Plínio Zúnica: Por que não sou Charlie Hebdo
O que as caricaturas de Mohammad fazem é respaldar ódio e ignorância sobre o islã, as comunidades muçulmanas francesas e os povos árabes.
Por Plínio Zúnica*, publicado no Opera Mundi
Publicado 10/01/2015 11:01
Nada justifica o massacre na redação do jornal Charlie Hebdo, mas algumas generalizações e relativizações na cabeça da sociedade são tão perigosas quanto kalashnikovs na mão de fundamentalistas.
O caso Charlie Hebdo levantou grandes discussões. Há políticos, instituições, governos, jornalistas e comentaristas de Facebook de todas as estirpes falando sobre o assunto em tribunas, periódicos e mesas de bar. Todos são unânimes em condenar a brutalidade dos ataques, porém as divergências de opinião são maiores do que as concordâncias.
Enquanto muitos discursos falam sobre o perigo da amplificação do ódio contra comunidades muçulmanas na França e ao redor do mundo, não faltam aqueles que de pronto condenem a “selvageria e brutalidade” da religião islâmica e dos povos árabes, engrossando as fileiras de fundamentalistas nacionalistas que organizam marchas xenófobas contra a “islamização da Europa”, a favor das intervenções militares criminosas dos estados ricos do Ocidente nos países do Oriente Médio e África e respaldando o racismo que tornou possível e aceitável a longa série de políticas coloniais e práticas exploratórias que sustentaram a economia e poder da França desde que esta se tornou um Estado-Nação.
Entretanto, não quero falar agora sobre as divergências de opinião, e sim sobre o consenso, expresso no slogan “Je suis Charlie” (“Eu sou Charlie”), que inundou as redes sociais e capas de jornais ao redor do planeta. O slogan é atrelado à ideia de que o que ocorreu ontem na França implica um atentado contra a liberdade de imprensa e valores democráticos ocidentais; implica dizer que toda imprensa é livre pra publicar irresponsavelmente qualquer conteúdo; implica dizer que o direito de zombar de uma religião é o mesmo que lutar pelo estado laico; e implica, principalmente, que o ataque foi simplesmente resultado do extremismo (ou da falta de senso de humor) religioso diante de uma critica “ácida e sagaz”, excetuando-se todo o contexto de marginalização e discriminação da comunidade muçulmana na França. Principalmente, implica ignorar à que se propõe e quais os efeitos dessas charges no contexto político-ideológico de um país com níveis alarmantes de racismo.
O argumento mais comum que encontrei nas redes sociais e comentários de jornais on-line é o de que o Charlie Hebdo fazia charges ofensivas sobre todas as religiões, e que, portanto, se cristãos conseguem ver charges com Jesus e levar como uma piada, então, muçulmanos também deveriam. Esse é um argumento raso, porque coloca no mesmo patamar a situação das comunidades muçulmanas e das comunidades cristãs na Europa, ao mesmo tempo que reforça a ideia de superioridade ocidental racionalista. É o mesmo simplismo de quem diz que chamar um branco de “palmito” tem o mesmo peso de chamar um negro de “macaco”. Não é só uma piada.
A quem serve a islamofobia?
No dia anterior ao massacre de Charlie Hebdo aconteceram duas marchas na Alemanha: uma pela expulsão de árabes e muçulmanos do país e outra contra o discurso xenófobo da direita ultranacionalista alemã. Esse tipo de manifestações populares contra minorias étnicas fica cada dia mais comum em toda a Europa, e a França, sempre avant-garde, é um dos maiores focos de marchas e movimentos racistas, machistas e xenófobos na Europa.
Na França a “Questão Muçulmana” é uma obsessão prioritária dos grupos de direita. O jornalista Edwy Planel, autor do livro “Pelos Muçulmanos” (título dado em alusão ao artigo “Pelos Judeus”, escrito por Emile Zola sobre o caso Dreyfus) aponta os ataques à comunidade muçulmana como sendo a principal plataforma de discurso eleitoral na França de hoje.
