Mauro Santayana: A Petrobras e o "Domínio do Boato"
Os jornais foram para as ruas, na última semana, dando como favas contadas um prejuízo de R$ 6 bilhões na Petrobras, devido a casos de corrupção em investigação na Operação Lava a Jato. R$ 6 bilhões que não existem. E que foram colocados no “balanço”, como os bancos recorrem, nos seus, a provisões, por exemplo, para perdas com inadimplência, que, quando não se confirmam, são incorporadas a seus ativos mais tarde.
Por Mauro Santayana*, em seu blog
Publicado 28/04/2015 11:39
Não há – como seria normal, aliás, antes de divulgar esse valor – por trás destes R$ 6 bilhões, uma lista de contratos superfaturados, dos funcionários que participaram das licitações envolvidas, permitindo que se produzissem as condições necessárias a tais desvios, dos aditivos irregularmente aprovados, das contas para as quais esse montante foi desviado, dos corruptos que supostamente receberam essa fortuna.
O balanço da Petrobras, ao menos quanto à corrupção, foi um factoide. Um factoide de US$ 2 bilhões que representa o ponto culminante de uma série de factoides produzidos por um jogo de pressões voltado para encontrar, doa a quem doer, chifre em cabeça de cavalo.
Houve corrupção na Petrobras? Com certeza, houve.
Houve necessariamente superfaturamento e prejuízo com a corrupção na Petrobras?
Isso é preciso provar, onde, quando e como.
E o pior de tudo, é que a maior empresa brasileira apresentou esses resultados baseada, e pressionada, por uma questionável “auditoria”, realizada por uma, também, discutível, companhia estrangeira.
Segundo divulgado em alguns jornais, a empresa de auditoria norte-americana PricewaterhouseCoopers teria feito uma série de exigências para assinar, sem ressalvas, o balanço da Petrobras, estabelecendo um patamar para a perda com “impairment” e corrupção muito maior que a real, com base, nesse último aspecto, não em dados e informações, mas em números apresentados inicialmente por delatores, tomados como verdade indiscutível, quando vários destes mesmos delatores “premiados” negaram, depois, em diversas ocasiões, peremptoriamente, a existência de superfaturamento.
Essa é uma situação que, se fosse reconhecida no balanço, lançaria por terra a suposta existência de prejuízos de bilhões de dólares para a Petrobras com os casos investigados na Operação Lava a Jato, e ainda mais na escala astronômica em que esses números foram apresentados.
Que autoridade e credibilidade moral e profissional tem a PricewaterhouseCoopers para fazer isso?
Se a Petrobras, não tivesse, premida pela necessidade de responder de qualquer maneira à situação criada com as acusações de corrupção na empresa, sido obrigada a contratar empresas estrangeiras, devido à absurda internacionalização da companhia, iniciada no governo FHC, nos anos 1990, e, no caso específico da corrupção, tivesse investigado a história da PwC, que contratou por milhões de dólares para realizar essa auditoria pífia – que não conseguiria provar as conclusões que apresenta – teria percebido que a PwC é uma das principais empresas responsáveis pelo escândalo dos Luxemburgo Leaks, um esquema bilionário de evasão de impostos por multinacionais norte-americanas, que causou, durante anos, um rombo de centenas de bilhões de dólares para o fisco dos EUA, que está sendo investigado desde o ano passado; que ela é a companhia que está por trás do escândalo envolvendo a Seguradora AIG em 2005; que está relacionada com o escândalo de fraude contábil do grupo japonês Kanebo, ligado à área de cosméticos, que levou funcionários da então ChuoAoyama, parceira da PwC no Japão, à prisão; com o escândalo da liquidação da Tyco International, Ltd, no qual a PricewaterhouseCoopers teve de pagar mais de 200 milhões de dólares de indenização por ter facilitado ou permitido o desvio de US$ 600 milhões pelo Presidente Executivo e o Diretor Financeiro da empresa; com o escândalo da fraude de US$ 1.5 bilhão da Satyam, uma empresa indiana de Tecnologia da Informação, listada na NASDAQ; que ela foi também acionada por negligência profissional no caso dos também indianos Global Trust Bank Ltd e DSK Software; e também no caso envolvendo acusações de evasão fiscal do grupo petrolífero russo Yukos; por ter, em trabalho de auditoria, feito exatamente o contrário do que está fazendo no caso da Petrobras, tendo ficado também sob suspeita, na Rússia, de ter acobertado um desvio de US$ 4 bilhões na construção de um oleoduto da Transneft; que foi acusada por não alertar para o risco de quebra de empresas que auditava e assessorava, como a inglesa Northern Rock, que teve depois de ser resgatada pelo governo inglês na crise financeira de 2008; e no caso da JP Morgan Securities, em que foi multada pelo governo britânico; que está ligada ao escândalo da tentativa de privatização do sistema de águas de Nova Delhi, que levou à retirada de financiamento da operação pelo Banco Mundial; e que também foi processada por negligência em trabalhos de auditoria na Irlanda, país em que está sendo acionada em um bilhão de dólares.
