Eleições na Argentina: dois projetos de política externa em disputa
“Tudo nos une, nada nos separa”, dizia em seu celebre discurso o presidente argentino, Roque Saez Peña (nome de famosa praça no bairro de Noel Rosa, no Rio de Janeiro), realizado em sua visita ao Brasil no ano de 1910. Se bem temos nossas diferenças em temas esportivos, no que se refere ao debate sobre a estratégia de inserção internacional de ambos os países, a convergência tende a ser grande.
Por Rubens Diniz*, especial para o Vermelho
Publicado 25/10/2015 12:59
Principal vizinho, e parceiro central nas iniciativas de integração regional, a Argentina encontra-se no núcleo da política externa brasileira. O entendimento estratégico entre Argentina e Brasil é o “nó górdio” da integração regional na América do Sul. Conhecer e acompanhar a agenda de debates e as eleições na nação platense, é importante para refletir sobre o Brasil e sua inserção internacional.
Conflito e cooperação marcam o relacionamento argentino-brasileiro
O relacionamento entre Argentina e Brasil é marcado tanto pelo conflito e cooperação, resultado dos conflitos geopolíticos que moveram as nações ao redor da Bacia do Prata desde 1680 com a fundação de Colônia do Sacramento ainda no bojo dos conflitos luso-espanhóis. São inúmeros os episódios e os personagens que atuaram tanto para aproximar a Argentina do Brasil como instrumentaram diferenças, muitas vezes, ao gosto de interesses externos.
Foi somente no final dos regimes militares, com a ascensão de Raul Alfonsín e José Sarney, que colocou-se em primeiro plano a cooperação como meio de fortalecimento das instituições e da própria democracia. A Declaração de Iguaçu, prestes a completar 30 anos, sela esta aproximação ao estabelecer parâmetros comuns para uma série de temas e instituir o Programa de Integração e Cooperação Econômica (Pice), considerado a pedra fundadora das iniciativas contemporâneas de integração regional.
A disputa dos paradigmas na orientação da política externa argentina
As diferenças em torno do modelo econômico marcam a política externa argentina. De igual modo, o estabelecimento de alianças privilegiadas com as grandes potências (Grã-Bretanha e EUA), marcaram em grande medida a aproximação ou o distanciamento com o Brasil.
Para o pesquisador Alessandro Wanderley Candeas, isto é resultado do embate dos principais paradigmas que orientam a política externa do país vizinho. Para o autor, eles são em essência dois e operam até os dias de hoje, a saber: o paradigma da aliança privilegiada, oriundo da “geração dos oitenta” de rivadalvia-albertino, de caráter liberal e agroexportador; e a autonomia heterodoxa – terceira posição, de origem peronista, desenvolvimentista, identificado com a América Latina. Para o autor, o primeiro foi adotado pelos militares e pelo governo Menem (sob o conceito de realismo periférico); enquanto o segundo, foi implementado por Arturo Frondizi, Raúl Alfonsín, e pelos governos Kirchners.
Em grande medida a annálise das atuais eleições passa justamente pelo debate de que paradigma orientará a política externa argentina para o próximo período.
Eleições 2015 – o confronto de projetos
As eleições que ocorrem neste domingo (25), têm sido noticiadas como uma das mais disputadas nos últimos anos, e onde o debate sobre a inserção internacional do país tem ganhado destaque. É comum encontrar análises que afirmam que a política externa argentina sofrerá mudanças independente do candidato que ganhe. A avaliação é de que tanto Maurício Macri (da coalizão opositora Cambiemos) como Daniel Scioli (aliança governista Frente Para a Vitória) estabelecerão mudanças na orientação do Palácio San Martin, sede da chancelaria argentina. Até onde esta análise procede?
Entre os dois candidatos principais, Daniel Scioli e Mauricio Macri, as diferenças no que se refere à política externa são expressivas. Em última instância, refletem os diferentes paradigmas que incidem sobre a inserção internacional da Argentina: o da “geração dos oitenta”, agroexportador e do livre comércio, orientado ao estabelecimento de uma aliança especial com um país do centro; e o paradigma da autonomia heterodoxa, desenvolvimentista, e defensor de uma estratégia de maior proximidade com a América Latina.
Desde o final de 2014, ambos candidatos cumpriram uma extensa agenda de viagens internacionais. Estas viagens são um importante indicador, de preferências e prioridades na ação externa. O candidato da Frente para a Vitoria, Daniel Scioli, esteve em Cuba, no Uruguai, no Chile, e Brasil, onde esteve com a presidenta Dilma Rousseff e com o ex-presidente Lula. Por outro lado, o candidato da coligação Cambiemos, Mauricio Macri, realizou visitas a Israel, Bélgica, Espanha, Alemanha e Inglaterra.
Macri – a busca por uma aliança prioritária com os EUA e a defesa do livre comércio
As propostas de política externa de Maurício Macri, tem sido difundidas tanto pelo candidato como por seu assessor de assuntos internacionais, Fúlvio Pompeo. De igual modo, o candidato tem tomado como referência as formulações do documento chamado “Consenso”, elaborado por intelectuais vinculados ao Centro de Relações Internacionais da Argentina (Cari), de orientação liberal.
Em linhas gerais, Macri defende a manutenção da relação prioritária com o Brasil, no entanto, afirma que a Argentina deve fazer valer seu peso em temas como agroindústria, energia, turismo, além de uma agenda de segurança voltada para temas como, combate ao terrorismo e narcotráfico.
