Derrotar ofensiva conservadora é premissa para avançar na integração
Qualquer balanço que se faça sobre o processo de integração latino-americana nestes 10 anos decorridos desde a derrota do projeto da Área de Livre Comércio das Américas (Alca) – balanço que por sua dimensão não pode ser feito nos limites deste artigo – deve necessariamente levar em conta o ambiente e a correlação de forças internacionais em que se desenvolveu esta luta.
Por Socorro Gomes*, no Blog da Resistência
Publicado 18/10/2015 11:19
O movimento popular, na década precedente à derrota da Alca (anos 90 do século passado), vinha lentamente recuperando-se do tremendo impacto causado pelo fim da União Soviética e do campo socialista no Leste europeu.
A vitória ideológica da burguesia criou condições para uma ofensiva global do imperialismo e de seus aliados contra os direitos dos trabalhadores e povos e contra a soberania das nações.
Agressões armadas à revelia do direito internacional viraram rotina. São tristes exemplos a Iugoslávia, o Iraque (duas vezes), o Afeganistão, a Líbia, a Síria etc. O bloqueio a Cuba socialista tornou-se ainda mais cruel. Israel teve as mãos livres para aumentar a opressão sobre o heroico povo palestino. A tática de sabotar e fomentar divisões entre países que ainda não se tinham rendido integralmente à cartilha imperialista conhecia seu auge.
Na América Latina – região, desde há muito considerada pelos EUA, em termos geopolíticos, como seu quintal – as classes dominantes alcançaram uma quase unânime convicção de que a subordinação aos países centrais era o caminho mais rápido para o progresso econômico, razão pela qual os tratados de livre comércio passaram a ser a panaceia para todos os males, sendo o México, com o Nafta, o exemplo mais concreto deste caminho.
A Alca aparecia então como a joia da coroa. Seria a realização do plano imperialista de colonizar a região através do controle econômico, com as soberanias nacionais sendo entregues em bandejas de prata por governos subservientes.
Todos lembram do presidente argentino Carlos Menem que defendia uma “relação carnal” (palavras textuais) daquele país com os EUA, chegando a pedir a entrada da Argentina na Otan além de dolarizar a economia, medida seguida por outros países da região como o Equador.
No Brasil, o governo Fernando Henrique Cardoso, também um fiel seguidor da cartilha neoliberal e entusiasta da Alca, ofertou ao império grande quinhão da riqueza dos brasileiros, com as privatizações das telecomunicações e indústrias siderúrgicas, além de subtrair importantes direitos dos trabalhadores brasileiros.
Deve-se ressaltar o papel solerte da influente máquina de propaganda que sempre esteve a serviço das políticas antipopulares e as apoiou.
Sem exceção, todos os governos neoliberais da América Latina daquela época contavam com a adesão do aparelho midiático nativo e internacional (incluindo-se aí o setor de entretenimento), que oferecia uma forte blindagem sobre as consequências destas políticas, de suas reais motivações, além da mitificação sobre a ideologia liberal.
No entanto, o México, depois do Nafta, enfrentou grave convulsão social. Com a economia desnacionalizada, aquele país assistiu a um aumento sem precedentes da miséria e da violência. De repente o México, que era modelo do que se devia fazer, foi gradativamente sumindo dos noticiários.
Na Argentina, Venezuela, Brasil e em todos os países da região onde o modelo neoliberal era hegemônico, acontecia basicamente o mesmo fenômeno com poucas variações: de um lado, o aumento da miséria, da fome, da violência, da precarização social e, de outro lado, o aumento da concentração de renda, beneficiando uma minoria de milionários.
A insatisfação popular deita por terra a falsificação diária da realidade pela mídia. Estavam dados os elementos objetivos para uma resistência mais ativa frente à ofensiva do imperialismo.
Por todos os países da região os movimentos contestatórios se fortalecem.
Em 1998 é eleito presidente da Venezuela Hugo Chaves Frias, opositor aberto da globalização neoliberal e defensor da integração latino-americana.
Em 2002 é a vez de Lula ser eleito. Sucessivamente Bolívia, Equador, Paraguai, El Salvador, Nicarágua, Argentina, Uruguai, Honduras e Chile assistiram à ascensão de forças progressistas.
Ocorre um redesenho do mapa geopolítico da região. Os Estados Unidos perdem muito de sua nefasta influência sobre os países da região, que passam a se reconhecer como sujeitos comuns da construção de uma nova América, a “Nuestra América”, alicerçada na Unidade e cooperação entre os povos.
A ampliação do Mercosul, a criação de mecanismos multilaterais como a Celac, a Unasul e a Alba esvaziam cada vez mais a OEA (a Organização dos Estados Americanos foi durante muito tempo instrumento servil aos interesses norte-americanos), mitigando o alcance das iniciativas imperialistas na região. Uma das consequências benéficas deste fato é que a política de isolar Cuba mostra-se um fracasso sem remédio e os EUA são obrigados a rever sua tática e a fazer concessões ao diálogo, o que significa em primeiro lugar uma vitória da resistência cubana, mas também um efeito prático da nova configuração de forças na América Latina.