Enfim, a PricewaterhouseCoopers é tão séria – o que com certeza coloca em dúvida a credibilidade de certos aspectos do balanço da Petrobras – que, para se ter ideia de sua competência, o Public Company Accounting Oversight Board dos Estados Unidos encontrou, em pesquisa realizada em 2012, deficiências e problemas significativos em 21 de 52 trabalhos de auditoria realizados pela PwC para companhias norte-americanas naquele ano.
É este verdadeiro primor de ética, imparcialidade e preparo profissional, que quer nos fazer crer – sem apresentar um documento comprobatório – que de cada R$ 100,00 gastos com contratações de 27 empresas de engenharia e infraestrutura pela Petrobras, R$ 3,00 tenham sido automaticamente desviados, durante vários anos, como se uma empresa com aproximadamente 90.000 funcionários funcionasse como uma espécie de linha de montagem, para o carimbo automático, de uma comissão de 3%, em milhares de notas a pagar, relativas a quase R$ 200 bilhões em compras de produtos e serviços.
Desenvolveu-se, no Brasil, a tese de que, para que haja corrupção, é preciso que tenha havido, sempre, necessariamente, desvio e superfaturamento.
Há empresas que fornecem produtos e serviços a condições e preço de mercado, quem nem por isso deixam de agradar e presentear com benesses que vão de cestas de natal a computadores o pessoal dos departamentos de compra e outros funcionários de seus clientes.
Há outras que convidam para encontros e viagens no exterior os médicos que receitam para seus pacientes medicamentos por elas fabricados. E outras, ainda, que promovem – ou já promoveram no passado – em outros países, congressos para funcionários públicos, como prefeitos, deputados e membros do Judiciário.
O montante ou o dinheiro reservado para esse tipo de “agrado” – que, moralmente, para alguns, não deixa de ser também uma espécie de tentativa de corrupção – depende, naturalmente, do lucro que vai ser aferido pela empresa em cada negócio, e do tamanho e potencial de investimento e gasto do cliente que está sendo atendido.
Em depoimento na CPI da Petrobras esta semana, o ex-dirigente da empresa ToyoSetal, Augusto Mendonça Neto, afirmou que pagamentos foram feitos a Paulo Roberto Costa e a Renato Duque, responsáveis pelas diretorias de Refino e Abastecimento e de Serviços, não para que eles alcançassem um determinado objetivo – manipulando contratos e licitações, por exemplo – mas para que não prejudicassem as empresas, já que, em suas palavras: “o poder que um diretor da Petrobras tem de atrapalhar era enorme. De ajudar, é pequeno. Na minha opinião, eles vendiam muito mais dificuldade do que facilidade. Na minha opinião, as empresas participavam muito mais por medo do que por facilidades. ”
Outro delator – devido, talvez, à impossibilidade de provar, inequivocamente, contabilmente, juridicamente, o contrário – o ex-diretor da Petrobras Paulo Roberto Costa, já havia voltado atrás, em petição apresentada no dia 9 de abril à Justiça – corroborando afirmações das próprias empreiteiras envolvidas – afirmando que as obras investigadas na Operação Lava a Jato não eram superfaturadas, e que as comissões de 3% eventualmente recebidas eram retiradas do lucro normal das empresas e não de sobrepreço, negando que ele e Alberto Youssef tenham recebido listas com as obras e empresas que seriam vencedoras em cada licitação. “Isso nunca aconteceu”, disse o seu advogado, João Mestieri, à Folha de São Paulo.
A mesma coisa já tinha sido explicada, didaticamente, em depoimento à CPI da Petrobras, pelo ex-gerente de implementação da Refinaria Abreu e Lima, Glauco Colepicolo Legatti, no dia 31 de março, ocasião em que negou que tivesse recebido propina, que tivesse qualquer conta no exterior, que tivesse feito transferência recente de qualquer bem para parentes, dando a entender também que poderia colocar seu sigilo bancário à disposição caso necessário.
Legatti negou peremptoriamente que tenha havido superfaturamento nas obras da refinaria, explicou o aumento dos custos da obra devido a adequações de projeto e a características como ser a mais avançada e moderna refinaria em construção no mundo, com uma concepção tecnológica especialmente desenvolvida que permite a inédita transformação de 70% de cada barril de petróleo bruto em óleo diesel, e que ela produzirá, quando terminada, 20% desse tipo de combustível consumido no Brasil – “não tem superfaturamento na obra. Superfaturamento é quando digo que algo custa 10 e vendo por 15. Aqui são custos reais incorridos na obra. Não tem um centavo pago que não tenha um serviço em contrapartida. Não existe na refinaria nenhum serviço pago sem contrapartida ”, afirmou.
Compreende-se a necessidade que a Petrobras tinha de “precificar” o mais depressa possível a questão da corrupção, admitindo que, se tivesse havido desvios em grande escala, estes não teriam passado, no máximo, como disseram dois delatores "premiados", inicialmente, de 3% do valor dos contratos relacionados ao “cartel” de empresas fornecedoras investigadas.
