Reforma Agrária: Luta, reforma e produção no Espírito Santo
Em direção ao norte do Espírito Santo pela rodovia BR-101, de Vitória até São Mateus, as margens da estrada vão perdendo vegetação natural e se tornando cada vez mais abertas. Bois surgem em meio a imensos terrenos descobertos, ou então pipocam grandes áreas ocupadas pela silvicultura que intercalam espaço com a pecuária extensiva.
Por Guilherme Zocchio, no Portal do MST
Publicado 19/01/2015 15:16
No caminho, passam caminhões cheios de toras de eucalipto, com destino a Aracruz (ES), pólo produtor de celulose no Estado. Após um breve desvio para a rodovia estadual ES-381, que liga São Mateus (ES) a Nova Venécia (ES), mais ao interior, a paisagem, no entanto, vai ganhando outras feições, com propriedades menores e uma quantidade maior de casas e terras divididas.
O cenário segue em transformação até chegar ao km 41 da estrada, onde está um pequeno povoado que circunda uma região expressiva na produção de café e pimenta-do-reino no Espírito Santo. Por lá, estão cinco assentamentos da reforma agrária, frutos da luta do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST). “Nessa região, conseguimos organizar nossa produção e viver muito bem. Eu sempre digo que a gente, primeiro, precisa mostrar para a gente mesmo que a reforma agrária dá certo”, aponta Juraci Portes de Oliveira, 46, membro do coletivo de produção do MST no Estado. Ele se refere à situação dos assentamentos Georgina, Vale da Vitória, Pratinha e São Vicente, bem como a do assentamento Zumbi dos Palmares, onde mora, um pouco mais afastado dos outros quatro.
Com a distribuição das terras agricultáveis, a localidade se desenvolveu sem que houvesse um processo visível de concentração de riquezas. Quem passa vê casas muito parecidas em tamanho, muitas das pessoas convivendo em harmonia e toda uma vida que movimenta o comércio local, surgido em decorrência da produção dos assentados. São mais de 292 famílias morando nas propriedades distribuídas pela reforma agrária na região, que somam um total de 666 hectares de plantação de café, em maioria da espécie conilon, e pelo menos 136 hectares de cultivo de pimenta-do-reino, de acordo com informações de agosto de 2012 da Cooperativa de Prestação de Serviços Técnicos e da Reforma Agrária do Espírito Santo (COOPTRAES).
“Logo que eu cheguei nessa terra aqui, eu meti o pau. Fui fazendo e plantando minhas coisinhas”, lembra Sebastião Rosa da Silva, o Seu Tião, de 73 anos, que é um dos primeiros assentados da área de Georgina — o primeiro assentamento estabelecido em São Mateus (ES) [veja box abaixo] . Desde 1985, quando o terreno foi desapropriado, ele viu toda a área se desenvolver, com o loteamento das propriedades e o começo das primeiras lavouras de café e pimenta-do-reino.
A escolha por essas duas culturas na época foi estratégica, segundo Adenício Moreira da Silva, o Taxinha, que tinha 18 anos de idade no período de ocupação das áreas pelo MST e hoje soma 45 primaveras. “Precisávamos plantar bens de raízes porque era o que dava a garantia de a gente permanecer com a terra. E o café e a pimenta-do-reino, desde esse período, já eram muito fortes aqui na região”, conta. “Historicamente, essas duas culturas são as que dão sustentação aos pequenos produtores, pela estabilidade de preços. Pelo menos 90% das famílias possuem transporte próprio e têm também um padrão de vida muito bom”, indica Juraci.
Essa situação, contudo, destoa em muito daquilo que ocorre na maioria do Estado e no próprio município de São Mateus (ES). Como o Brasil, o Espírito Santo apresenta considerável desigualdade e forte concentração fundiária, com menos da metade das terras capixabas disponíveis para pequenas propriedades agrícolas. Segundo o Censo Agropecuário de 2006 do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), 18% das terras agricultáveis espírito-santenses pertenciam a grandes latifúndios (de 1 mil ou mais hectares), que correspondiam a cerca de 1% do total de propriedades rurais; e enquanto 35% do terreno agrícola pertenciam a 5% de médias propriedades (de 100 até 1mil hectares), os outros 48% de terras ficavam disponíveis aos 94% restantes de pequenas propriedades rurais (com até 100 hectares).
