Cristina Kirchner pede que Clarín ‘pare de mentir’

A sete meses de deixar a presidência, Cristina Fernández de Kirchner se mantém irredutível em seu compromisso, assumido já no primeiro governo, de enfrentar as corporações que conspiram contra a democratização das comunicações.

Cristina Kirchner denuncia onda antidemocrática

Cristina encarou abertamente essa situação, comprou uma briga direta com o oligopólio encabeçado pelo Grupo Clarín. “Por favor, parem de mentir”, foi o que disse a mandatária, diante das câmaras de TV, com um exemplar do diário Clarín nas mãos.

O governo mantém um combate integral contra os barões da imprensa, que defendem seu status quo aliando-se com banqueiros, fazendeiros, industriais e, principalmente, com a Embaixada dos Estados Unidos.

Parte da estratégia presidencial, nessa guerra esférica contra os donos da imprensa, foi a promulgação de uma lei antimonopólio, que estimulou o debate das massas sobre o direito à comunicação, e destinou fundos milionários aos meios públicos e comunitários.

Sem se deixar intimidar pelas pressões da direita e das empresas de notícias, o governo de Cristina impulsou um debate nacional sobre democracia, poder e meios de comunicação, que antecipou o trâmite da Lei de Serviços Audiovisuais (conhecida no Brasil como Lei de Meios), posteriormente levada ao Congresso.

O projeto foi discutido durante mais de um ano nas assembleias legislativas do interior do país, em sindicatos, em organizações comunitárias e em faculdades de comunicação, e em todas essas instâncias foram propostos novos artigos, que foram incluídos pelo governo.

Cerca de 20 reitores de universidades pediram aos legisladores que aprovassem o projeto, porque o consideravam “muito avançado e favorável à pluralidade”, avaliação que coincidiu com a expressada por Franck La Rue, relator da Comissão de Liberdade de Expressão das Nações Unidas, a respeito da lei.

Após esse longo trabalho de legitimação e conscientização, o Congresso aprovou, em outubro de 2009, a Lei 26.522, promulgada imediatamente por Cristina. A presidenta, que assumiu o país em 2007, enfrentou um dilema que havia marcado todos os presidentes democráticos desde 1983: negociar com os cartéis jornalísticos para garantir a governabilidade? Ou enfrentá-los?

Até mesmo o ex-presidente Néstor Kirchner manteve, durante alguns anos, um acordo de não agressão com o Clarín, que finalmente seria rompido, abruptamente, antes da eleição de Cristina.

Ela, por outro lado, nunca aceitou conversar com os proprietários dos meios massivos, ainda quando foi advertida de que isso significaria hipotecar sua popularidade e a do governo. “Fazer pactos com os grupos concentrados é ingênuo, os governos que o fizeram terminaram condenados à chantagem permanente”, explica o funcionário Martín Sabbatella.

“O Clarín já pressionou todos os presidentes democráticos, e impôs condições a eles, principalmente para impedir que se democratizasse a comunicação”, agrega Sabbatella, designado por Cristina para tocar adiante a disputa cotidiana contra as corporações jornalísticas.

“A ditadura argentina terminou em 1983, quando começou a transição democrática. Até hoje, os grandes meios continuam pressionando para atrasar essa transição no âmbito das comunicações. O melhor remédio contra a concentração foi estabelecer um novo marco jurídico. Agora, impera uma legalidade e uma racionalidade democrática, e quem não cumpre com isso deve ser sancionado pela Justiça”, diz Sabbatella, cuja principal tarefa é fazer que o Clarín se ajuste à lei, que foi declarada constitucional pela Corte Suprema argentina.

O espírito da norma é criar um modelo “que alimente a pluralidade de vozes e a multiplicidade de proprietários de veículos de comunicação. Não há nada de totalitário nem de intervencionismo estatal. Somente a regulação de um sistema para que não reine a barbárie do mercado”.

Membros da Sociedade Interamericana de Imprensa acusaram a Argentina de promover um modelo estatizante, usaram inclusive o termo “sovietizante”.

Sabbatella refutou a acusação: “o que está na letra da lei é um sistema de propriedade mista, onde um terço dos meios ficará nas mãos da sociedade civil, o outro terço será administrado pelo poder público e o restante continuará sendo propriedade privada”.

Se trata de um conceito alinhado com uma tendência reformista seguida por vários governos progressistas e de esquerda latino-americanos.

Diante do inquestionável avanço que significou o novo marco jurídico, a resposta do Clarín foi usar os seus advogados, para interpor dezenas de apelações na Justiça, buscando postergar sua aplicação. Dessa forma, vem evitando vender boa parte dos seus ativos e, graças a isso, continua exercendo um monopólio de fato.