Mas com a aceitação da tese de que houve desvio automático desse mesmo e único percentual em milhares de diferentes contratos sem comprovar, de fato, absolutamente nada, sem determinar quem roubou, em qual negócio, em que comissão, em que contrato, em qual montante, a Petrobras e a PricewaterhouseCoopers levaram os jornais, a publicar, e a opinião pública a acreditar, que realmente houve um roubo de 6 bilhões de reais na Petrobras, que gerou um prejuízo desse montante para a empresa e para o país.
Isso é particularmente grave porque, para as empresas, a diferença entre a existência ou não de sobrepreço, significa ter ou não que pagar bilhões de reais em ressarcimento, no momento em que muitas estão praticamente quebrando e que tiveram vários negócios interrompidos, devido às consequências institucionais da operação que está em andamento.
Para se dizer que houve um crime, é preciso provar que tipo de crime se cometeu, a ação que foi desenvolvida, quem estava envolvido e as exatas consequências (prejuízo) que ele acarretou.
Até agora, no Caso Lava a Jato – que inicialmente era cantado e decantado como envolvendo quase US$ 90 bilhões – não se chegou a mais do que algumas centenas de milhões de dólares de dinheiro efetivamente localizado.
O que não quer dizer que tudo não tenha de ser apurado e punido, até o último centavo.
Essa determinação, que é de toda a sociedade brasileira, não consegue, no entanto, esconder o fato de que, ao inventar, sob pressão de alguns setores da mídia, da opinião pública e da justiça, o instituto da corrupção plural e obrigatória, com percentual tabelado, prazo determinado em número redondo de anos e meses, para início e fim das atividades, em operações que envolvem milhares de contratos de 27 diferentes empresas, a Petrobras e a Price criaram uma pantomímica, patética e gigantesca fantasia.
Pode-se colocar toda a polícia, promotores e juízes que existem, dentro e fora do Brasil, para provar, efetivamente, esse fantástico roubo de 6 bilhões de reais, investigando contrato por contrato, comissão de licitação por comissão de licitação, entrevistando cada um de seus membros, procurando apenas provas lícitas, cabais e concretas, como transferências reais de dinheiro, contas no exterior em bancos suíços e paraísos fiscais, quebra de sigilo telefônico, imagens de câmeras de hotéis e restaurantes, indícios de enriquecimento ilícito, interrogatórios e acareações, ressuscitando e dando vida aos melhores detetives de todos os tempos, de Sherlock Holmes a Hercule Poirot, passando pelo Inspetor Maigret, Nero Wolfe, Sam Spade, Phillip Marlowe, a Miss Marple de Agatha Cristie e o frade William de Baskerville de “O Nome da Rosa”, que não se conseguiria provar – a não ser que surjam novos fatos – que houve esse tipo de desvio na forma, escala, dimensão e montante apresentados no balanço da Petrobras há poucos dias.
Delações premiadas – nesse aspecto, já desmentidas – podem ser feitas no atacado, afinal, bandido, principalmente quando antigo e contumaz, fala e inventa o quer e até o que não quer.
Mas até que se mude de planeta, ou se destruam todos os pergaminhos, alfarrábios e referências e tratados de Direito, sepultando a presunção de inocência e o império da prova e da Lei no mesmo caixão desta República, toda investigação tem de ser feita, e os crimes provados, individualmente.
Com acuidade, esforço e compenetração e sem deixar margem de dúvida.
Todos os crimes, e não apenas alguns.
À base de um por um, preferencialmente.
Com o processo do “mensalão” do PT – o único dos “mensalões” julgado até agora – inaugurou-se, no Brasil, a utilização da teoria do Domínio do Fato, de forma, aliás, absolutamente distorcida, como declarou, a propósito desse caso, o seu próprio criador, o jurista alemão Claus Roxin.
Ele afirmou, em visita ao país, na época do julgamento da Ação penal 470, que “ não é possível usar a teoria do “Domínio do Fato” para fundamentar a condenação de um acusado supondo sua participação apenas pelo fato de sua posição hierárquica. “A pessoa que ocupa a posição no topo de uma organização tem também que ter comandado esse fato, emitido uma ordem inequívoca” – afirmando que o dever de conhecer os atos de um subordinado não implica em corresponsabilidade.
“A posição hierárquica não fundamenta, sob nenhuma circunstância, o domínio do fato”, comentando que “na Alemanha temos o mesmo problema. É interessante saber que aqui também há o clamor por condenações severas, mesmo sem provas suficientes. O problema é que isso não corresponde ao Direito. O juiz não tem que ficar ao lado da opinião pública”. “Quem ocupa posição de comando tem que ter, de fato, emitido a ordem. E isso deve ser provado”.
O que quis dizer Claus Roxin com isso? Que, para que haja “domínio do fato’, é preciso comprovar, de fato, que houve esse fato.
Com a saída meramente "aritmética" usada no balanço da Petrobras, baseada em uma auditoria de uma empresa estrangeira que, na realidade, pelos seus resultados, parece não ter tecnicamente ocorrido, inaugura-se, no Brasil, para efeito do cálculo de prejuízos advindos de corrupção, uma outra anomalia: a “teoria do domínio do boato”.
*É jornalista autodidata brasileiro, colunista político do Jornal do Brasil e blogueiro.