Ainda conforme o Censo Populacional de 2010 do IBGE, São Mateus (ES) tem a quarta pior distribuição de renda per capita do Estado, com índice Gini de 0,577 —indicador que mede a desigualdade social de uma localidade com um valor entre 0 e 1; quanto mais próximo de 1, mais concentração de riqueza, e quanto mais próximo de zero, mais distribuição. Já o Espírito Santo inteiro apresenta um coeficiente de 0,538, segundo o Instituto de Pesquisas Econômicas Aplicadas (Ipea), que o torna o 12º estado mais desigual em um total de 27 unidades federativas no país.
Além disso, um estudo de Adelso Rocha Lima, da coordenação estadual do MST, em parceria com a Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho” (Unesp), baseado em dados do Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra), aponta que, em 2003, só na região norte capixaba, o Gini poderia corresponder a um valor médio de 0,75.
Por outro lado, as produções de café e pimenta-do-reino dos cinco assentamentos geram ao todo uma renda bruta anual em torno de R$ 8,9 milhões, de acordo com a Cooptraes. Se dividida igualmente pelas 292 famílias, essa quantia resultaria em uma renda média anual bruta por família que ficaria em torno de R$ 30 mil. “A gente costuma dizer que a pimenta vale mais que o ouro hoje por aqui”, comenta Juraci, em referência à importância dessas culturas para as famílias da região. O Espírito Santo, afinal, é o segundo maior produtor brasileiro dos dois cultivos, com destaque especial para a pimenta em São Mateus (ES), que corresponde a quase 70% de toda a lavoura da especiaria no Estado.
Máximo por hectare
Os assentados produzem, ainda, boa parte daquilo que consomem, já que as plantações de café e pimenta-do-reino convivem lado a lado com lavouras de feijão, aipim, milho, frutas e verduras. “É uma necessidade”, diz Juraci. “Uma defesa que a gente faz é que as pessoas precisam produzir para autoconsumo. A partir da idéia de segurança alimentar, tentar aproveitar o máximo por hectare”, completa.
No momento em que brotam as primeiras mudas, durante o período de formação dos cafezais, os agricultores usam a terra para plantar as culturas alimentícias de subsistência. Nos primeiros 70 dias de cultivo, começa a plantação de feijão entre fileiras de pequenos pés de café; ou então, crescem sabugos de milho, intercalados com a lavoura cafeeira, nos 100 dias iniciais. Em grande parte, os frutos da colheita desses alimentos, quando não são consumidos pelas próprias famílias assentadas, são vendidos ou seguem para o Programa Nacional de Alimentação Escolar (PNAE) ou para o Programa de Aquisição de Alimentos (PAA), ambos do Governo Federal.
Palha do café aduba crescimento de hortaliça
A plantação de café pelas famílias assentadas começou também, há algum tempo, a dividir espaço com o plantio de seringueiras. Essa idéia faz parte de um pensamento de longo prazo, bem como de uma tentativa de conciliar culturas diferentes que se auxiliem. Isso é, enquanto o café produz resultados mais imediatos, com colheitas a cada dois anos, as árvores produtoras de látex, em 7 ou 8 anos, conferem seus resultados e ajudam, com a sombra que fazem sobre os cafezais, a proteger a lavoura do grão. “Com uma área pequena você consegue consorciar para ir aproveitando. A seringa não é a fonte principal de renda, pelo menos não inicialmente, mas ajuda”, explica Erinaldo Verdeiro, produtor do assentamento Zumbi dos Palmares.
Praticamente todos os subprodutos do café são aproveitados. Depois que é colhida e ensacada, a produção segue para o beneficiamento, onde é torrada e fica pronta para ser vendida aos intermediários. Após esse processo, os grãos soltam uma espécie de casca, chamada de palha, que é recolhida e serve como importante adubo para as outras culturas. Esta palha, segundo explica Erinaldo, é um fertilizante com forte rendimento o qual forma uma espécie de esponja sobre o solo e ajuda a protegê-lo da perda de umidade. Outro fator importante para as lavouras, além disso, é a irrigação.
