Juan Santiago Fraschina: A economia no projeto kirchnerista

Ao longo da última década, contrariamente à cantilena neoliberal, a Argentina pôde realizar uma importante redução no nível de desigualdade e, simultaneamente, apresentar altas taxas de crescimento econômico. Isso foi possível já que o estímulo à demanda a partir de investimento social não apenas melhora a qualidade de vida da população e garante o pleno exercício dos direitos sociais como também gera efeitos multiplicadores positivos na economia.

Por Juan Santiago Fraschina*

Economia argentina

Efeitos sociais e econômicos da crise da convertibilidade

No final do ano 2001, o modelo econômico neoliberal entrou numa crise terminal, depois de muitos anos de agonia, onde, juntos, a atividade econômica e os indicadores de emprego e pobreza pioravam. Em dezembro desse ano, a restrição à retirada de dinheiro em espécie, contas-correntes e poupança (o chamado “corralito”) pode ser considerada como o detonador da crise financeira, econômica e política que atravessava o país, depois de mais de uma década de políticas neoliberais sem quartel.

Um dos pilares do modelo neoliberal argentino foi a política monetária de convertibilidade (currency board) que fixava a equivalência da moeda argentina em relação à norte-americana: “Um peso, um dólar”. Essa medida trouxe como consequência a impossibilidade de se realizar uma política monetária de maneira autônoma, dado que a quantidade de reservas do banco central devia ser o equivalente à base monetária. Na prática, o esquema de convertibilidade permitiu que fosse gerado um modelo de acumulação financeira – distante das necessidades produtivas do país.

Com efeito, durante o regime de convertibilidade o sistema bancário e financeiro posicionou-se como um dos setores econômicos de maior protagonismo: foi o ramo com maior crescimento médio de toda a economia ao longo de 1991 a 2001 (12,6%), superior aos setores produtores de bens, serviços e ainda maior que o do Produto Interno Bruto (PIB) geral (3%, 3,7% e 3,4%, respectivamente). Esse forte crescimento, junto com a privatização do sistema de previsão social, que ficou sob a órbita das Administradoras de Fundos de Aposentadorias e Pensões (AFJP, sigla em espanhol), posicionou o setor como um dos mais firmes defensores e campeões do modelo (NORIEGA, 2003).

Enquanto uma parte do setor financeiro vinculado ao negócio da dívida (na convertibilidade da dívida externa em dólares aumentou quase US$ 30 bilhões) se enriquecia o conjunto do povo argentino continuava submetido à pobreza e ao desemprego. A taxa de desemprego, na média, permaneceu durante toda a década acima de 15% enquanto a pobreza, no final de 1999, acima de 25%.

Com relação ao desenvolvimento da indústria entre 1996 e 2002, 9140 empresas foram fechadas, das quais 60% pequenas e médias empresas (PYMES, em espanhol). Mesmo assim o modelo de desindustrialização livre levou a uma perda de 167 mil postos de trabalho nesse mesmo período.

Um dado interessante de se ressaltar é que, apesar desse aparente dinamismo do setor financeiro através do produtivo – embora durante os primeiros anos o setor tenha tido um alto crescimento –, a crise de 2001 o teve como um dos principais setores prejudicados. O sistema bancário-financeiro, no início de 2002, apresentava, dentre outras coisas, um enfraquecimento do sistema pagos, um mercado de capitais paralisado e uma ascendente desintermediação financeira.

Dentre os problemas mais espinhosos observados no setor financeiro e bancário se destacam: uma elevada ausência de prazos e de moedas; um elevado “spread” bancário; altas taxas de inadimplência e perdas; uma importante concentração e estrangeirização. O corralito deu o golpe final no sistema bancário, demonstrando que o setor financeiro precisa de outras políticas macroeconômicas para um crescimento sustentável.

Em relação à crise democrática e de representação, a crise de hegemonia do modelo neoliberal imputou uma crise de legitimação da política, entendida como uma ferramenta de transformação da realidade. Após a renúncia do então presidente Fernando de la Rúa, o país teve cinco presidentes em dez dias.

Crescimento com inclusão social

Podemos considerar o dia 25 de maio de 2003, com a assunção do presidente Néstor Kirchner, como a pedra angular do projeto político kirchnerista que pressupôs uma transformação da política econômica, com o objetivo de garantir a coesão social e restituir os direitos sociais aniquilados pelo modelo neoliberal e pela lógica anárquica do mercado. O kirchnerismo permitiu uma nova articulação entre as facções do capital vinculadas com o tecido produtivo e os trabalhadores a partir de uma participação ativa e transformadora do Estado.

Os determinantes níveis de pobreza, a perda de empregos, produto do fechamento de inúmeras pequenas e médias empresas, e de comércios, necessitavam de uma mudança substancial nas medidas da economia. Nesse sentido, um dos pilares do modelo econômico kirchnerista (e que marca uma diferença em relação ao esquema neoliberal) responde à necessidade da distribuição do acesso, e da inclusão social como condição necessária para o crescimento e (fundamentalmente) e o desenvolvimento de uma nação.