Paralelamente, os editores dos meios controlados pelo Clarín impuseram uma política editorial ainda mais agressiva contra o governo, e também de desqualificação da lei. A empresa controlada pela família Nobe utiliza seu poder de penetração na opinião pública para fazer uma defesa hipócrita da “liberdade de expressão”, do jornalismo “independente” e contra os “populismos e as leis que regulam o livre mercado”.

Nessa investida contra a democratização das comunicações, Clarín e outros grandes grupos contam com o apoio do Poder Judiciário e dos partidos da direita tradicional. Informações reveladas pelo WikiLeaks confirmaram, também, que altos executivos e editores da imprensa tradicional visitam habitualmente a Embaixada dos Estados Unidos. Nessas reuniões frequentes, os membros do serviço de relações exteriores norte-americano orientam os editores e dirigentes conservadores sobre como articular a campanha para desestabilizar Cristina e evitar que o próximo governo dê continuidade às suas políticas.

É evidente que não são os partidos políticos conservadores argentinos, e sim o partido midiático, liderado pelo Clarín, o principal inimigo da atual administração “K” (letra que identifica o movimento kirchnerista).

Se, no Brasil, dizem que a Rede Globo é o principal partido opositor, na Argentina é o Clarín que desenha a estratégia da oposição partidária e chega até a escolher os candidatos que disputarão as presidenciais em outubro.

“Em nossos países, esses grandes meios se gabam do direito de impor sua vontade aos poderes democraticamente constituídos, se portam como se fossem verdadeiros partidos, mas são diferentes dos partidos, pois não competiram em nenhuma eleição para conquistar o voto popular”, sustenta Martín Sabbatella. “Se esses meios querem disputar o poder e ter legitimidade, que se apresentem como partidos, que se inscrevam formalmente no registro eleitoral”.

O Clarín, junto com seus comparsas, também ataca as políticas de distribuição de renda, os planos sociais, a disputa contra os fundos abutres, a nacionalização do petróleo e das ferrovias. Através de seus canais de televisão, emissoras de rádio e diários em todo o país, o grupo fustiga sistematicamente a aproximação da Casa Rosada com a China e a Rússia, e o distanciamento de Washington e de Israel.

Em resumo: a pátria jornalística declarou, claramente, uma guerra santa contra a presidenta e contra qualquer tentativa de correção de um sistema de comunicações atrofiado e que convém aos donos que se mantenha tal como está.

A imprensa tradicional tem se dedicado ultimamente ao objetivo de dinamitar a “herança maldita” que os 12 anos de governos kirchneristas (dois de Cristina e um de Néstor Kirchner) deixarão, e pressionar o panorama eleitoral, para que nele seja decretado “o fim do ciclo K”.

Esta é a consigna repetida até a exaustão pelos candidatos presidenciais da direita e os editoriais da velha mídia pegam carona, o que leva a várias interpretações. Uma delas, a mais plausível, é que, com a saída de Cristina, seu sucessor terá que reduzir drasticamente o alto orçamento destinado atualmente a financiar a TV Pública e o sistema público de meios de comunicação, que incluem também uma agência de notícias, uma rádio e vários canais a cabo.

Através desses meios, e de outros privados, pertencentes a empresários que simpatizam com o governo, se sustenta o contraponto permanente contra o discurso do sistema hegemonizado pelo Clarín. Isso permite que a tese sobre o direito à comunicação versus a liberdade comercial da imprensa floresça na opinião pública, e seja um assunto que se discuta em bares, mercados e até nos estádios de futebol.

Subsídios do governo foram entregues a rádios e canais de televisão universitários, assim como canais comunitários do interior do país.

Outra iniciativa ousada de Cristina foi adquirir os direitos de transmissão dos jogos do Campeonato Argentino, que antes pertenciam aos meios privados, que transmitiam a maioria dos jogos em canais fechados ou pelo sistema pay-per-view.

Graças a esse investimento milionário, os canais abertos puderam voltar a transmitir gratuitamente os grandes clássicos como Boca Juniors versus River Plate, Racing versus Independiente e San Lorenzo contra Huracán.

A estratégia se consolidou como um dos grandes acertos da presidenta, pois além de exibir os jogos de maior audiência no canal estatal, o governo aproveita os intervalos publicitários para explicar ao público em que consiste a democratização das comunicações, além de denunciar as manobras do Grupo Clarín, que antes cobrava caro pelo direito de assistir, por um canal a cabo, os jogos entre os times mais populares.

Fonte: Correio do Brasil