Bernardo Kucinski: A Suspeita
– Não me venham com bobagem; eu também estou convencido de que erramos feio, não há dúvida, mas daí a concluir que nós o levamos à loucura é demais! Uma pessoa assim já nasce de parafuso solto, vive um equilíbrio instável, basta uma tensão súbita e o sujeito desaba, o equilíbrio se rompe. Além disso, pelo que vocês estão dizendo, o diagnóstico foi feito agora e já se passaram oito anos desde que tudo aconteceu.
Por Bernardo Kucinski*
Publicado 02/04/2015 10:24
O grupo pequeno e compacto escuta atentamente o homem alto de cabelos grisalhos, que lhes fala da porta da sala em tom de autoridade incontestável. Sua voz é forte e de timbre grave. Estão todos de pé e parecem nervosos. Um deles faz uma pergunta que mal se ouve. O homem alto responde.
– Eu discordo. Em primeiro lugar, oito anos é muito tempo. Por que agora e não antes? Muita coisa deve ter acontecido com ele nesses oito anos. Em segundo lugar, a tensão que havia era da época, não foi uma tensão provocada por nós, as coisas foram acontecendo quase sem a gente perceber, ninguém combinou nada, quando ele se aproximava agente só mudava de conversa, sem nenhuma agressão, nenhuma acusação.
– Começou por causa daquele sorriso enigmático dele – diz alguém da roda.
– Exatamente, um sorriso idiota; prestava atenção nas conversas e não falava nada, só sorria.
Podia ser uma notícia ruim, aliás, era só notícia ruim, prisão, cassação. Mesmo assim, ele parecia achar graça. Um escárnio. Se alguém lhe dirigia o olhar, mostrava ainda mais os dentes. Pensem bem: nunca opinava, nunca se soube o que ele pensava daquilo tudo. Mas ele estava sempre ali, ouvindo. Como é que não se ia desconfiar de um cara assim?
Silêncio. Ninguém diz nada. Passam-se cinco segundos, dez. O homem alto volta a falar:
– Também nunca se soube de onde ele veio. Vocês estão dizendo que ele foi internado em Santos, que a família é de lá. Mas, para nós, naquele tempo, ele era um cara sem passado, sem referências. É verdade que nunca perguntamos diretamente. Mas quando os rumores começaram, tentamos mapear, investigar um pouco aqui e ali; nem o Mario que dividia o alojamento com ele sabia de onde ele era, em que cidade nasceu, quem eram os pais dele. Era um tipo soturno, não tinha amigos, não tinha mulher. Tirando o Nestor, quem andava com ele? Ninguém. E Nestor era mais um parceiro de pesquisa do que propriamente amigo.
– O que o Nestor dizia dele? – Pergunta alguém.
– Dizia que ele era mais um esquisitão, dos tantos gênios e disléxicos que pululam aqui na Física, e que ele era crânio em analítica.
– Então quem foi que lançou a suspeita?
– Eu sei lá quem foi? Pode ter sido qualquer um de vocês. Eu é que não fui. Nem eu nem o Nestor. Alguém o teria visto entrando na sala do tal de Vitor, o cara do SNI, que se instalou na Reitoria. Ou saindo da sala. E daí? Ele pode ter entrado na sala errada, ou pode ter sido chamado por algum motivo explicável. Ou pode nem ter sido ele, a informação não era categórica. Foi assim que começou, como um rumor. Mas o motivo mesmo foi o sorriso bobo. Foi como se, de repente, o rumor explicasse o sorriso que até então ninguém conseguia entender. De repente tudo se encaixava: ele era um informante.
Alguém diz:
– O Nestor explicou que ele tinha medo de falar porque só entendia de ciência, o sorriso forçado dele era uma defesa quando a conversa era outra.
– E sempre era outra, não é mesmo? Ninguém discute ciência em rodinha de corredor, discute num seminário, não na hora do cafezinho, e só as pessoas da área.
– Demorou para ele perceber o gelo? – Pergunta um rapaz da roda que parece mais jovem que os demais.
– Demorou, até nisso ele era devagar. Ele foi se afastando aos poucos, até que passou a só conversar com o Nestor, mesmo assim, pouco.
– Disse o Mário que ele começou a beber. Primeiro, uns tragos à noite, depois de modo descontrolado. Então teve aquele episódio de convulsão e ele parou de beber; foi quando pediu a transferência.
– Uma perda, sem dúvida, eu li os trabalhos dele, tem cabeça boa demais para se enfiar naquele campus avançado, no meio do nada.
– Tem não, tinha… um esquizofrênico não tem uma cabeça, tem duas…
Novo silêncio. Continuam todos de pé, parecem petrificados. Passados quinze segundos de absoluto silêncio, o homem alto e grisalho volta a falar, agora em tom ainda mais peremptório.
– Já admiti que cometemos uma grande injustiça. Foi um comportamento de grupo, talvez nos tenha faltado maturidade, discernimento, ouvir melhor o Nestor; mas a culpa mesmo foi da situação, do clima, do medo, a gente se fechava, cada grupinho era um gueto. E do sorriso cretino dele. Foi uma espécie de efeito colateral da ditadura. É como diz o filósofo, o homem e suas circunstâncias. O sorriso era do homem, o DNA da loucura também já estava nele, as circunstâncias foram da ditadura. E ponto final.
*Bernardo Kucinski é professor aposentado da ECA/USP, jornalista e escritor. É autor de Jornalistas e revolucionários e Jornalismo econômico, entre outros livros. Sua primeira ficção, K., foi finalista de vários prêmios literários. Este conto faz parte da antologia Você vai voltar pra mim, publiado pela Cosac Naify