Entrevista com Eduardo Cunha: " O racismo aqui é bastante sutil"
O documentário "Negro lá, negro cá" conta a história de luta e resistência de quatro africanos que vieram tentar a vida em Fortaleza.
Publicado 06/07/2015 10:53 | Editado 04/03/2020 16:25
Foto: Thaís Mesquita
O Vermelho entrevistou o jovem diretor, cineasta e fotógrafo Eduardo Cunha. Recém-graduado em Publicidade e Propaganda pela UNIFOR, Eduardo apresentou como Trabalho de Conclusão de Curso o Documentário “Negro lá, negro cá”, e terá o filme exibido na 5ª edição do SERCINE – Festival Sergipe de Audiovisual, previsto para outubro deste ano.
O “Negro lá, negro cá”, que conta a história de luta e resistência de quatro africanos que vieram tentar a vida em Fortaleza, traz à tona a temática do racismo e nos leva a refletir sobre o tema e sobre como lidamos com ele no nosso dia a dia.
O documentário revelou o nome de Eduardo Cunha para os cearenses, mas o jovem – que começou a mexer numa máquina fotográfica meio por acaso -, já vem desenvolvendo trabalhos na fotografia e no audiovisual há pelo menos quatro anos, entre freelas e autorais. Conheça o jovem Eduardo Cunha:
Vermelho: Como iniciou seus trabalhos com artes visuais?
Eduardo Cunha: Eu comecei através da fotografia já durante a minha graduação em Comunicação Social. Sempre via um amigo (Txai Costa) fotografar e, aos poucos, fui perguntando e mexendo na câmera dele. Até hoje são quatro anos estudando, filmando e fotografando, entre trabalhos próprios e freelas que faço. Antes eu não gostava de ser fotografado (ainda tenho um pouco de resistência) nem de fotografar muito, principalmente em festas de família. Quando vi trabalhos como o do Tiago Santana, do Chico Gomes, do Celso Oliveira, do José Albano, foi como se me despertasse a vontade de fazer igual. Convivendo com alguns amigos que também estavam iniciando os estudos com fotografia só me fez amplificar essa vontade. Entre eles, gostaria de citar o Pedro Cela, o Alan Uchoa, o Txai Costa e a Thaís Mesquita. Todos daqui do Ceará.
Vermelho: Como devemos nos dirigir a você: Fotógrafo? Cineasta? Roteirista? Diretor? Multifacetário?
EC: Sinceramente, eu tenho uma dificuldade com certos rótulos. Apresentar-me como fotógrafo, cineasta, ou o que seja, trás uma carga muito grandepara as minhas costas. Tanto no sentido de certos conhecimentos que eu devo ter para ser chamado como tal, quanto no sentido de experiência para afirmar de boca cheia que eu sou isso ou aquilo. Gosto de comparar com a música. Eu, por exemplo, cheguei a tocar guitarra durante um tempo, mas, nem de longe, me considerava músico. Com a repercussão do "Negro Lá, Negro Cá" talvez eu tenha começado esse caminho para ser, de fato, cineasta ou diretor. Dos termos utilizados até agora somente o de roteirista que não me sinto confortável. Meu roteiro é feito na edição. Normalmente não escrevo muito antes de definir como vou montar um filme e me considerar roteirista talvez fosse até uma ofensa aos que trabalham com o roteiro audiovisual tradicional.
Vermelho: Você mudou o formato do seu TCC de fotografia para documentário, certo? Por qual motivo?
EC: Essa decisão foi, de certa forma, dolorosa pra mim. Eu estava num momento de muito foco em trabalhos fotográficos. Meu pensamento inicial para esse projeto era fazer uma pesquisa para, a partir do material captado, elaborar um ensaio fotográfico e talvez até uma publicação impressa. Através da definição do tema do TCC, o professor Wilton Martins, meu orientador, viu que um documentário audiovisual seria o melhor meio para tentar organizar e potencializar uma discussão sobre o racismo aqui em Fortaleza.
Vermelho: Sua visão mudou depois da produção do “Negro lá, negro cá”?
