André Vltchek: Ser russo
Está quebrada a confiança entre o ocidente e a Rússia. Já estava abalada há bastante tempo, mas agora está irreversivelmente quebrada. Boa coisa, que confiança poderia haver entre o imperialismo fascista e as forças que hoje lutam para libertar a humanidade?
Por André Andre Vltchek, em Counterpunch *
Publicado 13/05/2015 12:29
Não é difícil enganar o povo russo. É preciso pouco para ganhar-lhe a confiança; às vezes um sorriso, meia dúzia de palavras carinhosas, algumas promessas e juras feitas com sinceridade. Os russos podem ser facilmente “comprados” com gentileza. São povo confiante, vulnerável.
Se abordados com ternura e simpatia, eles logo abrem o coração, partilham até o último pedaço de pão com quem tenha fome, oferecem a camisa do corpo a quem tenha frio.
Chegue-se a um russo com promessa de amor eterno, devoção, simples amizade, que seja, e as chances são de que todas as portas se abram para você e as defesas caiam.
Talvez, algum dia, ele ou ela lhe peça: “Por favor, nunca, nunca me atraiçoe”. Mas ninguém lhe pedirá garantias, nenhum compromisso por escrito, nenhuma assinatura em contrato.
Por causa dessa confiança e abertura, morreram milhões, dezenas de milhões de russos!
Os russos deram ao mundo tudo que tinham. Os russos lutaram pela humanidade inteira. Abriram o coração e as portas. Alimentaram os que estavam em miséria extrema, muitas vezes a morrer de fome.
E no fim os russos foram traídos, não uma, nem duas, mas várias, várias vezes!
Num mundo sem espinha dorsal, baseado no individualismo, no lucro, no servilismo, é fácil, muito fácil trair alguém generoso, alguém que doa. Tiranos só muito raramente são traídos, porque a lealdade que recebem é baseada no medo, na autopreservação, nos próprios interesses mercantis.
No mundo covarde, corrupto, que o ocidente construiu e suas religiões construíram, só se obtém lealdade mediante o terror.
Apesar de horríveis traições e da selvageria contra o povo russo ao longo da história, os russos realmente jamais “aprenderam a lição”, nunca aprenderam o cinismo ocidental e jamais dominaram a arte de sacrificar outros em nome dos próprios interesses.
Todos os acordos com a Rússia foram quebrados, sempre que assim interessou aos invasores. Os escandinavos ceifaram incontáveis vidas russas, e o mesmo fizeram os alemães, franceses, poloneses, britânicos, norte-americanos e tchecos, para ficar só nesses. Os russos jamais de fato “puniram” alguém, como fazem os protestantes e anglo-saxões. Castigo é lixo puritano, basicamente. O modo russo de pensar é quixotesco demais para castigar alguém.
O Ocidente mentiu a Lênin, a Stálin, a Khrushchov e por fim, a Gorbatchov. O Ocidente agora mente a Putin e sobre Putin.
Traída, a Rússia mergulharia em inimaginável agonia, passaria por fogo e devastação, pelo desespero. A Rússia enterraria milhões de filhos e filhas. É provável que nenhuma outra nação no planeta tenha algum dia passado por devastação daquela magnitude.
Então, de repente, o país começaria a erguer-se dos joelhos, lentamente e assustadoramente, para mostrar todo o seu poder, seu tamanho, a determinação, a força. Ferida e enganada, mas orgulhosa e magnificamente bela em sua ira santa, a Rússia ergueria sua espada pesada, poria retas as costas, secaria as lágrimas e começaria a andar diretamente contra o inimigo.
As batalhas da Rússia sempre são às claras. A Rússia combate honestamente as suas batalhas. Foram derramados oceanos de sangue, a maior parte desse sangue é sangue do povo russo.
Rendição das tropas alemãs em Stalingrado
Diferente do ocidente, a Rússia não bombardeia à distância, não usa drones nem bombas atômicas para matar milhões de civis e assegurar para si a Vitória. As batalhas russas são homem a homem. São dezenas de milhares de tanques, como na batalha de Kursk, milhões de soldados, como em Stalingrado.
Ninguém jamais pôde ou pode derrotar a Rússia, porque a ira dos russos, como o amor deles, é grande e puro. A Rússia nunca foi derrotada. Seu coração ferido está cheio de amor e poesia, mesmo quando o peso de seu punho cai sobre os déspotas, usurpadores e assassinos de massa. A Rússia jamais foi derrotada, também porque quase todas as guerras que a Rússia jamais lutou foram guerras justas – guerras para salvar a vida do povo russo, mas guerras, também, pela sobrevivência de toda a humanidade.
70 anos da grande Vitória! 70 anos desde que o povo soviético salvou o mundo, quando esmagou o nazismo. 70 anos desde que o povo soviético, quase imediatamente, uniu-se a outra luta, dessa vez contra o imperialismo e o colonialismo ocidental.