Com efeito, é muito comum no pensamento liberal estabelecer uma sequência temporal que expõe a necessidade de se produzir (crescer) primeiro para em seguida distribuir. A partir desse enfoque as políticas de acesso que os governos levam adiante, como no caso argentino, o aumento anual do salário-mínimo vital e variável (SMVM, na sigla em espanhol), as paritárias, a Concessão Universal por Filho (AUH, em espanhol), a mobilidade da previdência social, dentre outras medidas redistributivas, não teriam um impacto no nível de crescimento, a não ser que, ao incrementar o gasto público, tornariam mais agudos os problemas fiscais dos países.

É a partir daí que as políticas públicas sugeridas por essa corrente sejam o ajuste fiscal (redução do gasto público) e a “melhora do clima de negócios”, que levariam a um aumento do investimento e, com ele, da produção. Isso produziria um crescimento econômico que, em segunda instância, melhoraria o acesso dos setores mais vulneráveis. Comumente conhecida como teoria do derrame, essa sequência temporal entre a produção e a distribuição não foi respaldada pela evidência empírica, mas sim que as receitas neoliberais aprofundaram as desigualdades sociais.

O projeto kirchnerista compreende as Políticas de Acesso a partir de um sentido amplo onde se incluem as ações tendentes a: melhorar o salário dos trabalhadores formais (paritárias anuais), transferências de acessos aos informais e desempregados (AUH) e políticas ativas para redução da informalidade e incentivo da demanda de trabalho (os Programas PROGRESSO, PRÓ-EMPREGO, REPRODUÇÃO PRODUTIVA). Por sua vez, a partir das políticas de acesso, também estão incluídos os bens culturais e sociais que o Estado concede à população e que atuam à maneira de um salário indireto: educação pública, teatros e espaços culturais gratuitos, provimento de serviço público e infraestrutura, tarifas dos serviços públicos.

Ao longo da última década, contrariamente à cantilena neoliberal, a Argentina pôde realizar uma importante redução no nível de desigualdade e, simultaneamente, apresentar altas taxas de crescimento econômico. Isso foi possível já que o estímulo à demanda a partir de investimento social (denominado gasto para os liberais) não apenas melhora a qualidade de vida população e garante o pleno exercício dos direitos sociais como também gera efeitos multiplicadores positivos na economia. O Estado, ao aumentar o acesso disponível estimula a demanda e o consumo – o que se converte em maiores vendas das indústrias incrementando o emprego, fortalecendo o desenvolvimento industrial e o mercado interno e externo.

Distante dos cantos de sereia neoliberais, ao longo da última década consolidou-se o modelo de crescimento com inclusão social, onde não há tensão entre a esfera da produção e a de distribuição, mas que, por meio de políticas públicas ativas, se consegue articular uma estrutura social mais homogênea com um maior nível de crescimento em busca de objetivos de desenvolvimento econômico e social.

O processo de reindustrialização: Recuperando a matriz produtiva

A recuperação da matriz industrial (destruída depois de 30 anos de políticas neoliberais), junto com a reativação das economias regionais, é reflexo da importância que obtém, dentro do projeto kirchnerista, a indústria como motor de desenvolvimento e ferramenta fundamental para a geração de emprego. Fortalecer e desenvolver os encadeamentos produtivos que permitam um maior desenvolvimento industrial em todas as suas etapas é um objetivo permanente do projeto kirchnerista – assim como a melhoria da competitividade sistêmica das economias regionais.

A partir de 2003, o crescimento econômico foi explicado principalmente pela dinâmica da atividade industrial. Em apenas uma década o nível de atividade industrial, mensurado por meio da Estimativa Mensal da Indústria (EMI), foi incrementado em 70%. Já a utilização da capacidade instalada da indústria aumentou por volta de 8 pontos percentuais. As consequências imediatas do projeto kirchnerista foram um notável aumento na produção de bens, acompanhada por uma intensa geração de novos postos de trabalho e melhoria nos indicadores de qualidade do emprego, e a modernização e ampliação da capacidade produtiva nacional.

No que se refere ao emprego industrial, de 769.649 trabalhadores registrados no primeiro semestre de 2003, se passou para 1.287.909 no primeiro trimestre de 2013 (67% de aumento), fato que demonstra a grande capacidade de absorção de mão de obra que expandiu o setor industrial durante o renascimento da ênfase sobre os setores com maior agregação de valor.

Esse processo virtuoso de industrialização e geração de emprego possibilitou uma revitalização das negociações coletivas de trabalho. Durante a convertibilidade as mesmas exibiam um comportamento defensivo, onde os sindicatos tentaram ceder o mínimo possível frente à “flexibilização trabalhista”. Enquanto nos anos 1990 houve uma média de 178 acordos trabalhistas, em 2014 se chegou à cifra de 348 acordos que abrangem 4.300 milhões de trabalhadores.

