Maria Lygia Quartim de Moraes: Militância libertária

Herdeiras da luta contra a ditadura, feministas conquistaram avanços com a redemocratização do país.

Por Maria Lygia Quartim de Moraes*, especial para o Vermelho

MIlitancia feminina - Reprodução

Movimentos de libertação. Assim se autodefiniam as principais organizações civis emergentes na segunda metade do século 20 ocidental. Nos anos 1960 e 1970, feministas, grupos radicais do movimento negro e militantes pelos direitos dos homossexuais eram influenciados pelo contexto das guerras de libertação colonial e pela guerra do Vietnã. Estudantes secundaristas e universitários tornavam-se atores coletivos, e em suas lutas por “libertação” foram as vítimas preferenciais da repressão das ditaduras na América Latina.

Para a juventude que aspirava maior liberdade na vida pessoal, a ditadura foi uma tragédia. A agitação e a efervescência do final dos anos 1960, com seus festivais de música e de cinema e grandes encontros estudantis, foram substituídas pelo medo, à medida que o terrorismo de Estado atuava contra os “subversivos”. A moral cristã era tão onipresente que, nas invasões realizadas pela polícia na residência estudantil da USP, as pílulas anticoncepcionais e as bombas molotov eram apresentadas à imprensa e à opinião pública como provas incriminadoras. Uma estudante em cuja bolsa fossem encontradas pílulas era considerada prostituta, no sentido mais desqualificador que o termo pode ter.

Em 1968, a UNE organizou um grande encontro clandestino em um sítio em Ibiúna, no interior paulista. Descoberto pelas forças repressivas, o evento terminou com a prisão de mais de mil lideranças estudantis. Destas, 157 eram mulheres. Também era considerável o engajamento feminino nas organizações que pegaram em armas contra a ditadura – como fizeram a presidente Dilma Rousseff e a ministra Eleonora Menicucci. Essa atitude representava uma profunda transgressão ao que era designado como próprio ao sexo feminino. Mesmo sem formular uma proposta feminista declarada, as militantes “comportaram-se como homens”: não apenas manejando armas e participando de ações de guerrilha, mas assumindo um comportamento sexual que punha em questão a virgindade e a instituição do casamento. A militância era, em si, um instrumento de emancipação. Ao cair nas mãos da repressão e da tortura, essa transgressão de gênero resultava também em punições específicas, como diversas formas de abuso sexual e humilhações sofridas pelas mulheres pelos seus torturadores que eram homens.

Foi no exílio que muitas militantes se tornaram feministas. Quando criaram família e passaram a viver um cotidiano de trabalho, estudos e cuidados de casa, o machismo dos seus companheiros se fez sentir. Com o golpe militar no Chile, em 1973, fecharam-se todas as portas da América do Sul para perseguidos políticos, e Paris passou a concentrar grande parte da esquerda exilada.

Foi lá que as brasileiras entraram em contato com um feminismo com o qual tinham afinidade: um movimento autônomo de mulheres, com presença significativa de comunistas e socialistas, ligado a outros movimentos sociais e com uma importante editora de obras feministas, a Editons des Femmes. E extremamente solidário com as exiladas latino-americanas. As queixas das ex-guerrilheiras não se diferenciavam muito do padrão feminino francês, especialmente no tocante às tarefas domésticas e aos cuidados com os filhos. As feministas começavam a se insurgir contra a naturalização do trabalho doméstico como algo próprio da mulher. Um grupo importante para a formação teórica de muitas exiladas em Paris foi o Círculo das Mulheres Brasileiras, especialmente atuante entre 1973 e 1979. Annete Goldenberg e Angela Arruda são algumas dessas militantes que também escreveram sobre sua experiência.

No período em que a repressão militar liquidava fisicamente muitos de seus oponentes, o movimento feminista aparece no Brasil comprometido com a luta pelas “liberdades democráticas”, e exerce papel ativo na campanha nacional pela anistia, desde 1975. Nesse ano, que marcou o início da “Década da Mulher” da Organização das Nações Unidas, diversos países assinaram compromissos de promover políticas públicas para superar as diferenças salariais entre homens e mulheres e implementar programas de planejamento familiar. Feministas brasileiras organizaram encontros e divulgaram material informativo sobre as diferentes formas de opressão da mulher, especialmente nos estados de São Paulo e Rio de Janeiro. Dadas as profundas desigualdades da sociedade brasileira, o alcance do movimento feminista variou enormemente, concentrando-se mais nos principais centros urbanos e nas classes médias.

O processo de redemocratização abriu caminho para novas militâncias, que ampliaram os embates políticos e a relação dos movimentos sociais com o Estado, fortalecendo também os grupos ativistas dos direitos da mulher. Campanhas nacionais denunciaram o assassinato de mulheres por crimes “de honra”, o sexismo dos livros escolares e a impunidade do assédio sexual. Nem todos os grupos eram feministas, o que torna a expressão movimento de mulheres mais condizente com as lutas pela democracia, pela anistia, contra a carestia, por creches e pelo fim da violência contra a mulher que agitavam o país na virada para a década de 80.

Após as primeiras eleições livres, realizadas em 1982, as feministas participaram do governo do estado de São Paulo, criando o primeiro Conselho da Condição Feminina (CCF) e as delegacias especiais para as mulheres. Mas os conselhos eram órgãos dependentes do Poder Executivo, o que comprometia seu caráter inovador. Mais importantes foram as conquistas consolidadas na Constituição Federal de 1988. No texto constitucional, a nova “família” se fundamenta no princípio da igualdade entre homens e mulheres e é descrita como “base da sociedade” à qual o Estado garante proteção. Os cônjuges exercem igualmente “os direitos e os deveres referentes à entidade familiar”, prevalece o princípio da igualdade jurídica entre todos os filhos, nascidos ou não no casamento, naturais ou adotados, e são reduzidos os prazos e as exigências para o divórcio. Finalmente, o preceito legal de família passa a incluir “a comunidade formada por qualquer dos pais e seus descendentes” — o que possibilita o reconhecimento da existência de diferentes formas de arranjo familiar.


Religiosos fazem manifestação em frente ao STF, em Brasília, em defesa da criminalização do aborto em caso de feto anencéfalo 

As conquistas legais não são suficientes, no entanto, para ofuscar o machismo, a ignorância, a superstição e outros preconceitos. Esses entraves justificam a importância do pensamento e da ação feministas na atualidade. Muitas são as questões pendentes. Uma das principais diz respeito aos direitos reprodutivos, especialmente o direito à interrupção de uma gravidez não desejada. Na maior parte dos países ocidentais este foi um direito adquirido a partir dos anos 1960. O único país no qual este direito é reconhecido na América do Sul é o Uruguai. No Brasil, onde existe grande tolerância com respeito à sexualidade e à exibição do corpo, a legislação não avançou nos últimos quarenta anos. Ao contrário, a repressão a médicos e pacientes suspeitos de aborto tem se tornado mais frequente. Uma das explicações mais evidentes para isso é a crescente influência das diversas igrejas, especialmente as evangélicas.

Ter uma mulher na Presidência da República é exceção numa política com pouca participação feminina em posições de comando. O mesmo se dá em diferentes áreas, como o Judiciário e a divisão das riquezas materiais. Quarenta anos após o início da Década da Mulher, há inegáveis avanços a comemorar. Mas também muito a ser feito.

*Maria Lygia Quartim de Moraes é professora da Universidade de Campinas e autora de Feminismo, movimento de mulheres e a (re)construção da democracia em três países da América Latina (Unicamp, 2003)