Publicado 07/05/2015 21:30
Com o iminente fim da Segunda Guerra Mundial, representantes dos países aliados reuniram-se, em 1944, na cidade de Bretton Woods, para a histórica conferência que tentaria dar certa ordem ao inordenável sistema capitalista, atribulado pela guerra e “ameaçado” pela alternativa socialista. Nesse encontro, foram criadas algumas instituições multilaterais que teriam extrema importância para os acontecimentos vindouros na maioria dos países do globo. Em realidade, por trás da pretensa multilateralidade, essas instituições foram concebidas como verdadeiros “agentes disciplinadores” do capitalismo mundial. Dentre essas instituições, surgiu o Fundo Monetário Internacional (FMI), responsável por garantir essa disciplina nos âmbitos monetário e financeiro.
Como nos mais previsíveis enredos, a história dos países periféricos conta com a recorrente aparição em cena desse personagem que desempenha o paternal papel de salvar, mas, ao mesmo tempo – e com a autoridade de um salvador –, disciplinar. Resumindo em poucos atos, a sequência de acontecimentos ocorre da seguinte forma: i) uma fase de bonança da economia internacional resulta em massivos fluxos de capitais para os países periféricos; ii) por motivos que podem variar – e que são muitas vezes alheios aos países periféricos – ocorre uma reversão no ciclo de liquidez internacional, determinando uma “parada súbita” desses fluxos de capitais para a periferia; iii) com desequilíbrio em seu balanços de pagamentos, a crise se esboça e esses países recorrem aos empréstimos do FMI. Mudando o nome do país e o ano de ocorrência da crise – às vezes nem isso – é possível contar essa mesma história para muitos desses países. E a mais nova – e trágica – ironia é que agora essa história também se aplica até mesmo dentro da Europa, na sua própria periferia.
Mas o ponto central é que essa “ajuda” do FMI não é gratuita e nem sequer barata. Não estou com isso me referindo apenas aos juros e ao decorrente custo da dívida, mas sim aos ajustes impostos pelo Fundo. Com a autoridade de quem salva do calote e da crise, o FMI, em contrapartida, exige que o país ajudado siga uma determinada cartilha.
Assim, a “boa ciência econômica”, aquela formulada nas universidades de maior prestígio dos países centrais, é imposta aos povos “bárbaros” e perdulários. Não bastassem os canais menos diretos de imposição dessa doutrina – por exemplo, pelo financiamento de pesquisa –, por intermédio do FMI a imposição é taxativa e a desobediência significa o impedimento do acesso aos recursos, pois o empréstimo é escalonado e condicional. E embora as regras sejam diversas, o mandamento central dessa doutrina é um: a austeridade fiscal.
No Brasil, o acesso aos recursos do FMI ocorreu diversas vezes ao longo da história, mas o governo de Fernando Henrique Cardoso foi um dos mais pródigos em assinar esse tipo de acordo. Em dois mandatos, foram três acordos. O primeiro, da ordem de US$ 41,5 bilhões, foi firmado imediatamente após sua reeleição, em novembro de 1998. Como contrapartida, foram estabelecidas metas fiscais pelos três anos seguintes, o que foi determinante para a definição, em 1999, de um dos pilares do chamado “tripé macroeconômico”, a saber, a perseguição de metas de superávit primário.
Depois disso, foram firmados novos acordos em 2001 (US$ 15,7 bilhões) e em 2002 (US$ 37 bilhões). Este último, já em plena disputa eleitoral, fez surgir a dúvida sobre o respeito às regras do contrato em caso de vitória do candidato de oposição, Luís Inácio Lula da Silva. O então candidato preferiu acalmar os mercados e tornou pública, em junho de 2002, uma “Carta ao Povo Brasileiro”, na qual comprometia-se, uma vez eleito, a respeitar os contratos e obrigações do país e a preservar o superávit primário.
Vencendo as eleições, Lula efetivamente cumpriu a promessa e os primeiros anos de seu governo tiveram superávits primários superiores inclusive àqueles obtidos por FHC. Em um contexto extremamente favorável da economia internacional – e também por políticas bem-sucedidas no propósito de dinamizar os mercados internos –, foi possível, a despeito desse ajuste fiscal, crescer a taxas elevadas e atrair volumes imensos de capital estrangeiro. Com isso, a dívida com o FMI foi paga de forma antecipada, em uma atitude muito celebrada pelo então presidente Lula, em função da simbologia do esperado fim da subserviência às doutrinas do Fundo.