O investimento e o financiamento para o desenvolvimento

Contrariamente ao que prega a teoria liberal – segundo a qual a única forma de se obter financiamento e ampliar os investimentos é a partir do estabelecimento de um “clima de negócios” amigável com o capital privado –, durante a última década a Argentina apresentou bons indicadores de investimento em relação à etapa de convertibilidade. Com efeito, tanto o consumo privado quanto o investimento foram duas das variáveis mais dinâmicas, graças às políticas de acesso, à criação de emprego e ao processo de industrialização. Em números, se durante o período 1993-2002 o consumo privado e o investimento tiveram uma queda de -0,6% e -5,7% respectivamente (variação anual acumulativa), no período 2003-2014 ambas as variáveis aumentaram 6,6% e 11,2% respectivamente.

Se então para se consolidar um processo de desenvolvimento são necessárias maiores taxas de investimento, se se realiza uma comparação em nível regional a taxa de investimento argentina (18% do PIB) supera a brasileira em um ponto percentual.

Em relação ao papel da dívida e de seu vínculo com o crescimento econômico, a política de desendividamento e a busca de alternativas de financiamento que garantem a soberania argentina foram fundamentais. O kirchnerismo estabelece formas de financiamento do Estado por meio de acordos e convênios bilaterais que reforçam o eixo Sul-Sul. Mesmo assim, por ter como objetivo a substituição de importações, se reforça a capacidade de pagamento do país, diminuindo a dependência externa. A melhoria nos indicadores de sustentabilidade do sistema bancário e financeiro, bem como os esforços tanto estatais quanto do setor privado para fortalecer o crédito produtivo são o reflexo de que é possível gerar um sistema financeiro distante da valorização e da especulação financeira, e o serviço da matriz produtiva argentina.

Desendividamento e Fundos Buitres (abutres)

Tendo-se claro que a disponibilidade de divisas permite um crescimento ao tecido industrial, uma política central para garantia dessa disponibilidade é o desendividamento. Um país superendividado deve destinar a maior parte dos seus recursos à anulação de seus compromissos. Por isso, um dos principais êxitos desta última década foi o notável desendividamento. A dívida pública total (incluindo a dívida interna do setor público) chega a US$ 202 bilhões. Enquanto a dívida pública no ano de 2004 representava 106% do PIB, hoje é de 39,5% reproduzindo claramente o efetivo das políticas de desendividamento. Se se desconta, além disso, a dívida pública nas mãos do próprio setor público passa a representar 102,7% do PIB em 2004 e 18,1% em 2014.

A modificação tanto quantitativa quanto qualitativa da dívida pública permitiu que cada vez mais sejam destinados menos recursos públicos para o pagamento da mesma. Em 2009 19,7% dos recursos eram destinados ao pagamento da dívida (incluindo vencimentos de capitais e interesses) e em 2014 apenas 7,4% foram destinados.

Esse processo de desendividamento ampliou as margens das políticas sociais reorientando os recursos do Estado para políticas de incremento de demanda que geram externalidades positivas para a economia em seu conjunto.

Assim sendo, se durante a última década não houve endividamento privado com organismos financeiros internacionais propenso às políticas neoliberais, como foi financiado o crescimento econômico? Por meio de um incremento de crédito privado e de canais de financiamento alternativos bilaterais. Dessa maneira se garante que a tomada da dívida corresponda ao projeto de infraestrutura em setores estratégicos (como o da energia) que permitem o refinanciamento da mesma.

Conclusões

A perda de hegemonia do projeto neoliberal, cristalizada na crise socioeconômica de 2001, permitiu o surgimento de alternativas de crescimento que tornam viável o desenvolvimento soberano do país. Os dramáticos resultados em termos de coesão social do liberalismo e suas receitas econômicas racharam as capacidades de dominação que até o momento haviam conseguido as alianças políticas e sociais que sustentaram as políticas neoliberais.

Diante das vozes que pediam o desmantelamento do Estado de Bem-Estar, o grande dinamismo na criação de postos de trabalho, consequência da instauração de um novo padrão de crescimento baseado na distribuição de acesso, o estímulo à demanda e da satisfação de direitos sociais permitiram que a Argentina retomasse o caminho do desenvolvimento.

A industrialização demanda um mercado interno e regional vigoroso e uma integração maior das economias regionais em esquemas que garantam relações simétricas e não de dominação. Nesse sentido, a consolidação da Pátria Grande precisa de mercados regionais nos quais o crescimento de um país facilite o de seus vizinhos numa relação de complementaridade produtiva.

Os países centrais pretendem transferir os custos da crise financeira internacional para os países em desenvolvimento, isso torna necessária uma articulação regional mais ampla. Diante de um contexto internacional adverso, no qual o comércio mundial se deprime, o dólar se supervaloriza e o preço das matérias-primas se reduz, as “políticas de ajuste” voltam a dominar o cenário midiático. Lembrar a experiência do passado e evitar políticas que desmantelem o processo de industrialização, de geração de emprego e inclusão social se transforma numa condição para a garantia do desenvolvimento da região.

*Juan Santiago Fraschina é coordenador nacional de Formação da La Campóra

Tradução: Maria Lucilia Ruy.