Fontes de renda e água
“Tivemos muitas perdas na colheita até 1999 em áreas que não eram irrigadas. Colhíamos o café e quase que não conseguíamos que fosse comercializado por conta da seca”, lembra Taxinha. Para ele, enquanto os sistemas de irrigação não eram implantados nas áreas assentadas, as famílias passaram por muitas dificuldades e mantinham inclusive um índice de produtividade muito baixo. A exigência dos aparelhos para irrigar era até uma prerrogativa para que os agricultores conseguissem empréstimos bancários ou créditos para investir nas próprias lavouras.
Essa situação começou a mudar, segundo explica, a partir do começo do governo Lula, em 2003, quando houve um maior apoio à agricultura familiar. “Nesse período, foi liberado o crédito em condições melhores que as condições anteriores. Então, fazíamos renovação na lavoura e a partir daí só veio melhorando”, destaca ele. Taxinha enfatiza, portanto, que não basta para a reforma agrária somente a distribuição de terras e que são necessárias também políticas públicas como, por exemplo, o Programa Nacional de Fortalecimento da Agricultura Familiar (Pronaf), do Ministério do Desenvolvimento Agrário.
Um problema que as famílias assentadas na região estão enfrentado, no entanto, diz justamente a respeito das fontes de água. O rio São Mateus, principal afluente que corta a área, está ficando com as margens assoreadas. Durante a visita da reportagem, encontrava-se muito abaixo do nível normal. “Se não houver uma recuperação das nascentes, vai haver um colapso”, adverte Juraci. Como alternativas, ele sugere que os assentados procurem aperfeiçoar os sistemas de irrigação e tentem construir represas ou poços artesianos para preservar o rio e aproveitar mais o lenço freático.
Juraci reconhece que, por outro lado, a criação extensiva de gado bovino que circunda a região dos assentamentos é a principal responsável por essa situação. “Historicamente, a pecuária extensiva e o latifúndio sempre foram os principais responsáveis por cercar as cabeceiras das nascentes e acabar com água. O gado força o desmatamento e vai destruindo a margem dos rios”, termina.
Seu Tião e Georgina, ou “começou logo aqui com a gente”
A terra onde está hoje o assentamento de Georgina foi, antes, uma das primeiras áreas ocupadas pelo MST no Espírito Santo. A partir do indicativo de Seu Tião, que havia entrado no local em 1984 quando percebeu que se tratava de uma propriedade improdutiva, o movimento ocupou a fazenda no ano seguinte, em 27 de outubro de 1985, e conseguiu a desapropriação pouco tempo depois, já em 1986.
“Soubemos que essa terra aqui era improdutiva, que era terra devoluta e tudo. E a gente, naquela doidera e necessidade, decidiu: vamos entrar lá. Dê o bicho que der”, lembra Seu Tião.
De acordo com ele, na primeira vez, o antigo dono das terras conseguiu negociar com que o grupo deixasse o local. “Nós estávamos muito desorganizados. Nós se organizemos depois, nós falamos que não dava pra nós e que íamos largar isso pra lá. E saímos de lá”. Mas depois, quando teve contato com o MST, o grupo conseguiu, junto com outros trabalhadores rurais, a desapropriação da área, em 1986.
“Começou logo aqui com a gente. A maioria do povo que veio para aqui já era agricultor”, diz seu Tião. Essa ocupação seguinte marcou o início do MST no Estado, segundo Taxinha. “A ocupação que foi realizada em 1985 foi resultado da articulação nacional do MST”, explica.
“Onde eu morava, já tinha um grupo que já vinha fazendo reuniões para ocupar. Aí eu entrei junto e nós fizemos as reuniões, articulou os lados com tudo. E articulou para fazer a ocupação lá. Essa foi a melhor preparação que aconteceu”, lembra Seu Tião, com orgulho, mais de 27 anos depois.