20 ou talvez 27 milhões de soviéticos, principalmente russos, perderam a vida defendendo o planeta contra as hordas de Hitler. Depois, centenas de milhões de outros continuaram a dedicar a vida a construir mundo melhor, mais igualitário.
Sem a União Soviética, sem o povo russo, não haveria liberdade, não haveria independência para países asiáticos, africanos e do Oriente Médio. Sem os soviéticos não teriam sido possíveis as revoluções na América Latina.
Por isso o ocidente tanto odiou a União Soviética e é por isso que tanto odeia hoje o povo russo. O ocidente perdeu colônias, perdeu a guerra da propaganda e perdeu o monopólio que tivera, para definir tudo sob o sol.
Só imbecis podem responder as mais tóxicas mentiras da propaganda ocidental, que comparam a Alemanha nazista à União Soviética stalinista. Sobre isso, escreverei em breve. O nazismo só se compara ao imperialismo europeu e norte-americano, ao colonialismo. Nazismo e colonialismo são feitos do mesmo estofo. E a União Soviética esmagou ambos, derrotou ambos! A Rússia empunha hoje a histórica bandeira soviética.
Os chauvinistas e xenófobos ocidentais lutam hoje pelo controle sobre todo o planeta, até pela sua própria sobrevivência. A menos que dividam Rússia, China e América Latina, o ocidente está acabado. Eles sabem disso! A menos que esmaguem tudo que é honesto, bom e otimista nas nações que resistem ao monstruoso regime ocidental, os dias do ocidente estão contados.
Dia 9/5/1945, o mundo todo mudou. A humanidade voltou a andar adiante. Lentamente, em ritmo desigual, frequentemente com erros e voltas, mas mesmo assim, adiante! Os grilhões coloniais começaram a ser quebrados. Pessoas de todos os continentes voltaram a sonhar com real liberdade, igualdade e a irmandade de todos os homens. Aquela bela bandeira vermelha agitada no telhado do Reichstag em Berlin tornou possíveis esses sonhos.
O povo soviético provou que dignidade humana e liberdade são valores pelos quais vale a pena sacrificar-se. A Ode a Vitória foi escrita com o sangue dos soviéticos oferecido com generosidade, e pode por isso inspirar e modelar gerações futuras.
Bandeira soviética triunfante em Berlim
Mas a ganância e o niilismo do ocidente recusam-se a morrer. Sua obsessão com controlar e saquear o mundo atingiu nível inimaginável. Todas as forças do Império foram mobilizadas. Luz e esperança foram confrontadas pela escuridão e a falsidade. Sonhos belos e puros foram antagonizados pela corrupção. Numa orgia de truques sujos e ardis, a União Soviética foi destruída.
Num único instante da história, todo o mundo oprimido perdeu seu mais poderoso aliado e defensor.
O que veio depois, foi o mais completo horror. O Império pôs-se a desestabilizar um país depois do outro: na África, Ásia, no Oriente Médio e até no ex-bloco oriental. Morreram milhões, expostos, desprotegidos, totalmente abandonados.
As hordas fascistas acreditaram que, daquela vez, haviam vencido. Em Moscou, Yeltsin, beberrão e lacaio do ocidente, começou a matar o próprio povo pelas ruas, e a bombardear o próprio Parlamento. Aquilo era “democracia”, como os jornais em Paris, Londres e New York escreveram quase imediatamente. Era tudo com que sonhava o ocidente: uma Rússia fraca e desestabilizada, de joelhos, à mercê do Império.
Viajei a Moscou e à Sibéria. Vi cientistas russos em Novosibirsk vendendo suas bibliotecas na rua, em estações de metrô, sob o frio mais intenso. Vi velhos veteranos de guerra pedindo esmolas, vendendo as medalhas. Vi trabalhadores russos passando fome, sem receber salários durante meses.
Então, alguma coisa aconteceu. A Rússia recusou-se a continuar de joelhos. Rapidamente os russos detectaram as mensagens que vinham do exterior; e viram a armadilha. O povo russo compreendeu que o que as mais horríveis invasões não haviam conseguido, as mentiras, os ardis, o jogo mais sujo do Império fascista obtivera em apenas uns curtos poucos terríveis anos.
Como tantas vezes em sua história, a Rússia teve de ou erguer-se, ou morreria. E ergueu-se. Indignada e decidida! E como sempre no passado, quando se ergueu para enfrentar o mal, enfrentou-o pelo próprio povo e também por toda a humanidade.
A Rússia reuniu-se, ao longo da última década, em torno da bandeira russa. Não é perfeita e não é tão ‘socialista’ como tantos de nós gostaríamos que fosse, mas há uma grande herança, uma inércia soviética que permanece na política externa da Rússia, assim como permanece o grande orgulho e a firme decisão de melhorar o mundo, de proteger os fracos.