Nicolas Sarkozy é um exemplo claro da presença do discurso racista na política francesa. Podemos citar seu discurso na Universidade de Dakar, em julho de 2007, quando disse:
“O drama da África é que o homem africano não entrou totalmente na história. O camponês africano, que desde milhares de anos vive conforme as estações, cujo ideal de vida é estar em harmonia com a natureza, só conhece o eterno recomeço do tempo ritmado pela repetição sem fim dos mesmos gestos e das mesmas palavras. Nesse imaginário onde tudo recomeça sempre, não há lugar nem para a aventura humana, nem para a ideia de progresso. Nesse universo onde a natureza comanda tudo, o homem escapa à inquietude da história que inquieta o homem moderno. Mas o homem permanece imóvel no meio de uma ordem imutável, onde tudo parece ser escrito antes. Nunca ele se lança em direção ao futuro. Nunca não lhe vem à ideia de sair da repetição para se inventar um destino”.
Vamos lembrar que quando fala do “homem africano” (como se todos os povos de África fossem um único grupo homogêneo) Sarkozy alude especialmente à população muçulmana, uma vez que a França invadiu e colonizou a Argélia e o Marrocos, de onde vêm a maior parte dos imigrantes islâmicos da França.
Atualmente vem ganhando muito espaço ideológico o partido de extrema direita Frente Nacional, cuja principal voz é Marine Le Pen, famosa pelo discurso islamofóbico e pelas políticas anti-imigração. Le Pen, forte candidata para as próximas eleições presidenciais, declarou hoje, no embalo do ataque de ontem, que “a França está sendo atacada”, e aproveitou para reforçar sua proposta de instaurar a pena de morte no país.
O professor Reginaldo Nasser aponta, em artigo publicado ontem, pra o perigo do uso do caso Charlie para fortalecer as políticas ultranacionalistas francesas: “Há de fato uma situação conturbada na França e que vai piorar a partir de agora, os preconceitos com os imigrantes podem aumentar e reforçar um sentimento nacionalista. Le Pen é a representante de um pensamento xenófobo no país. Mas temos que esperar ainda pra ver quais serão dos desdobramentos quando se descobrir os culpados”.
Portanto, a mobilização massiva criada em torno do slogan "Je suis Charlie", se for ausente de uma crítica séria sobre a situação dos muçulmanos na Europa e as razões da islamofobia na França, tende a ser apenas combustível para a xenofobia e os partidos ultraconservadores.
A quem serve a liberdade de expressão?
Aqueles que ostentam orgulhosos o slogan “Eu sou Charlie” se dizem advogar pela liberdade de expressão, porém não questionam o que significa essa liberdade de expressão, tampouco quem tem direito a essa liberdade. Ninguém se preocupa com a censura à liberdade de expressão religiosa islâmica na França.
Em 1989, o jornal Le Nouvel Observateur publicou uma capa contra o uso do hijab, o véu muçulmano, nas escolas. Isso levou a uma discussão que culminou na lei de 2004 proibindo que meninas islâmicas usando lenços frequentassem as aulas, e desde 2011 há uma circular do Ministério da Educação recomendando que se impeça a presença de mães usando hijabs na área em torno dos colégios. Nunca houve proibição do uso de crucifixos ou camisas com slogans cristãos. A esquerda francesa (e a maior parte da esquerda ocidental) se mostrou favorável a esta lei ou, na melhor das hipóteses, silenciou sobre ela, sob o pretexto da defesa do Estado Laico. Esquecem-se que o laicismo serve para preservar o direito à liberdade de exercício de pensamento religioso ou à liberdade de não exercer nenhuma crença religiosa. E esquecem-se de que o islã não é apenas uma crença religiosa, mas também um referencial de identidade de toda uma comunidade historicamente oprimida, remetendo à questões religiosas, culturais, étnicas e políticas.
Proibir a expressão de sua religião é censura. Proibir a expressão de sua identidade cultural é eugenia. Imaginem, por exemplo, uma lei brasileira proibindo o uso de turbantes e símbolos da Umbanda e Candomblé em áreas públicas. Seria uma conquista do estado laico ou (mais) um ataque às crenças afro-brasileiras?
Na esteira das liberdades de expressão negadas pelo governo francês intrinsecamente conectadas ao Islã está a abominação legislativa sancionada no ano passado, quando a França tornou-se o primeiro país do mundo a proibir manifestações de apoio à Palestina, durante os bombardeios israelenses à Faixa de Gaza, que assassinaram 1.951 pessoas e feriram 10.193 civis. Qualquer pessoa que participasse de um protesto contra os crimes de guerra de Israel, práticas de Terrorismo de Estado respaldadas ideologicamente por políticos e formadores de opinião entre a população israelense através de fundamentalismo nacionalista e argumentos de fundamentalismo religioso judaico e islamofobia, seria preso por um ano ou pagaria multa de 15 mil euros. Se o manifestante cobrisse o rosto durante o protesto, a pena subia pra três anos de detenção.