Os anos se passaram, o Brasil continuou atraindo capital estrangeiro e constituindo reservas internacionais que hoje chegam aos US$ 370 bilhões. Essa situação permitiu ao governo brasileiro uma maior autonomia de política econômica como reação à crise internacional, inclusive com uma política fiscal anticíclica.
No entanto, nas eleições de 2014, o tema da austeridade fiscal ressurgiu com força. Com voz uníssona, os agentes do mercado retornaram ao mantra do corte de gastos públicos e do ajuste fiscal necessário. Aécio Neves, principal candidato dos mercados, levou esse tema aos debates defendendo um ajuste frio e súbito, para pretensamente recolocar a economia brasileira nos eixos. Dilma Rousseff, por outro lado, comprometeu-se a evitar qualquer tipo de medida que gerasse prejuízos sociais exacerbados. Ainda que divididos, os eleitores brasileiros optaram por essa segunda agenda.
Qual não foi a surpresa, portanto, quando Dilma anunciou que o novo Ministro da Fazenda seria Joaquim Levy? Quando foram sendo postos na mesa cortes no seguro-desemprego, contingenciamento de gastos e provável redução no investimento público?
A austeridade fiscal recoloca-se de forma nua e crua. E, o que é mais problemático, recoloca-se em um momento em que a economia brasileira simplesmente parou de crescer. Em um momento em que o mercado de trabalho já mostra que seu dinamismo se esgotou. Em uma economia combalida (no Brasil e no mundo), a austeridade fiscal impõe-se como o determinante definitivo de um péssimo ano do ponto de vista econômico e social. Afinal, se o capitalismo com crescimento já é cheio de contradições, que podemos esperar de um ano que terá crescimento negativo? Inevitavelmente, as consequências serão o aumento do desemprego e a queda da renda real para muitas pessoas.
A pergunta incontornável é: diante dessa tragédia anunciada, porque o governo optou pela austeridade fiscal? E a resposta é: estamos novamente diante da mesma cartilha que exige a prática da “boa ciência econômica”. Não sendo mais credor do Brasil, o FMI talvez não tenha o mesmo poder de outrora na imposição de sua doutrina. No entanto, o mandamento da austeridade é recolocado, desta vez, por um novo agente disciplinador: as agências de rating de crédito (Standard & Poor´s, Moody´s e Fitch). Sob o olhar dos mercados, são elas que dão o selo de qualidade a um país, indicativo de sua atratividade para o capital internacional. São elas que separam os bons dos maus alunos. São elas que definem o grupo dos disciplinados e aquele dos indisciplinados.
O Brasil chegou ao grupo dos alunos exemplares, recebendo, em 2008, as notas que lhe conferiram o chamado “grau de investimento”. E agora, o governo parece colocar esse selo de qualidade acima de qualquer outra coisa. Acima até mesmo da vontade de parte expressiva de seus eleitores, que repudia ajustes que significam a piora da vida dos trabalhadores do país (e é isso que está em jogo!). Não há dúvida de que a perda do grau de investimento traria problemas para o país, já que significaria provavelmente uma evasão de capitais ou o aumento – que alguns dizem já estar precificado – no custo desse capital. No entanto, um governo precisa escolher as suas prioridades, em detrimento de outras, e é no mínimo estranho que esta seja a prioridade absoluta do atual governo – ao menos é isso que fazem transparecer os discursos do Ministro da Fazenda.
Mais do que isso, o contexto atual exige reflexões sobre nossa subordinação a esse novo agente disciplinador. Se o FMI se esforça para esconder os objetivos de suas rígidas regras pela retórica do bem-estar mundial e da pretensa multilateralidade, as agências de rating não têm qualquer tipo de pudor e impõem de forma bastante explícita a agenda do mercado financeiro, seu financiador. Não podemos nem reclamar, afinal, é exatamente para isso que elas existem. Por outro lado, não é para isso que os governos nacionais existem – ao menos não deveria ser. Portanto, o que é sim estranho – e absolutamente contestável – é a nossa sujeição a essa disciplina imposta pelas agências, que nada mais é do que a disciplina imposta pelos mercados.
*Professor do Instituto de Economia da Unicamp e pesquisador do Centro de Estudos de Conjuntura e Política Econômica da mesma universidade