70 anos da Grande Vitória! Este ano, a Rússia não celebra só esse grande aniversário. A Rússia festeja também o próprio renascimento.
Eu sou russo!
Sou russo. Nasci na Rússia, e minha mãe é meio russa, meio chinesa. Mas mesmo minha parte chinesa vem do Cazaquistão, que foi república soviética. Meu avô, Hussein, foi alto Comissário, equivalente a ministro do gabinete, chinês étnico, linguista, morreu muitas décadas antes de eu nascer.
Fui criado na Tchecoslováquia. Meu pai, cientista, mudou-se para a Europa. Desde criança vivi em New York. Depois meti o pé na estrada e não parei nunca. Hoje sou internacionalista. Mas no fundo de mim, sou russo.
Andre Vitchek
Não sei se me qualifico como russo. Menino, sempre tive passaporte soviético. Os momentos mais felizes da minha vida eram quando, ainda criança, minha mãe me levava, todos os verões, para o aeroporto de Praga, onde eu era despachado por avião, para Leningrado. Na outra ponta, minha avó me esperava.
Minha avó Elena não era só minha babushka. Minha avó Elena foi soldada, combateu contra os nazistas, defendeu aquela sua cidade bem-amada, sua Leningrado. Minha avó cavou trincheiras, enfrentou tanques alemães, e foi duas vezes condecorada. E era a mulher mais doce que conheci na vida. Ensinou-me a gostar de poesia e literatura. Contou-me centenas de histórias, algumas bonitas, outras de meter medo. Sou escritor por causa dela, escritor russo, apesar de escrever toda minha ficção exclusivamente em inglês e a maioria dos meus filmes recentes terem sido feitos em espanhol.
Quase toda a minha família russa morreu lá, em Leningrado, durante o cerco, décadas antes de eu nascer.
Todos os anos, durante os dois meses de verão, minha avó dedicava-se a mimar-me o mais que podia. Ou era o que eu pensava que ela estivesse fazendo. Hoje entendo que, para ela, era como um combate cultural, um esforço empenhado de injetar em mim tudo o que há de grande, sobre a Rússia.
Minha avó fazia economia durante dez meses, e então, quando eu chegava para visita-la, ela me levava às óperas, aos teatros, aos museus, aos parques em torno de Leningrado. Cozinhava para mim a comida mais deliciosa. E pelo menos uma vez por ano, levava-me ao Cemitério Piskarevskoe, onde a enorme estátua da Mãe Terra abre os braços: “Ninguém foi esquecido, nada foi esquecido”, lê-se em letras douradas gravadas no granito. Durante o cerco de Leningrado morreram 1,5 milhão de pessoas, muitos estão sepultados ali, em incontáveis trilhas de grandes valas comuns.
Cresci. Tornei-me escritor e cineasta; viajei pelo mundo. Mas, estivesse onde estivesse, aquelas palavras sempre me seguiram, gravadas em mim. Minha avó sempre estava comigo, ela também, e também a cidade, o sacrifício e a Vitória!
Não sei se isso faz de mim objetivamente russo. Mas sinto-me russo e ajo como russo.
Orgulho de ser russo!
Ser russo… Hoje, “russo” não é só a nacionalidade: é verbo. Significa erguer-se contra a opressão, contra o imperialismo ocidental, construir pontes entre os países que estão resistindo ao terror imperialista ocidental.
E hoje há muitos “novos russos”. Não são os mesmos da era Yeltsin, não são personagens da bufonaria capitalista. Os “novos russos” de que falo são ao mesmo tempo russos e internacionalistas. E muitos desses frequentemente não têm uma gota de sangue russo. Mas lá estão, orgulhosamente defendendo o mundo, e estão unindo forças com a Rússia, a China e a América Latina em sua luta determinada por um mundo melhor.
Conheço vários grandes russos. Alguns são camaradas, como o renomado advogado internacional canadense, poeta, novelista e pensador, Christopher Black. Como Peter Koenig, economista suíço, que deixou o Banco Mundial por total desgosto, deu meia volta a abertamente atacou o establishment. Ou como meu ‘compá’ Patrice Greanville, nova-iorquino/chileno/argentino editor-chefe do lendário “The Greanville Post”.
Essas pessoas trabalham sem parar, desmontando as mentiras que o Império espalha pelo mundo: mentiras sobre a Rússia, mentiras sobre a União Soviética, mentiras sobre a 2ª. Guerra Mundial e mentiras sobre o imperialismo ocidental.
Durante séculos, a Rússia foi apunhalada e enganada por gente de fora. Foi traída, engabelada, ofendida.
