São Paulo vivencia as pedaladas da cidadania

Depois de uma onda de críticas com algum eco em parte da imprensa paulista, que alimentava uma suposta indignação de setores da sociedade para os quais somente o automóvel é sinônimo de mobilidade, a ciclovia no canteiro central da Avenida Paulista foi finalmente inaugurada em 28 de junho. O ato resultou na ocupação da famosa avenida por uma correnteza de bicicletas.

criança de bicicleta na ciclovia - Reprodução

Por mudar a paisagem e a funcionalidade viária de um dos cartões-postais e centros de efervescência de São Paulo, o gesto tem também um valor emblemático para a política de mobilidade tocada pela gestão de Fernando Haddad (PT). O próprio prefeito se disse surpreso com a reação inicial ao seu projeto de chegar aos 400 quilômetros de faixas exclusivas para ciclistas ainda este ano. Ele esperava mais chiadeira com as faixas destinadas aos corredores de ônibus.

“Acho que existe uma obsessão da imprensa com as ciclovias. Achei que a mídia fosse ser mais contra as faixas de ônibus, achei que fosse haver mais resistência. Mas com as ciclovias todo mundo esqueceu as faixas de ônibus”, disse Haddad a um seleto público presente a uma aula sua intitulada São Paulo, Cidade Inteligente, na organização Casa do Saber, dias antes da inauguração da ciclovia. A resistência a que se refere chegou até mesmo a contar com liminar expedida pela 5ª Vara de Fazenda Pública, em março, determinando a paralisação da construção dessas vias na cidade, à exceção da Paulista.

A resistência é também preocupação dos cicloativistas, que têm como causa uma mobilidade menos escravizada pelo automóvel. “No nosso entendimento, essa resistência já caiu muito, especialmente com a ciclovia da Paulista”, afirma Daniel Guth, diretor de participação da Ciclocidade, associação que luta pela promoção do uso da bicicleta e seus benefícios ambientais e até mesmo sociais, já que sobre duas rodas há mais inclusão na mobilidade.

Um dos últimos lances da resistência midiática às ciclovias foi dado pelo jornal Folha de S. Paulo, que duas semanas antes tentava pôr água no chope da festa da Paulista. Tanto jornal impresso como internet produziram matérias “tendenciosas e depreciativas”, na avaliação dos cicloativistas, contra a ciclovia, privilegiando o ponto de vista dos defensores do automóvel. “O jornal optou deliberadamente por não incluir a opinião e a visão dos ciclistas e de especialistas em mobilidade, contemplando apenas a visão estreita e limitada de engenheiros ouvidos pela reportagem. Isso mostra que o jornal não se interessa em dar voz aos principais beneficiados pela obra”, protestou a Ciclocidade em sua página na internet.

Fumaça

Atualmente, os automóveis em São Paulo concentram 29% das viagens a cada dia, mas ocupam 79% do espaço viário da capital, composto por cerca de 15 mil quilômetros. Mas toda a discussão em torno das ciclovias e, de quebra, das faixas de ônibus teve o aspecto positivo de amplificar o debate sobre mobilidade e inclusão. Para Daniel Guth, existe uma profunda desigualdade social na cidade.

Se de um lado as ciclovias abrem a perspectiva de inclusão no transporte, de outro a sua consolidação requer o enfrentamento do que Guth chama de privilégios. “Os setores mais retrógrados, ainda com base no velho modelo ‘rodoviarista’, mantêm privilégios adquiridos ao longo dos anos que foram incorporados como direitos, como estacionar na rua em qualquer lugar da cidade”, afirma, destacando que se trata de um “privilégio tosco”. Ele diz que “quando você questiona esse modelo, que perdura há quase um século, de uma cidade orientada pela lógica do motor, quando você traz isso para a escala humana, por meio da consolidação de um sistema cicloviário, é natural que haja resistência desses setores que estão em risco de perder tais privilégios”.

Mais do que uma simples ligação entre seus extremos, a ciclovia da Paulista deve inaugurar uma nova etapa nesse debate, já que ela tem forte apelo simbólico e deve se tornar cartão-postal do cicloativismo na cidade, em um espaço que era de risco para os bikers, onde pessoas perderam a vida tentando exercer uma mobilidade inclusiva e sustentável. Foi o que aconteceu em março de 2012 com a bióloga Juliana Dias, atropelada por um ônibus quando ia para o trabalho no hospital Sírio-Libanês. Outro caso foi o do pintor David Santos Souza, que perdeu o braço direito ao ser atropelado por um motorista, o então estudante de Psicologia Alex Siwek, em março de 2013. Além de fugir, Siwek jogou o braço preso ao carro em um córrego nas proximidades da Avenida Ricardo Jafet, na zona sul, cerca de cinco quilômetros depois.

