele.”
O isolador naval haitiano Fetiere Sterlin, 33, foi assassinado por golpes de facas desferidos por dez homens no município de Navegantes — Santa Catarina, a 112 km de Florianópolis.
Ele foi o primeiro haitiano assassinado na região do Vale do Itajaí, mas no ano passado outro rapaz levou cinco tiros e sobreviveu, embora logo tenha saído do país.
Fetiere Sterlin era negro, e a cor de sua pele determinou seu trágico destino.
*Diógenes Júnior é estudante de Ciências Sociais, pesquisador independente, militante do PCdoB, ativista dos Direitos Humanos e Jornalista Livre.