Síria: Washington “num beco sem saída”
The Nation, revista da esquerda liberal norte-americana analisa: EUA e seus aliados favorecem ISIS; atitude da Rússia é positiva; Casa Branca precisa renunciar à guerra permanente
Publicado 09/10/2015 17:02
Uma série surpreendente de acontecimentos está sacudindo, há uma semana, o cenário do Oriente Médio e pode provocar um tremor geopolítico na região. No momento em que a crise dos refugiados se agravava, e em que a dissolução de mais um país – a Síria – parecia inevitável, surgiu um fato novo. Moscou, um antigo aliado do regime sírio, voltou a intervir na região, cuja importância estratégica é notória. Aviões russos passaram a bombardear equipamento militar e postos de comando do Califado Islâmico (ISIS), o grupo ultra-fundamentalista que hoje controla parte do território da Síria e do Iraque. Os Estados Unidos reagiram, mas parecem impotentes.
A Rússia, que alega intervir a pedido do governo sírio, anunciou que sua ação poderá se estender por três meses. Robert Fisk, um dos jornalistas que melhor conhecem o Oriente Médio e menos se rendem aos interesses da potências ocidentais, julga que a ação russa poderá ajudar o exército sírio a reconquistar, em breve, a cidade de Palmira, patrimônio da humanidade agora submetido à barbárie do ISIS. O primeiro-ministro iraquiano anunciou há horas que uma possível ação dos aviões russos seria bem-vinda também em seu país. Há rumores de que a China poderia somar-se à Rússia nas ações aéreas, o que consistiria uma reviravolta de dimensões globais. Enquanto Barack Obama permanece paralisado, Vladimir Putin age: também nesta sexta-feira, ele debateu a situação síria, em Paris, com governantes da União Europeia. Num editorial publicado esta semana, “The Economist”, claramente pró-EUA, taxa o presidente russo de “ousado” e o norte-americano de “vacilante”.
Como Putin, visto até há pouco no Ocidente como um pária, foi capaz de tanto? Em seu editorial desta semana, publicado a seguir, “The Nation”, a mais antiga revista semanal norte-americana, aponta pistas. Ligada à esquerda liberal norte-americana, a publicação sustenta: Washington acreditou por muito tempo que poderia controlar o Oriente Médio como desejasse. Afirmou combater o ISIS, mas sua suposta ação não produz efeito algum. Permitiu que seus aliados – Turquia e monarquias do Golfo Pérsico – financiassem os ultra-fundamentalistas e perseguissem as guerrilhas curdas que os combatem. E, principalmente, apostou numa política que visa destruir os Estados árabes, o que já projetou no caos na Líbia, Iraque, Yêmen, Afeganistão.
Negligenciada pelos jornais brasileiros, a crise síria é um acontecimento de relevância global. A onda de refugiados que ela provocou espraia-se pelo mundo. No Oriente Médio, ela já ameaça espalhar-se por Líbano, Jordânia e Turquia. É esperançoso perceber que a potência que a atiça pode ser freada; e que os resultados desastrosos desta potência já sejam pesados no interior de suas próprias fronteiras. (A.M.)
A crise dos refugiados que agora acossa a Europa, onde centenas de milhares de migrantes desesperados infiltram-se por múltiplas fronteiras, abriu fissuras profundas na União Europeia (UE). A crise ameaça dividir o bloco, mas sua natureza é global e suas raízes estão fincadas em décadas de conflito, do Afeganistão à Somália e à Eritreia; nos múltiplos levantes decorrentes das revoluções árabes, da Líbia ao Yêmen; e na instabilidade regional e extremismo provocados pela invasão e ocupação norte-americana e pela destruição do Iraque. Mas a maior fonte de refugiados que inunda a Europa agora a Síria. Isso exige repensar não apenas a estratégia da UE e dos EUA para refugiados, mas também sua posição diante da guerra civil.
Cerca de metade da população síria – quase 12 milhões de pessoas – foi deslocada, depois de quatro anos de conflito brutal. Houve 300 mil mortes e mais de 4 milhões de pessoas tiveram de fugir de seu país. Segundo o Alto Comissariado da ONU para Refugiados, o enorme aumento no número de sírios que fogem para a Europa este ano tem muitas causas, sendo a principal delas a desesperança em relação a uma saída para a crise, combinada com redução constantes do apoio aos campos de refugiados na Turquia, Líbano e Jordânia. O atual plano das agências da ONU para ajuda recebeu, em 2015, menos de 40% de seu orçamento e alguns países fronteiriços à Síria impuseram rígidas restrições ao emprego dos refugiados.
