Paulo Martins Costa: Nenhum compromisso com a História

A imprensa brasileira, vista como instituição representada pelas grandes empresas de comunicação que controlam a maior parte da audiência, atuou durante a disputa eleitoral como um organismo coeso, empenhado em levar a Brasília um grupo político mais afinado com seus credos. 

Por Luciano Martins Costa, no Observatório da Imprensa

jornais

Perdeu a eleição, mas considera que o grande número de votos na chapa da oposição também é seu patrimônio. Portanto, acha-se no direito de ditar parâmetros para o segundo mandato da presidente Dilma Rousseff.

Depois de estimular uma ação rápida do PMDB – braço direito do governo em termos metafóricos e sob o ponto de vista ideológico –, para neutralizar o projeto de reforma política por meio de plebiscito, agora a mídia tradicional tenta impedir também que se produza um referendo popular para aprovar o que vier a ser apresentado pelo Congresso como proposta de mudança no sistema parlamentar.

Os congressistas que desejam reformar a política são minoria, o PMDB certamente não representa qualquer desejo de mudança e os jornais não querem plebiscito nem referendo. A imprensa bate bumbo, mas age abertamente contra qualquer tentativa de democratizar o sistema decisório.

Não interessa aos controladores da mídia qualquer avanço para além do sistema corporativista criado pela Constituinte de 1988, no qual se construiu um arcabouço de poder imune a interferências externas. O povo é uma dessas externalidades, e os períodos eleitorais costumam produzir tensões extremas porque, numa campanha, cresce o risco de os eleitores acreditarem que podem interferir no campo do poder político.

Reduzida a intensidade do embate, com alguns aloprados ainda gritando nas redes sociais por impeachment e golpe militar, é possível observar como a mídia se recompõe rapidamente para tentar recuperar o mínimo decoro, sem o qual suas ações perdem eficácia. Na quarta-feira (29), por exemplo, O Globo recoloca na pauta o caso do vazamento de uma suposta declaração do doleiro Alberto Youssef, que foi intensamente explorada na véspera da eleição em segundo turno (ver aqui). A acusação contra a presidente Dilma Rousseff e o ex-presidente Lula da Silva virou de repente apenas um suposto “palpite” do denunciante.

O eco das palavras

No futuro, cientistas políticos haverão de mergulhar nos arquivos da antiga e decadente imprensa das primeiras décadas do século 21, e tentarão entender como o tom do conteúdo jornalístico pode mudar tão radicalmente em tão poucos dias. Como na canção de Chico Buarque, escafandristas tentarão decifrar o eco de antigas palavras que mudam de sentido conforme o contexto a que se referem. Na véspera da eleição, tentava-se impor ao imaginário coletivo um valor absoluto para a palavra “mudança”. Terminada a eleição, “mudança” passa a ser um palavrão.

Depois de protagonizar um dos momentos mais deletérios da história da República, os principais veículos de comunicação do país pretendem que a sociedade os leve a sério. Um ou outro colunista, ainda desavisado sobre a necessidade de recuperar o que for possível de credibilidade, deixa escapar expressões do discurso de baixo calão que contribuiu para a radicalização da disputa eleitoral. Mas o tom geral da retórica jornalística agora é o da contenção.

É preciso mudar os hábitos da política, mas também não vamos exagerar com essa mania de consultar o povo sobre questões importantes, diz o subtexto dos jornais. Pode-se questionar com argumentos razoáveis a efetividade de recursos como o plebiscito para a tomada de decisão em questões complexas como as garantias da democracia representativa. Pode-se também esgrimir ponderações aceitáveis contra a participação direta da população em decisões que envolvem saberes especializados. Mas não é isso que está em pauta no discurso pós eleitoral da mídia.

O que está em jogo é o fato de que as forças mais conservadoras do campo político têm ojeriza a tudo que cheira a povo – e a imprensa hegemônica, agente e regente do campo reacionário, compartilha dessa rejeição.

Plebiscito, referendo, conselhos populares, sistemas de regulamentação e controle – tudo isso ameaça o poder sequestrado pelas quadrilhas da política, com as quais a imprensa compactua.