Argentina: paisagem depois da batalha
O primeiro turno eleitoral deixou muito mais que surpresas e já acendeu luzes de alerta não só na Argentina, mas também na região e em seus parceiros mais diretos, como Brasil e Venezuela.
Por Guadi Calvo*, de Buenos Aires, especial para o Vermelho
Publicado 29/10/2015 09:04
Apesar de as pesquisas eleitorais não terem sido totalmente claras, ninguém poderia imaginar que o candidato governista, Daniel Scioli, iria se impor com apenas 36,1% dos votos contra o neoliberal Maurício Macri, que conseguiu um resultado muito revigorante de 34,9%.
Para a opinião pública era praticamente certo que Scioli se sairia melhor no domingo (25) e superaria por mais de 8 pontos percentuais a seu único competidor, que era Maurício Macri, o homem do establishment.
Está dado o pior cenário para o projeto nacional: além de definir quem dirigirá o país pelos próximos quatro anos no domingo 22 de novembro, nesta horrível conjuntura, com uma oposição entorpecida pelos recentes resultados, o candidato oficialista não conta nem com o vigor de um líder, nem com o brilho de um estadista. Scioli não foi eleito por ser o melhor, mas sim por ser o mais “apresentável” para uma sociedade atravessada pela dicotomia de kirchnerismo e antikirchnerismo.
Se para todos o resultado a nível nacional foi surpreendente, o foi muito mais para a província de Buenos Aires, a mais importante do país, com uma representação de quase 38% do padrão eleitoral total do país. Uma improvisada e absolutamente desconhecida Maria Eugenia Vidal, com uma muito mais que modesta atuação no cargo de vice-prefeita da cidade de Buenos Aires, governada há mais de oito anos por Mauríco Macri, venceu sem atenuantes o chefe de gabinete da presidenta Cristina Kirchner, Aníbal Fernández.
Apesar de a última palavra não estar dada, as possibilidades de que Macri consiga se impor em 22 de novembro são muito maiores que as do último domingo (25). A Frente Para a Vitória, aliança que governou o país nos últimos 12 anos, conseguiu manter o controle absoluto no Senado e segue sendo grande no Congresso, além de contar com o apoio de 12 das 24 províncias, não é pouco, mas frente a um possível governo de Scioli não é suficiente.
Uma das causas a que se atribui o enfraquecimento kirchnerista de domingo é que justamente um dos homens-chave do projeto do governo ao longo destes 12 anos, Aníbal Fernández, não conseguiu se eleger em sua província. Sem dúvida a presidenta Cristina Kirhchner, ao aceitar que Fernández se candidatasse, cometeu um de seus mais graves erros políticos. A figura do atual chefe de gabinete, ao menos para o interior da FPV, é indiscutível e para muitos quase venerada. No entanto, fora da coalizão, sofre de receio e desconfiança.
O ministro Aníbal Fernández é uma das espadas mais brilhantes e agudas na hora de responder às campanhas negativas pautadas pelos grandes grupos midiáticos. Sua constante exposição pública, sua ironia e audácia na hora de dar declarações provocou, em parte do eleitorado, não só da província de Buenos Aires, sem cultura política e acostumados a discursos vazios de conteúdo ao estilo do ex-presidente Alfonsín, demasiada desconfiança. Há que se somar a isto uma operação jornalística em que foi envolvido no assassinato de três narcotraficantes e teve grande repercussão. Toda a acusação se baseava no fato de que um dos condenados pelo triplo-assassinato em uma entrevista com Jorge Lanata, ex-jornalista e maior operador político do grupo Clarín, declarou que o líder era chamado “Morsa”, sem outra identificação. Aníbal Fernández tem como símbolo um bigode muito grosso e ultrapassado da moda. Fora essa “coincidência”, Lanata não pode provar mais nada.
O programa de Jorge Lanata é baseado nesta classe de informações contra o governo, cada semana informa novas negociações que nunca levam a nenhum lugar. Suas fontes consistem em afirmações como “uma vizinha me contou”.