A catástrofe humanitária desencadeou novas demandas às potências mundiais, para que se empenhem em resolver a guerra civil – e a sessão da Assembleia Geral da ONU, em setembro, foi um momento oportuno para fazê-lo. E de fato, diplomatas dos EUA e da Rússia expressaram vontade crescente de cooperar na resolução da crise. Washington e Moscou disseram compartilhar um objetivo comum: frear o extremismo e alcançar a estabilidade na Síria e no Iraque. Mas os discursos opostos dos presidentes Obama e Putin expuseram mais uma vez as divisões profundas entre os dois países.
Tais divisões refletem e são agravadas pela divisão sectária no Oriente Médio, na qual a Arábia Saudita e outras monarquias do Golfo Pérsico, juntas com a Turquia, ofereceram armas e ajuda para as milícias que combatem o governo do presidente Bashar al-Assad, enquanto a Rússia, o Irã e a guerrilha do Hezbolá ampliaram seu suprimento de armas, ajuda e conselheiros – além de tropas terrestres, no caso do Hezbolá – ao governo de Assad. Agora, Putin ampliou a aposta, ao anunciar uma acordo de compartilhamento de informações entre a Rússia, Irã, Iraque e Síria. Embora tenha o objetivo alegado de combater o Estado Islâmico (ISIS), o compromisso parece oferecer um escudo ao governante sírio. Dois dias após o discurso de Putin, a Rússia iniciou seus ataques aéreos.
Ainda que o conflito pareça intrincado como sempre, há medidas concretas que os países poderiam tomar, individual ou coletivamente, para aliviar a agonia, enquanto renovam conversações para uma solução negociada. Primeiro, as Nações Unidas e as agências internacionais de ajuda precisam de um aumento substancial de seu financiamento. As potências globais podem discordar sobre como resolver o conflito, mas nada as impede de enfrentar a crise humanitária, que ameaça agora a estabilidade da Jordânia (que abriga 600 mil refugiados), do Líbano (mais de 1 milhão) e da Turquia (cerca de 2 milhões). Além disso, os Estados Unidos e os países europeus precisam ampliar, muitas vezes, o número de refugiados a que oferecem asilo. Os EUA poderiam facilmente absorver ao menos 100 mil – muito mais que o pálido aumento anunciado pelo governo de Obama.
Já a política global dos EUA em relação à Síria chegou a um beco sem saída. A campanha de ataques aéreos iniciada há mais de um ano foi incapaz de impedir o avanço do ISIS, e o esforço norte-americano para treinar e apoiar um exército sírio “moderado” em oposição ao regime, para complementar os ataques aéreos, desabou. Embora os curdos, ao norte, tenham demonstrado ser aliados úteis contra o ISIS tanto na Síria quanto no Iraque, o mesmo não pode ser dito dos aliados sunitas de Washington. Eles continuam a perseguir seus interesses particulares, com a Turquia mais focada em atacar os curdos que o ISIS, enquanto a Arábia Saudita e as monarquias do Golfo Pérsico continuam a financiar os grupos jihadistas na Síria, embora finjam somar-se à guerra contra o ISIS.
Para evitar uma catástrofe ainda maior, o governo norte-americano precisa rever de maneira decisiva sua rota e tomar o único caminho que oferece uma chance plausível de estabilizar a Síria e, ao final, derrotar o ISIS e outros grupos islâmicos radicais. Este caminho implica, primeiro, reconhecer que não há uma solução militar, e que a ação militar na verdade impede o avanço da diplomacia. Além disso, os EUA precisam caminhar para uma solução que inclua todas as partes envolvidas no conflito: o governo sírio, o Heollah e as diversas forças rebeldes e grupos civis de oposição; as potências regionais, inclusive o Irã, a Turquia e as monarquias do Golfo; assim como países com a Rússia e outros membros permanentes do Conselho de Segurança da ONU. A única exceção deveria ser o ISIS – que, além de praticar um niilismo teatral e assassino, rejeita, por princípio, a própria ideia de negociações.