No que se refere ao Mercosul e ao processo de integração, destaca que, é necessário revitalizar o Mercosul a partir de uma nova dinâmica de acordos de livre comércio, flexibilizando certas regras e estabelecendo o fim da união aduaneira. Defende ainda uma ação conjunta com a Aliança do Pacifico e assinatura do acordo com a União Europeia.
Ainda com respeito ao processo de integração, Macri tem defendido que seja utilizada, a denominada Cláusula Democrática do Mercosul, para suspender a participação da Venezuela do bloco. De igual modo, o país deve abandonar o que chama de eixo bolivariano, e se reaproximar de seus sócios tradicionais.
Neste sentido, país deve trabalhar para estabelecer uma agenda de temas comuns e prioritária com os EUA, a igual que a União Europeia. Fortalecer e aprofundar as identidades em temas de direitos humanos, liberdades individuais, contribuindo desta forma para o fortalecimento das relações comerciais. Não se descarta a manutenção das relações com países como Rússia e China, mas elas teriam uma dimensão secundária.
Um tema caro para todos os argentinos, a questão das Malvinas, foi abordado recentemente em entrevista para o jornal britânico The Telegraph, por Fúlvio Pompeo, assessor internacional de Macri. De acordo com a publicação, é interesse do candidato da Cambiemos descongelar as relações com o Reino Unido, resgatando em certa medida, o que ficou chamado de “política de conciliação” sobre o tema das Malvinas, similar à desenvolvida no período Menem.
Scioli – atualização e aprofundamento das linhas atuais da política externa argentina
As propostas de política externas apresentadas por Daniel Scioli têm sido expressas pelo próprio candidato, e por seu assessor para assuntos internacionais, Rafael Follonier, antigo colaborador de Nestor Kirchner. O candidato também tem adotado as formulações desenvolvidas pela fundação Desenvolvimento Argentino (DAR, na sigla em espanhol), dirigida por seu irmão, José “Pepe” Scioli, que recentemente realizou uma atividade com o ex-presidente Lula, em Buenos Aires.
É certo que Daniel Scioli possui um perfil distinto ao de Cristina Kirchner e do falecido Néstor Kirchner, oriundos da “geração setentista”, do peronismo, o que leva muitos fundamentarem a opinião de que irá ocorrer uma mudança na política externa. No entanto, as demonstrações existentes no decorrer da campanha dão sinal de que Scioli manterá as linhas gerais da política externa desenvolvida nos últimos 13 anos. É certo, de igual modo, que existirão ajustes, atualizações, mudanças de ênfase, sem que, contudo, ocorra uma mudança de fundo da orientação externa do país. Ao nosso modo de ver, elas passarão por um processo de atualização e aperfeiçoamento.
No que diz respeito ao relacionamento com o Brasil, Daniel Scioni tem sido enfático em defender o estreitamento do relacionamento bilateral, bem com, o aprofundamento da agenda regional.
No que se refere ao processo de integração em si, Scioli tem defendido a superação de certos diferenciais na esfera comercial, buscando colocar em marcha um novo ciclo de aprofundamento do Mercosul. Nesta agenda encontram-se temas como a consolidação da Tarifa Externa Comum, a constituição de cadeias de valor regional, e a adoção de uma agenda de integração em infraestrutura e logística. O candidato da Frente para a Vitoria, tem defendido a realização do acordo entre o Mercosul e a União Europeia, dentro de parâmetros que sejam de beneficio comum para ambos os blocos. Defende ainda o estabelecimento de pontes entre o Atlântico e o Pacífico.
Busca realizar um esforço de recomposição no relacionamento com os EUA, principalmente nas esferas econômicas e comerciais, dado que, em outros temas da agenda global a cooperação é positiva. Avalia ainda que o reatamento das relações entre Cuba e os EUA permitirá um funcionamento do sistema interamericano menos ideologizado, e mais pragmático, permitindo que a relação se estabeleçam a partir de benefícios mútuos.
Os esforços de buscar novos parceiros econômicos e consolidar novas alianças se mantêm no centro da ação externa. Neste sentido, mesmo reconhecendo o momento delicado pelo qual passam todos os países dos Brics, Scioli, afirma que parcerias com Rússia e China podem contribuir para o desenvolvimento de projetos como a Ferrovia Belgrano de cargas e a construção de hidroelétricas.
O tema das Malvinas para Scioli, é um tema de Estado, o qual deve continuar recebendo a estratégia adotada na atualidade com ações em três frentes: a continuidade das pressões em foros multilaterais; fortalecer os avanços obtidos nos fóruns regionais de integração; e acompanhar de perto as ações do Reino Unido em torno ao uso dos recursos naturais existentes nas ilhas.
Um olhar brasileiro sobre as eleições argentinas
O que fica patente é que existe sim diferenças substanciais entre os dois projetos que estão em disputa na eleição deste domingo (25) na Argentina. O que está em jogo nesta eleição na Argentina é a manutenção de sua prioridade na órbita da integração regional, ou seu retorno à busca de uma aliança privilegiada com as potências desenvolvidas. A década de 1990 demonstrou os riscos desta opção estratégica. Para o espectador brasileiro, interessado em aprofundar o processo de integração regional, a preferência na eleição de hoje é obvia.