Agora, as perspectivas mudam. “A foto da mobilidade urbana em São Paulo vai ser a avenida Paulista às 18h, com os carros travados e um monte de ciclistas circulando felizes ali no meio. Isso vai ser o maior tapa na cara da mobilidade urbana da cidade para mostrar que a bicicleta agora está sendo retomada com mais força”, afirma Guth. Ele acredita que até 2030, prazo de alcance do Plano de Mobilidade de São Paulo, o PlanMob/SP-2015, feito com base na Lei federal nº 12.587/2012, que estabelece metas de reformulação de mobilidade urbana, de 10% a 15% das viagens na cidade devam ser feitas de bicicleta. Hoje, esse número está em torno de 1%, mas, segundo o cicloativista, o dado é impreciso e subestimado pela principal pesquisa de mobilidade na cidade, a Pequisa Origem-Destino, que a Companhia do Metropolitano (Metrô) realiza a cada dez anos.

“A pesquisa subdimensiona o número de bicicletas porque só considera os transportes principais. Então, quem vai para uma estação de trem ou de metrô de bicicleta e para num bicicletário fica fora da pesquisa”, avalia. “Nos nossos cálculos o crescimento ano a ano dos usuários de bicicletas tem sido exponencial. Esse número ficará muito maior a partir da infraestrutura, que induz demanda, e o crescimento nos próximos anos será enorme”, acredita. “É preciso mudar a metodologia da pesquisa para ter melhores dados sobre o uso de bicicleta.”

Outra estatística

A Ciclocidade faz contagem de ciclistas a cada dois anos na Paulista, que tem uma demanda atual de mil ciclistas por dia, entre 6h e 20h. A ciclovia da Avenida Eliseu de Almeida, na zona oeste, segundo Guth, também é um caso interessante de contagens que a associação faz. “Em 2010, quando não havia a ciclovia, nós tínhamos 561 ciclistas utilizando aquela via. Agora, com a ciclovia recém-entregue, esse número já passou para 1.245.”

Esses dados confirmam a tese de que a infraestrutura induz demandas, posição também compartilhada pelo prefeito. Guth nota que nesses cinco anos o número de mulheres que usam o corredor da Eliseu de Almeida aumentou 1.400%. “Quando você tem mulheres, crianças e pessoas de idade usando, isso mostra que aquela infraestrutura está garantindo a segurança e faz sentido para a cidade, pois está incluindo mais pessoas. É um bom sintoma”, observa.

As contagens da Ciclocidade também apontam para o crescimento de ciclistas em outros pontos da cidade. Com essa tendência de crescimento mostrando cada vez mais fôlego, Guth afirma que o desafio para o futuro é garantir que a política em favor da mobilidade sobre duas rodas se torne uma política de Estado para que em qualquer gestão seja mantida e ampliada.

Outro desafio para o uso da bicicleta como meio de transporte está na indústria, que de um lado opera com alto índice de informalidade e, de outro, não tem recebido do governo federal a mesma atenção dedicada ao setor automobilístico, com isenções tributárias. “Estou batalhando por isso aí”, diz Haddad em relação aos imposto sobre as bicicletas, que são mais altos do que sobre os veículos motorizados. Enquanto as bicicletas recolhem 40,5% de impostos, os veículos são tributados em 32%.

O desafio da convivência entre carros e bicicletas em diversas cidades no mundo é o tema do documentário Bikes vs Carros, do diretor sueco Fredrik Gertten, lançado em 18 de junho no Brasil. O filme traz a experiência de se deslocar sobre duas rodas em São Paulo, Los Angeles (Estados Unidos), Toronto (Canadá), Copenhague (Dinamarca) e Bogotá (Colômbia), entre outras. Curioso entre essas experiências é que enquanto Copenhague e Bogotá investem no transporte sustentável, Toronto se curva à lógica do automóvel e desativa ciclovias já existentes na cidade, seguindo na contramão do que deveria ser uma tendência mundial.

A cicloativista Aline Cavalcanti, que participa do filme e vive em São Paulo, afirma que o documentário coloca em perspectiva o que tem acontecido em algumas cidades ao se priorizar o uso do carro, em detrimento do transporte público. “Não é apenas um filme para quem anda de bicicleta e é cicloativista, mas para quem também é interessado em transporte, em cidades, em deslocamento e mobilidade. Recomendo para quem está envolvido nesses temas ou tem interesse em saber o que acontece na cidade”, afirma.