Mas este efeito negativo do candidato a governador sem dúvida arrastou Scioli, e arremessou o candidato da Cambiemos, uma aliança política ad doc, composta ainda por PRO (Proposta Republicana), pelo desprestigiado Partido Radical, cujos seus dois últimos presidentes, Alfonsín e Fernando de la Rua, tiveram que fugir do governo muito antes do fim de seus mandatos, deixando o país entre crise econômica e banhos de sangue. Além disso, na coalizão Cambiemos participam uma série de partidos “unipessoais” como a da deputada Patricia Bullrich e Elisa Carrio, ambas junto ao PRO de Laura Alonso, seriamente envolvida no suicídio induzido do fiscal Alberto Nisman, com quem havia organizado uma operação que liga a presidenta aos atentados contra organizações judias em 1992 e 1994 (Caso Amia).
O atual governo da cidade de Buenos Aires, encabeçado por Maurício Macri, se beneficiou, durante todo o mandato, de um guarda-chuva gigantesco que protege e esconde as inesgotáveis negociatas tanto de Macri quanto de muitos de seus funcionários. Vale ressaltar que apenas ele conta com 214 denúncias judiciais por corrupção e algum outro delito. Questão que só é abordada em alguns poucos meios de comunicação do Estado e outros independentes.
Os profetas do ódio
Ninguém mente ao afirmar que o ascenso da coalizão Cambiemos e a possibilidade de que terminem conquistando a Presidência do país não é por méritos de seus dirigentes, senão por nenhuma outra questão que o profundo ódio que grandes setores da classe média e a quase totalidade da grande burguesia têm contra Cristina Kirchner. É nesta parcela da população, e em nenhum outro lugar, que está a base da hecatombe do governo no último domingo (25). Estes mesmos setores que apoiaram a ditadura militar (1976-1983), e o governo de Carlos Ménem e seu ministro Domingo Cavallo, atual conselheiro de Macri.
A lista de inimigos do projeto kirchnerista é enorme, mas já é sabido, trata-se do de sempre, o que vem contra Cristina, já vinha contra Evita há quase 70 anos. Os capitais financeiros, os proprietários dos campos, a embaixada norte-americana, o grande holding Techint, grupos empresariais, bancos, entre outros, têm sido os inimigos do projeto que possivelmente vai terminar no próximo dia 10 de dezembro. Mas sem dúvida o mais curioso é como grandes setores da população diretamente beneficiada com as políticas do governo têm assimilado a mensagem de ódio dos meios e a tomado para si. Muitos dos que usufruem dos planos sociais, dos créditos, das centenas de hospitais inaugurados nestes últimos anos, optaram por uma mudança que é um salto ao passado.
O tremendo fracasso da futura governadora de Buenos Aires, durante os festejos do último domingo à noite, deixa tudo muito claro: “Troquemos futuro por passado”, disse. A Argentina se projetava em um caminho de crescimento industrial e tecnológico como não acontecia desde o governo de Perón. Nestes 12 anos foram repatriados quase 1.500 cientistas argentinos que trabalham no exterior e foram expulsos pelos mesmos gurus econômicos que convocaram Macri para a Presidência. O projeto espacial do governo argentino que já conseguiu colocar em órbita dois satélites (Arsat 1 e 2) de comunicação, totalmente construídos na Argentina, hoje está sendo ameaçado com uma bendita privatização, igual à que pensam em fazer com a petrolífera nacional YPF e a empresa de aviação Aerolíneas Argentinas, isso só para começo de conversa. A abertura econômica, a desvalorização que se anunciam em alguns âmbitos e se escondem do grande público me faz temer que a Argentina caia novamente na censura dos anos 1990, e com isso arraste seus sócios continentais, atacados exatamente pelos mesmos inimigos.
Em 22 de novembro a Argentina lidera uma nova batalha pela sua independência, e como sempre, também pela independência da América Latina. Talvez no domingo o lema peronista “Unidos ou dominados” tenha uma nova resposta.