O Comunicado de Genebra 2012 – resultado de uma conferência iniciada naquele ano pela ONU e pelo enviado da Liga Árabe, Kofi Annan, da qual participaram EUA, Rússia, China e Grã-Bretanha – nasceu morto, antes de tudo em função de desacordos sobre o status de Assad e a definição do que seria “transitar” para um governo mais representativo. Em 2014, a conferência de Genebra que deveria fazer um balanço dos resultados, fracassou devido a uma disputa sobre se o Iraque poderia participar. As partes devem agora reiniciar estas conversações, evitando ultimatos, exclusões ou exigências absurdas sobre o status de Assad. Enquanto isso, precisam afunilar seus desacordos para tentar chegar a uma transição viável, num país agora devastado e profundamente traumatizado pela guerra civil.
Em seu discurso na ONU, Putin pode ter parecido belicoso, ao insistir na legitimidade do regime de Assad. Mas esta postura eclipsa uma antiga posição russa, segundo a qual o destino de Assad é menos importante que a necessidade de assegurar que qualquer transição resulte num Estado governável. Putin está correto, ao frisar que a remoção violenta de ditadores, sem manter estruturas governamentais viáveis para substituí-las – o que ocorreu com Kadafi, na Líbia, e Hussein, no Iraque – provocou caos e extremismo. Por outro lado, Obama está certamente correto ao insistir que a brutalidade do regime de Assad “não envolve apenas assuntos internos de um país – ela provoca sofrimento humano numa magnitude que afeta a todos nós”. E é certamente razoável, para Obama, propor “uma transição negociada de Assad para um novo líder e um governo inclusivo”
As partes presentes numa futura conferência precisam concentrar-se em caminhos criativos para reduzir as divisões entre si mesmas, enquanto dão outros passos para desradicalizar o conflito. Estes passos intermediários deveriam incluir apoio a tréguas locais, como as recentemente firmadas nas províncias de Zabadani e Idlib. Um segundo passo deveria ser uma cooperação mais profunda entre todas as nações, para bloquear o recrutamento por extremistas da jihad, em particular o ISIS. Um terceiro passo seria um embargo no fornecimento de armas – de preferência, negociado no conselho de Segurança da ONU. Pode parecer, hoje, uma possibilidades distante, dadas as ações recentes da Rússia para fortalecer sua base militar em Latakia e ampliar o fluxo de armas para o governo de Assad, sem falar no contínuo suprimento de armas para grupos opositores, tanto moderados quanto jihadistas. Mas um embargo construído conjuntamente por Washington, Moscou e outras nações do P5, além das monarquias do Golfo, do Irã e da Turquia – é uma necessidade e precisará ser respeitado por todos, inclusive as forças do governo e da oposição.
Está na hora da Casa Branca comprometer-se com uma relação de trabalho mais séria com Moscou. Agora, Washington não precisa apenas reorientar suas atividades da guerra para a diplomacia; deve também esforçar-se para chegar a um acordo com a Rússia, em que ambas as partes pressionem seus aliados na região para desescalar o conflito. Washington deveria notificar seus aliados de que os Estados Unidos não continuarão a fazer vistas grossas ao contínuo apoio dado pela Turquia e pelas monarquias do Golfo Pérsico aos grupos extremistas que ameaçam tanto a Síria quanto o Iraque. A Casa Branca deveria também resistir às demandas beligerantes de ação militar lançadas tanto por republicanos quanto por alguns falcões democratas. Em vez disso, seria proveitoso responder afirmativamente ao Jim Himes, deputado por Connecticut que, com o apoio de mais de 50 outros membros do Congresso, pede ao presidente Obama que lidere esforços diplomáticos para alcançar um fim negociado da guerra civil e forjar uma campanha coordenada contra o ISIS.
Alguns objetarão que este plano de ação contém o risco de fortalecer o regime de Assad e desamparar, no conflito, os aliados sunitas dos EUA. Mas todo esforço deveria ser feito para dar à Turquia, Arábia Saudita e outras monarquias do Golfo a oportunidade de participar. E todo esforço deveria ser feito para estabelecer bases de um acordo que conduza a um governo mais amplo e mais inclusivo na Síria. Dada a profundidade da destruição da Síria, um acordo final pode exigir uma robusta força de paz da ONU, similar às que foram formadas nos casos do Camboja e Bósnia.
Os Estados Unidos deveriam ter aprendido, nos últimos quatro anos, que lançar exigências inflexíveis só produziu mais extremismo, mais guerra e mais tragédia na região. É hora de tentar outro caminho.