A violência nas festas da USP é o silêncio de uma máfia, diz sociólogo
A denúncia coletiva de estudantes vítimas de estupro e violência sofridos em festas na Faculdade de Medicina da USP feita na Comissão de Direitos Humanos da Assembleia Legislativa de São Paulo, na semana passada, foi muito importante, considerando a dificuldade de se tornarem públicas ocorrências desse tipo. A análise é do sociólogo Antônio Almeida.
Publicado 27/11/2014 12:05
Para ele, o caso não é um incidente isolado, um excesso ou uma fatalidade. “Fatos desse tipo ocorrem sistematicamente dentro do ambiente universitário”, afirmou Almeida, acrescentando que trotes violentos ocorrem de forma sistemática não só na Medicina da USP, como na Geociências da mesma universidade, na Escola Superior de Agricultura Luis de Queiroz (Esalq USP), na Faculdade de Medicina de Sorocaba e em escolas militares, como o Instituto Tecnológico de Aeronáutica (ITA).
“É um grupo que consegue de alguma forma interferir no rumo da instituição. Às vezes até controlando a diretoria, ou outras comissões importantes, tentando estabelecer a pauta dessa instituição. E pra obter esse controle da instituição esse grupo não tem o menor escrúpulo em usar violência”, revelou o professor em entrevista.
“Em alguns casos a gente poderia até falar que são quadrilhas mesmo, organizadas, e que deveriam ser tratadas dessa forma pela lei. Tem situações que quem de fato comanda o grupo trotista são professores, dirigentes, diretores, reitores, às vezes pessoas do mercado de trabalho, ex-alunos”, completou.
O professor do Departamento de Economia, Administração e Sociologia da Esalq screveu três livros sobre trote, Universidade, preconceito e trote; Trote na Esalq; e Anatomia do Trote Universitário; além do projeto de pós-doutorado Trote Universitário e a Mídia. Ele explica que o grupo trotista tem uma disciplina rígida. No primeiro ano, o aluno que recebe o trote tem de se calar. Se não ficar em silêncio é expulso do grupo.
“Esse silêncio é o mesmo das organizações mafiosas, que depois vai acobertar todas as práticas ilegais, indecentes, criminosas até desses grupos. Esse aluno que está lá no pedágio é um soldado raso de uma hierarquia que tem general. Às vezes, esse general é um docente da universidade, um diretor, o ministro da Agricultura ou o ministro da Saúde.”
Há muito dinheiro envolvido nos trotes e festas. A universidade, de alguma forma, acaba patrocinando esses grupos, informa Almeida, que é professor da Esalq. Eles recebem apoio institucional na forma de verba, de participação e comissões em coisas que na verdade não deveriam participar.
“Eu acho muito grave. É uma das coisas mais graves na educação brasileira. As pessoas querem afirmar que o trote é uma brincadeira, uma forma de recepção, que o trote integra as pessoas na universidade. Isso é uma mentira. O trote divide os alunos do campus, causa muitas perdas, alunos que deixam a universidade ou que ficam com ferimentos pro resto da vida, ou pior ainda, que ficam dentro dessa mentalidade superpreconceituosa do trote.”
A cultura de violência dos grupos trotistas é baseada na impunidade. É a cultura do abuso. “São práticas cotidianas consideradas normais”, avalia o professor. “Teve um caso aqui na Esalq em que uma menina foi estuprada por oito rapazes. Depois de ter sido estuprada ela recebeu o apelido de ‘pizza’, porque ‘dá pra oito’.”
Segundo o sociólogo, não são todos, mas muitos que provocam a violência nos trotes e festas são de classes mais abastadas, praticam atos violentos como forma de exercício de poder. No primeiro ano, o aluno recebe o trote, no segundo, é obrigado a dar o trote, se não der é desligado do grupo. “É um treinamento na opressão, é um currículo oculto na formação de opressores. O trote é um núcleo de uma formação social muito distorcida que está instalado dentro da universidade, e a universidade precisa coibir isso, educar, desmontar esse tipo de comportamento e não estimular.”
Almeida também cita como exemplo o caso da Esalq, que trabalha com questões ambientais e agrícolas. “O Brasil é o país que mais consome agrotóxicos no mundo. E em uma das principais escolas de agricultura do país, a agroecologia e as preocupações ambientais não são colocadas no currículo. O que está em jogo aí é a concepção de agricultura, de medicina, de psicologia, de engenharia. A gente está lutando pra ter uma sociedade mais igualitária, mais justa, mais transparente, mais democrática, e a universidade tem que dar a sua contribuição”, concluiu.
Fonte: Rede Brasil Atual