Roniwalter Jatobá: Uma usina no meio do caminho
Durante anos, todos os dias, cruzava com a usina da Traição, na Marginal Pinheiros, no caminho de Santo Amaro. Ali, a já desagradável paisagem do rio se transformou num mar de garrafas vazias. “Beba coca, pepsi e tubaína”, piscam néons no meio do lodo. Li no jornal que moradores da vizinhança reclamavam do excesso de lixo e sujeira do rio.
Por Roniwalter Jatobá*, no Blog Boitempo.
Publicado 06/12/2014 12:13
Não é novidade. O rio Pinheiros veio virando um canal de esgoto desde que, no final da década de 1930, eliminaram suas sinuosas curvas e remansos, para que o seu leito então pré-determinado tornasse possível a transferência das águas do rio Tietê para o reservatório Billings.
Quem passa sempre apressado ao lado da usina não sabe que no seu interior está escondido um conjunto de casas construídas pela antiga Light para os trabalhadores. A rua principal lembra uma cidade interiorana. As moradias, em estilo inglês clássico, ficam a poucos metros da usina e do rio encobertos pela vegetação. Há também sabiás e bem-te-vis.
Anos atrás, conheci uma pessoa que morou na Traição boa parte de sua vida. Seu nome: Jayme Nazaré. Vivia numa das casas da Vila, também conhecida como “Vila dos Mineiros” (dos onze moradores, sete eram de Minas Gerais). Nascido em Juiz de Fora, gostava de uma boa prosa. Mas os olhos ficavam tristes com a sujeira acumulada nas grades da usina, a espuma descendo rio abaixo para pegar a corrente do Tietê.
– Antigamente, o lixo era mais capim e até mesmo árvores – ele lembrou na época. – Hoje, só dá plástico, que entope tudo.
Sentia-se em segurança, no entanto, e ali criou os três filhos. Quanto ao cheiro das águas do rio, achava que as árvores montavam uma espécie de filtro e a depressão do morro ao lado mexia com o vento, protegendo as casas.
Durante mais de 20 anos viveu muitas histórias. Numa madrugada de 1987, um operador de máquinas fazia, normalmente, o trabalho de retirada de lixo do rio. Quando chegou à metade de recipiente onde jogava os destroços retirados das águas, viu o que parecia ser um braço humano. Aterrorizado, chegou perto e descobriu que tinha razão. Gritou e correu pedindo socorro. Além de lixo e mais lixo, o rio era também desova de cadáveres.
Outra vez, uma mulher pulou da ponte Cidade Jardim, a cerca de 1,5 km da usina. Às vezes, ela flutuava, às vezes, descia, mas na ânsia ia submergindo. E Jayme olhando. Depois, ele e outros correram para salvá-la, pois ia chegando perto da usina. Aí, conseguiram retirar a mulher para a terra firme. Desesperada, ela queria pular de novo e foi preciso amarrá-la a uma árvore até a chegada dos Bombeiros.
Havia até casos policiais. Toda noite, um segurança contratado deixava o seu plantão e ia assaltar as mansões ao lado, no bairro de Cidade Jardim. Por algum tempo, o plano deu certo. Mas, uma noite, entrou na casa de um delegado. Depois de encher um saco com armas, o alarme da casa disparou. O sujeito fugiu, mas com um carro da Rota no seu encalço. Correndo, ele entrou no terreno da usina, vestiu a roupa de guarda e ficou esperando a polícia. E até muito disposto para procurar o meliante. Mas os sapatos sujos de lama, levantaram suspeita. Foi preso. Na manhã seguinte, encontraram armas de toda espécie espalhadas no gramado.
– Numa velha câmara cheguei até a gravar imagens de um jacaré, logo apelidado de “Teimoso”, que apareceu no Pinheiros – me relatou Jayme, que na certa levou as imagens para Minas, onde vive aposentado.
A usina, um prédio com sete andares, é hoje um símbolo de um passado recente paulistano e essencial para o controle das enchentes na cidade. Contam que logo após sua inauguração, em 1940, no alto do seu topo e tendo uma vista panorâmica da Zona Sul paulistana, um dirigente da antiga Light bolou um plano mirabolante para resolver o problema do transporte urbano entre a capital e a Baixada Santista.
A ideia do engenheiro canadense envolvia a área compreendida pelos rios paulistanos num eficiente transporte fluvial. Era mais ou menos assim: barcos de passageiros fariam viagens programadas a partir das proximidades do bairro da Penha, via Tietê, e depois seguiriam Pinheiros e Billings afora. Vencendo estrategicamente a descida na Serra do Mar, chegariam a Cubatão e, depois, à beira do Atlântico.
Outro dia visitei o que restou de um sonho: um embarcadouro carcomido pelo tempo no começo da Billings, no bairro da Pedreira, em Santo Amaro, agora ponto estratégico de bandos de famintos patos selvagens, também conhecidos como biguás.
*Roniwalter Jatobá é escritor.