Também é neste contexto que se pode enxergar os avanços nas negociações de paz entre os insurgentes das Farc e o governo colombiano.
Tudo isso ocorre não em céu de brigadeiro, mas em meio a renhida luta, marcada pela ofensiva política e ideológica da burguesia internacional em um quadro de defensiva estratégica do movimento revolucionário.
É neste contexto que a mídia empresarial latino-americana, em bloco, antes subserviente, tornou-se abertamente militante a serviço da oposição de direita nos países onde governos progressistas foram eleitos.
Expressando os interesses das transnacionais, do capital financeiro, da indústria armamentista e do latifúndio, os veículos de propaganda da burguesia (jornais, TVs e rádios) travam acirrada luta contra governantes não alinhados aos EUA e em alguns casos – em uma repetição em outros moldes do que já aconteceu em meados do século 20 – incentivam golpes contra os governos legítimos.
Temos os exemplos da Venezuela, onde o golpe e o governo golpista sofregamente reconhecido pelo imperialismo, foi derrotado pela reação popular em 2002, o de Honduras em 2009 e o do Paraguai em 2012, quando o golpe contra o presidente Lugo foi bem-sucedido.
Destaco aqui, em relação à batalha de ideias, a visão ampla do comandante Hugo Chaves Frias quando fundou em 2005 a Telesur, para fazer um contraponto à mídia hegemônica. Iniciativa fundamental, mas que deveria ser seguida nos países não alinhados ao império por medidas concretas de regulação democrática da mídia, o que avançou mais em alguns países, menos em outros e praticamente nada no Brasil. Neste terreno da comunicação é forçoso constatar que a disparidade de forças continua imensamente desfavorável, mesmo depois de mais de uma década de governos progressistas.
Atualmente, no embalo da crise econômica capitalista que estourou em 2008 e que afeta duramente a população, desenvolve-se na região forte ofensiva conservadora e direitista, que atinge com particular intensidade Argentina, Equador, Brasil e Venezuela. Os elementos da ofensiva são semelhantes nos diversos países: a mídia em constante propaganda instrumentalizando a crise e brandindo cínicas e seletivas denúncias de vários tipos, principalmente de corrupção, contra os governos eleitos.
Mesmo em meio a esta conturbação, os povos em luta no mundo ainda veem nossa região como um importante baluarte da resistência. O mapa político da América Latina é hoje a expressão de sentimentos e relações integracionistas, jogando um papel de resistência anti-imperialista e de fomento a relações de respeito que consagrem nossa região como uma região de Paz, conforme declaração da Celac.
É inegável que conquistamos muitas vitórias nos últimos anos, mas também é inegável que temos muito a avançar na integração latino-americana. Cito apenas alguns dos aspectos da nossa insuficiência. Ainda não é sólido o arcabouço político-institucional da integração (é exemplo o ParlaSul que ainda dá os primeiros passos); o desenvolvimento com distribuição de renda e as políticas sociais, especialmente no combate à pobreza, devem ser cada vez mais políticas regionais permanentes, o que exige conexões territoriais e energéticas além de cooperação financeira e no campo da defesa comum, sem falar na proteção tanto do patrimônio ambiental quanto da diversidade cultural da região.
Seria tolice achar que um movimento desta magnitude, que impacta a correlação de forças no mundo, encontraria a reação de braços cruzados.
Os EUA mantêm bases militares por toda a região, as Malvinas são hoje na prática, uma base da Otan, sem falar da Quarta Frota que singra nossos mares, de Porto Rico cuja soberania foi roubada, de Guantánamo e das semicolônias francesas ainda existentes em nosso continente.
Os setores mais atrasados e reacionários da política latino-americana contam assim com poderosas bases propagandísticas, financeiras e militares para sustentar sua atual ofensiva.
Subestimar a capacidade do imperialismo e a necessidade de unir amplas forças para derrotar a onda conservadora seria uma cegueira imperdoável.
Outra integração mais avançada do que a atual – que é não apenas necessária, mas imprescindível – só será possível através da defesa do que existe hoje como base para futuros avanços.
A nossa capacidade para avançar neste processo depende em muito de conseguirmos falar diretamente com as pessoas, encontrando formas criativas e eficazes de elevar o nível de consciência política das massas até chegarmos ao ponto em que se reconheça o verdadeiro inimigo dos povos, o imperialismo.
A resistência da população europeia contra as políticas neoliberais e conservadoras dos seus órgãos de dominação global, a resistência palestina, a luta antifascista na Ucrânia, tudo isso está ligado também à luta pela soberania das nações da América Latina, pois se trata no fundo do mesmo imperialismo a serviço do mesmo amo: o capitalismo predador e inimigo da humanidade.