Cabe ressaltar aqui que não sei qual foi o posicionamento do jornal Charlie Hebdo sobre esse caso em particular, mas certamente a comunidade internacional não se manifestou tão passionalmente sobre o direito dos franceses à liberdade de expressar apoio aos palestinos.
Então, cabe a pergunta: A quem faz rir o humor de Charlie Hebdo?
Não existe piada sem um alvo, e o senso de humor tem poder político por natureza. Piadas podem ser um meio de contestação ou de sedimentação do senso comum, do status quo dominante. Quando um humorista faz uma piada racista, está endossando o racismo de quem ri, criando no riso um lugar seguro pra que os estereótipos racistas cresçam, legitimando ignorância e raiva, disfarçados de senso de humor. As pessoas formam suas concepções de mundo, de certo e errado, de verdade e justiça, muito mais através de piadas e slogans simplistas do que de resoluções da ONU e tratados de sociologia.
Lembro-me que, quando era criança, meu pai comprava livros de piadas em bancas de jornal e passava o dia atormentando minha mãe com piadas machistas sobre loiras burras e mulheres caricaturadas da pior forma possível. Eram sessões ininterruptas de ofensas, mas que ela ouvia com um sorriso amarelo, uma vez que “era só piada”. Da mesma forma, ele contava as piadas mais ofensivas possíveis sobre negros, sempre respaldadas pelo fato de que “não era o que ele pensava”, e sim “só o que estava escrito nos livros de piada”. Foram anos desse tipo de piada “inocente”, até o dia em que, sem tom de piada ou riso suave, ele me proibiu de namorar mulheres negras.
É muito comum que se veja, no Brasil, “humoristas” como Danilo Gentili e Rafinha Bastos, vindos de uma mesma escola de racismo, machismo e homofobia que geraram o riso bobo de Costinha e Renato Aragão, defenderem seu direito de ser promover discurso de ódio como se isso fosse “liberdade de expressão”. E, mais triste ainda, é muito comum ver a população brasileira defendendo essa “liberdade” de humilhar, ofender e sedimentar preconceitos contra minorias, sob o rótulo falsamente liberal (e bastante estúpido) de “politicamente incorreto”. Muitas vezes eles dizem que estão fazendo humor político, “expondo o racismo” ao fazer piadas racistas. Esse é um argumento preguiçoso e altamente hipócrita pra manter seu direito de ser um racista alegre e ainda posar de Voltaire do Facebook.
O humor das charges do jornal Charlie Hebdo está na mesma esteira de qualquer senso de humor racista. Os defensores do “Je suis Charlie” não cansam de dizer que são a revista é o Pasquim Francês. Dizem que as caricaturas são ácidas e corajosas, atacando todas as religiões e expondo a homofobia e o fundamentalismo do islã. Porém, o que as caricaturas de Mohammad fazem é respaldar o ódio e a ignorância sobre o islã, as comunidades muçulmanas francesas e os povos árabes.
Na caricatura em que o profeta Mohammad aparece beijando um cartunista branco não há contestação nem levantamento de discussão. Não é um canal de diálogo com as comunidades muçulmanas para contestar as posturas homofóbicas da religião e de suas muitas multiculturais comunidades ao redor do mundo. É apenas um desenho de um homem branco europeu beijando o símbolo máximo de uma religião pertencente a outro povo. Não é assim que se levanta um debate, não é assim que se dialoga e não é assim que se contesta. Tudo o que a caricatura faz é zombar do Islã (cuja crença considera ofensivo representar graficamente seu profeta), cortar os possíveis canais de discussão com a comunidade que criticam e aumentar os preconceitos dos franceses islamofóbicos, que assim se sentem superiores aos seus vizinhos islâmicos. Não é um discurso que contesta a homofobia das comunidades islâmicas, e sim uma agressão que contesta a legitimidade de uma comunidade marginalizada e que não dá voz essa comunidade. Esse tipo de agressão só torna mais difícil que a sociedade em geral ouça aos muçulmanos que buscam combater o discurso conservador dentro da sua religião a despeito de professarem sua fé.