Muitos países que a Rússia libertou traíram-na da maneira mais vulgar. Tchecos e poloneses violaram monumentos aos soldados russos – aqueles jovens que deram a vida por Praga e Varsóvia no final da 2ª Guerra Mundial. A Europa Oriental abriu as portas à Otan e à União Europeia. Por egoísmo pragmático, abandonaram as mais belas ideias, os mais belos projetos – entre os quais o internacionalismo – e, em vez disso, uniram-se aos opressores da humanidade – o Império.
Quanto mais esses países prostituem-se, mais agressivamente berram os slogans da propaganda ocidental, insultando diretamente e provocando, primeiro a União Soviética, mais recentemente, a Rússia. Lacaios lastimáveis e avarentos, e colaboradores do imperialismo ocidental têm buscado, desesperadamente e continuadamente, qualquer justificativa moral para a traição que cometeram. Distorceram a história e inventaram fatos. Desencadearam agressões contra os que defendiam as partes e os povos usurpados e saqueados do mundo.
Recentemente, o ocidente disparou o conflito na Ucrânia, onde ajudou a derrubar o governo eleito em Kiev. Na sequência, imediatamente, puseram-se a alimentar os mais histéricos sentimentos anti-Rússia. Quanto mais óbvia se tornava a situação, mais altas as vozes do pacto anti-Rússia, tanto na Europa Ocidental, como Oriental.
Ucrânia, Síria e Líbia – todos esses conflitos provaram que nenhuma lógica consegue prevalecer. O ocidente quer destruir todos os países que apareçam no seu caminho rumo ao controle global total, e tentará alcançar sua meta macabra por todos os meios. O aparelho de propaganda está sempre pronto para “justificar” qualquer ato de terrorismo cometido pelos EUA e Europa. Nenhum mecanismo internacional legal há, para proteger as vítimas.
Só uma grande força pode impedir a tragédia. A Rússia é essa força. A China também. E por isso o Império está em pânico ante o despertar desses dois grandes países.
Brics versus EUA
Sim, dessa vez, depois de tantos séculos de dor e sofrimento, a Rússia afinal não está só. Está forte e alta, e pode afinal contar com seus amigos. Algumas das maiores cabeças do planeta estão únidas com Rússia e China. Esqueçam a Europa Oriental! O maior e mais poderoso país do planeta – a China –, repete e repete: “China e Rússia são os mais importantes parceiros estratégicos uma da outra”. É claro que não permitirão que o que está planejado seja comido pelas chamas da guerra.
Toda a América Latina revolucionária está hoje com a Rússia, e também estão com a Rússia dúzias de outras nações independentes e orgulhosas por todo o mundo.
No Oriente Médio e na África, na América do Sul e em muitas partes da Ásia, a Rússia é cada dia mais vista como uma poderosa força moral. Rússia é sinônimo de esperança. Não para os que creiam em EUA e Europa, mas para todos que, por séculos sofreram sob o peso do tacão deles.
Em todos os lugares onde falo publicamente, na Eritreia ou na África do Sul, na Índia, na China, até no Timor-Leste, as pessoas só querem saber da Rússia. O que a Rússia fará agora, para impedir mais ataques contra a Síria, ou o Irã, ou contra a Venezuela?
Respondo sempre que “a Rússia está viva e vai bem. E também estão vivos e bem os amigos da Rússia, da China à Venezuela e Cuba!”.
Nunca perco a esperança. Repito: eu sinceramente creio que logo derrotaremos o colonialismo e o fascismo, e construiremos uma bela sociedade sobre esse planeta coberto de feridas e cicatrizes, mas sempre maravilhoso. E ela será criada sobre os mesmos ideias que hoje comemoramos e celebramos.
70 anos da grande Vitória! Obrigado, Rússia, por ter salvado o mundo! Parabéns, Rússia!
E sempre, então, enrolo as mangas e me ponho a trabalhar, dia e noite – por Leningrado e por tudo que minha avó defendeu, e pela Rússia e pela humanidade.
[*] Andre Vltchek é romancista, cineasta e repórter. Cobriu guerras e conflitos em dúzias de países. Seu livro sobre o imperialismo ocidental no Pacífico Sul, Oceania foi publicado pela editora Lulu (VLTCHEK, André. Oceania, 2010. Sobre o livro, que tem prefácio de Noam Chomsky, ver em: “Oceania by Andre Vltchek – Book Review by Jim Miles”). É autor também de Indonesia – The Archipelago of Fear (Pluto), sobre a Indonésia pós-Suharto e o modelo de livre mercado fundamentalista. Depois de viver e trabalhar por muitos anos na América Latina e Oceania, Vltchek vive e trabalha atualmente no Leste da Ásia e África. Pode ser encontrado por sua página na Internet.
Traduzido pela Vila Vudu