EC: Mudei completamente depois de fazer o filme. Pude ver mais de perto, e mais claramente, o tipo de racismo presente aqui no Brasil. É algo que já tomou conta das instituições e da forma como nos organizamos. O racismo aqui é bastante sutil, o que leva muitas pessoas a desprezarem a importância de se debater o assunto. O filme foi feito no intuito de se tornar uma ferramenta que facilite a reflexão sobre como nós somos racistas. Gosto de fazer a comparação do filme com uma cadeira, ou um objeto qualquer, em chamas. De longe podemos nos dar conta de que aquele fogo pode ser prejudicial para nós. Algumas pessoas podem não perceber e precisar chegar mais perto para sentir o calor do fogo e entender o risco que ele pode representar. Outras pessoas, mesmo estando perto, podem não se dar conta e só perceberem a agressividade do fogo quando se queimarem. Aí elas estarão tendo a experiência mais intensa possível. O "Negro Lá, Negro Cá" quer fazer com que as pessoas se aproximem do fogo e entenda o quanto ele pode ser agressivo.
Vermelho: Seu documentário deixou de ser um trabalho meramente acadêmico. Quais os passos dele até aqui?
EC: Pude participar de exibições e debates sobre o tema que me fizeram, inclusive, esclarecer algumas coisas e colocar certas ideias para frente. Até então são oito exibições: Mostra à Luz da Prata – Centro Cultural Banco do Nordeste (2015), Grupo de estudos Tensões Raciais Contemporâneas – Universidade Federal do Ceará (2015), XV ENCONTROS de CINEMA de VIANA – Portugal (2015), VII Mostra Unifor de CinEMA – Universidade de Fortaleza (2015), Quarta Cultural – Universidade da Integração Internacional da Lusofonia Afro-Brasileira – UNILAB (2015), Semana Cultural Africana – Universidade Federal do Ceará (2015), Academia Afrocearense de Letras – AAFROCEL (2015) e no programa Diário de Cinema – TV Diário (2015).
Vermelho: E quais os próximos passos do “Negro lá, negro cá”?
EC: Recentemente o filme foi selecionado para o 5º SERCINE – Festival Sergipe de Audiovisual que acontece em outubro desse ano (2015). Fiquei bastante contente com a seleção no SERCINE. Foram mais de 300 inscritos e apenas 50 selecionados. Na categoria do "Negro Lá, Negro Cá" são 25. Também inscrevi para outros festivais nacionais, mas ainda estou aguardando os resultados.
Vermelho: Você formou um Coletivo com os amigos do audiovisual. Conta pra gente como a amizade virou trabalho.
EC: O surgimento do 202B foi algo muito natural. Somos amigos que nos reuníamos para conversar sobre fotografia, música, filmes e quase tudo. Aos poucos, sentimos a necessidade de criar algo para dar vazão às nossas conversas e inquietações, foi aí que surgiu o grupo e o site (202b.net). O nome é o número do apartamento em que nos encontrávamos. O apartamento era do Txai Costa, que já não faz mais parte do grupo e também não mora mais no mesmo lugar, mas continua produzindo individualmente. Estamos em um momento de bastante atividade no 202B, criando com o que já temos e conhecendo novas formas e ferramentas. O Saulo Tiago, por exemplo, está fazendo agora um curta de animação através de um projeto do Diego Akel, animador cearense, e essa troca tá sendo muito bacana. No começo éramos quatro integrantes e atualmente o grupo é composto por mim e mais dois: Pedro Cela e Saulo Tiago.
Vermelho: Quais os novos projetos (individual e com o Coletivo) em mente? Algum em execução?
EC: Vários em mente. O mais próximo de ser finalizado é um documentário que eu e o Pedro Cela estamos montando sobre o Becco do Cotovelo, um lugar no centro histórico de Sobral-CE. Ele é parte de algo maior, um projeto que está em desenvolvimento chamado por nós (202B) de "Fotozine de Bolso". Serão publicações multimídia sobre lugares ou movimentos culturais, a princípio, do Ceará.Em julho filmaremos, em Camocim, um documentário que será dirigido pelo Pedro Cela. Será um filme sobre a construção de botes artesanais através do universo em volta do mestre carpinteiro Chico Elías. E, motivado pela pesquisa feita no "Negro Lá, Negro Cá", estou em fase de pesquisa para a realização de um filme sobre os penteados das africanas que estão morando aqui no Ceará. Além daqui de Fortaleza, fiz alguns contatos em Redenção e pretendo começar as filmagens em agosto e finalizar o filme até dezembro de 2015.
Mariana Cunha,
Especial para o Vermelho.