Bullying político, terrorismo de elite ou uma “desfaçatez de classe”?
Em artigo, o linguista Jorge Romero*, mestre em Teoria e História Literária, faz uma análise conjuntural e destaca a "ascensão do pensamento conservador" no Brasil e seus personagens, vistos nas últimas manifestações.
Publicado 31/03/2015 10:35
“Como interpretar as palavras de um narrador mal-intencionado, cuja volubilidade se governa por conveniências e inconveniências de uma posição de classe?”. Para o crítico Roberto Schwartz, estudioso da obra de Machado de Assis, a questão da “honestidade narrativa” toma forma a partir 1848, quando os levantes populares impuseram seu reconhecimento diante dos interesses particulares das burguesias europeias. Fundamentando-se em Marx e Adorno, Schwartz nos estimula a pensar que a “fratura da forma aponta para impasses históricos”.
Mas a questão que procuro abordar não está relacionada ao surgimento de novas formas literárias, muito menos, pretendo aqui realizar uma crítica da ficção machadiana. As personagens que pretendo investigar são outras e estão relacionadas às novas “fraturas” que nos permitem observar uma ascensão do pensamento conservador.
As últimas manifestações foram sintomáticas e parecem demonstrar um movimento novo no Brasil capaz de organizar os setores mais conservadores da sociedade, levando para as ruas os mais diversos personagens: o liberal do estado mínimo, o patriota com camisa da seleção brasileira, o militar torturador tirando self, o negro que odeia cotas e movimentos negros, a família que leva a babá para cuidar da criança, o ex-sindicalista ridicularizado publicamente. São muitos os tipos que formam um prato cheio nas mãos de um hábil romancista.
Diversos discursos formam uma teia esquizofrênica onde o que toma relevo é um pedido de impeachment sem nenhuma base jurídica. Em recente entrevista, um dos organizadores dos movimentos aponta para a necessidade de retirar o poder das mãos do Partido dos Trabalhadores e alega que a corrupção é mais suja quando é vermelha. Questionado se há um “melhor” ou “pior” tipo de corrupção, o jovem afirma que a corrupção do PT é ainda pior, pois está aliada a um projeto de expansão ideológica.
Instado sobre a preponderância de brancos nas manifestações, o entrevistado que é negro, afirma existir somente seres humanos. Em vídeos facilmente encontrados nas redes sociais, afirma que o “governo” seria racista ao instituir uma política de cotas e afirma não precisar de nenhuma cota, pois tem o mérito de entrar em uma universidade sem “roubar” a vaga de ninguém.
Vale lembrar que entre 1867 e 1868, José de Alencar publicou um conjunto de cartas sob o pseudônimo de Erasmo. Essas cartas discutiam as posições do imperador, sua atitudes políticas, mas principalmente, dissertavam sobre a escravidão. Ao avaliar a abolição de escravos em países europeus, Alencar observava que a população negra ainda não estava “educada para a liberdade” .
Em sua argumentação a escravidão seria um “embrião” para o desenvolvimento e progresso das civilizações.
Essa longa viagem, nos serve para mostrar como a luta pela defesa dos próprios interesses forjam dogmas com raízes profundas. Mesmo as contradições parecem pequenos galhos que não afetam a estrutura dos pensamentos, no entanto, como é possível aprender a ser livre vivendo como escravo?
A questão das cotas aparece sempre ao lado da meritocracia. Embate que suscita muitas perguntas: como conceber que pessoas possam ter condições semelhantes de acesso a uma universidade pública, vivendo de forma tão desigual? Isso seria anular todas as disparidades sociais, políticas e econômicas. Ou seja, estamos diante de um argumento semelhante ao de Alencar, em seu forte teor contraditório: o negro não estaria suficientemente educado para entrar em uma universidade pública.
Mas aqui, não proponho malabarismos teóricos, somente uma breve investigação discursiva. Outro elemento que merece destaque é o “antivermelhismo” dos manifestantes, comparável somente a velha anedota do militar que ao chegar na casa de um suspeito, manda prendê-lo imediatamente ao ver em suas estantes um livro de Stendhal, “O vermelho e o negro”. Atitude que nos faz pensar nas contraditórias afirmações democráticas dos manifestantes, sendo uma delas o direito à liberdade de expressão, sendo que as mídias alternativas e até mesmo grandes redes foram expulsas das manifestações por serem “vendidas”. Foi este o caso da Carta Capital e o bullyng político não perdoou nem mesmo a rede Bandeirantes e um de seus programas de humor.
O medo é de uma “revolução bolivariana”, o terrorismo de elite assume aqui a forma ficcional por excelência, pois procura, acentuando o ódio por princípios libertários, estimular os dogmas pela ficcionalização, que reside na formação de um “inimigo imaginário”: o comunista. Além disso, procura-se fragilizar os movimentos sociais por associações arbitrárias que jogam num mesmo campo semântico comunistas, petistas, anarquistas e corruptos (com direito ao realce dado nas consoantes que formam a sigla do Partido dos Trabalhadores).
A conclusão que podemos chegar é que as ideias não estão fora do lugar, para brincar com o título de um capítulo do livro “Ao vencedor as batatas”, de Roberto Schwartz, que pensa a ascensão do liberalismo no século 19 e as contradições ideológicas das elites. As ideias estão no lugar, vestiram as camisetas de dogmas e tomaram as ruas de assalto.
Referências:
Schwartz, Roberto. Um mestre na periferia do capitalismo: Machado de Assis. São Paulo: Duas Cidades; Ed. 34, 2000, pg 171. Alencar, José. Cartas a favor da escravidão. São Paulo: Hedra, 2008, pg. 64.
*Jorge Romero é linguista, mestre em Teoria e História Literária pela Unicamp e autor de “As Formas da Inspiração: linguagem e criação poética em Patativa do Assaré”.