Em outra caricatura, um muçulmano segura um Corão enquanto balas atravessam o livro e o seu corpo. A legenda diz “O Corão é uma merda”. Isso não levanta debate nenhum, apenas diz “sua religião é uma merda”, o que implica dizer, no caso, “sua sociedade muçulmana, sua história muçulmana, seus parentes e crenças muçulmanas, são uma merda”.
As caricaturas da Hebdo retratam muçulmanos como sendo terroristas, estúpidos e perigosos. As pessoas se acostumam a pensar nessas imagens quando pensam em muçulmanos, e isso gera medo, ódio, deboche e xenofobia. Eu, enquanto estudante de língua árabe, perdi a conta de quantas vezes ouvi tanto piadas imbecis quanto preocupações sérias de meus amigos que pensavam que eu vivia uma terra de selvagens e fundamentalistas perigosos.
Esse tipo de humor raso e infantil não é razão para que se assassinem seus perpetradores. Eu não defenderia que militantes feministas armadas invadissem o Comedians e assassinassem Rafinha Bastos. Ainda assim, elas têm todo o direito de se sentir ultrajadas, agredidas e ofendidas quando ele usa seu poder de discurso para convencer sua plateia de que mulheres feias devem ser estupradas e ficar agradecidas pela “caridade”. Mais importante, é preciso ter em mente que, sendo elas o grupo diretamente atingido pelas piadas infelizes dele, é a elas que a sociedade deve ouvir. Não me cabe o direito de julgar se uma mulher pode ou não se sentir ofendida com uma piada machista, e não me cabe dizer se um muçulmano deve se sentir ultrajado por uma piada islamofóbica, porque existe todo um contexto social por trás dessas piadas que eu não compreendo e do qual eu não sou a vítima.
Acreditar que as reações de muçulmanos às caricaturas são simples extremismo é dizer que “é só uma piada”. Não é. A reação tem a ver com todo o contexto de discriminação social e econômica, às humilhações diárias que essa população sofre nos países europeus, à invisibilidade de sua identidade, ao histórico colonial e também com as atuais politicas intervencionistas dos países ocidentais no Oriente Médio e África, que se negam a ouvir as vozes árabes e africanas enquanto financiam grupos extremistas e assassinam populações civis com drones e “democracias”.
Um relatório do Observatório Europeu do racismo e xenofobia aponta que, na França, a chance de alguém de origem árabe/muçulmana conseguir um emprego é cinco vezes menor do que um caucasiano com as mesmas qualificações. Além disso, eles possuem menos acesso à educação formal, vivem nas áreas mais sucateadas das cidades e estão sujeitos a todo tipo de descriminação e violência física. O relatório aponta o sentimento de desespero e exclusão social do jovem muçulmano, que vê sua possibilidade de progressão social dificultada por racismo e pela xenofobia.
O massacre que ocorreu na quarta-feira foi um crime horrível de terror e silenciamento, cometido por alguém que não sabemos ainda quem é (e nada impede que seja uma operação de false flag) nem com qual intenção. Um crime horrível e abominável, como foram horríveis e abomináveis os crimes de terror e silenciamento promovidos pelo Mossad quando assassinou o cartunista Naji Al-Ali, ou quando Bashar Al-Assad mandou quebrar as mãos do cartunista Ali Ferzat, ou todos os dias quando a polícia militar de Geraldo Alckmin, aterroriza e assassina os jovens que imprimem sua crítica e revolta com latas de spray nas paredes da minha cidade. Todos são crimes horríveis de silenciamento, e todos devem ser condenados, mas cada um tem suas particularidades, razões e contextos próprios e únicos, e não podemos cair no erro de diluir nossa crítica no simplismo maniqueísta, ou corremos o risco de que a voz que queremos dar à democracia seja um megafone para os absurdos da teoria de "choque de civilizações" de Huntington.
Por tudo isso, eu não sou Charlie.
* Plínio Zúnica é estudante de Língua e Literatura Árabe da Universidade de São Paulo. Esteve duas vezes nos Territórios Ocupados da Palestina, onde trabalhou como coordenador da Educacional Network for Human Rights in Palestine/Israel. Atualmente vive no Cairo. Texto originalmente publicado no blog Descolonizações.