Chama atenção no documentário o caso de Los Angeles. A cidade do estado norte-americano da Califórnia já teve o melhor sistema de transporte público do mundo, mas hoje 70% de sua área são dedicados a rodovias e estacionamentos. Uma ciclovia que facilitava o acesso ao centro da cidade no passado hoje está abandonada. Desde os anos 1940, as empresas do setor automobilístico compraram as empresas de transporte público para desmobilizá-lo. Apesar disso, os deslocamentos de bicicletas cresceram 50% em uma década, e hoje 0,8% das pessoas na cidade usam as bikes.

Copenhague mantém mil quilômetros de ciclovias. Quatro em cada cinco habitantes têm bicicleta. Há mais pessoas se deslocando de bicicleta na capital da Dinamarca do que nos Estados Unidos, mostra o filme, propondo o tempo todo reflexões sobre os impactos das opções de mobilidade feitas pelas pessoas

Reações distintas

No Brasil, enquanto São Paulo trabalha para consolidar sua malha cicloviária e setores conservadores esbravejam, algumas cidades já colhem frutos de ter realizado a opção pelo transporte alternativo. Isso, no entanto, não as isenta de problemas. O Rio de Janeiro, com 380 quilômetros de ciclovias, tem o maior sistema da América Latina. Foi nos anos 1990 que a administração da cidade começou a pensar no desenvolvimento do sistema cicloviário.

Até o próximo ano, quando serão realizados os Jogos Olímpicos na cidade, o sistema deverá se expandir para 450 quilômetros, e também correções precisam ser feitas para conferir mais segurança aos ciclistas, principalmente em alguns pontos de conflitos com automóveis. Isso, no entanto, não tem impedido que a cidade receba reconhecimento internacional entre as que são mais amigáveis para a bicicleta. Mas, como nem tudo é perfeito, e a exclusão no país se reproduz em cada aspecto da cultura e da economia, permanece para a cidade o desafio de levar as ciclovias para os bairros mais pobres, como a zona norte, que apresenta apenas 28 quilômetros dessas vias. As ciclovias no Rio estão mais concentradas onde a população tem maior poder aquisitivo, como as zonas oeste e sul, e o centro.

Brasília também investiu em ciclovias e a capital federal não sofreu tantos problemas de disputa de território, devido ao fato de ter nascido sob um modelo de planejamento urbano e de ocupação expandido. Apesar disso, a adesão do brasiliense às ciclovias é relativamente pequena. “Lá não houve resistência porque a cidade fez um sistema cicloviário que era para não atrapalhar ninguém, mas também não atende ao ciclista. E isso não resolve nada. Brasília tem terrenos abertos aos montes e eles colocaram a ciclovia onde não atrapalha e isso completou os 400 quilômetros que eles queriam”, afirma Daniel Guth. Ele também destaca que os cicloativistas estão lutando para melhorar o sistema. “Ter de consertar ou refazer é pior”, afirma.

Em Curitiba, as críticas ao sistema cicloviário recaem sobre a falta de compromisso político com o transporte alternativo. Apesar de seus 127 quilômetros de ciclovias resultarem de um esforço que existe há quatro décadas, o número de ciclistas na cidade cresce em proporção tímida. De 2008 a 2013, esse crescimento foi de apenas 8%, enquanto em outras cidades a modalidade de transporte ganha adesões expressivas, como em São Paulo. Apesar disso, a capital paranaense desponta entre as cidades no país que oferecem os maiores sistemas cicloviários a seus usuários.

No Nordeste, capitais como João Pessoa e Aracaju também incorporaram as ciclovias à sua rotina. E o mais interessante aspecto desses desenvolvimentos é o diálogo permanente que as prefeituras estabelecem com a população para dar efetividade aos projetos. Em São Paulo, isso também vem acontecendo, e graças à interação a capital paulista está tirando o atraso na área. “Conseguimos junto com o prefeito e com o secretário de Transportes, Jilmar Tatto, consolidar um espaço de diálogo permanente. É a câmara temática, vinculada ao Conselho Municipal de Trânsito e Transporte, para onde levamos as questões que preocupam, como problemas de interligação de ciclovias, de manutenção, sinalização”, afirma Daniel Guth.

Para os cicloativistas, a própria Avenida Paulista resulta de uma demanda histórica, e não de um projeto pontual. Por parte dos ciclistas, foram anos e anos de ofícios, petições, até um projeto básico de faixa exclusiva. A prática dá consistência à reação dos cicloativistas às críticas baseadas no senso comum, como observa Guth. “Quando alguém diz que ciclovia ‘do Haddad’ é uma loucura dessa gestão, não é. É desconsiderar tudo aquilo que a sociedade já acumulou, batalhou para que saísse do papel. Dizer que é loucura é incorrer em um equívoco histórico. Há pessoas que perderam suas vidas lutando para que a ciclovia saísse do papel, então, é uma leviandade dizer que é um delírio dessa gestão.”